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CAPÍTULO II – CRISTIANISMO CATÓLICO E CRISTIANISMO REFORMADO: PERSPECTIVAS E REPRESENTAÇÕES

3. UM COMBATE: MEIOS DE ACÇÃO

O perigo protestante não se perspectivava apenas em termos de disseminação da heresia, mas também como promoção da desmoralização. Nos diversos domí- nios sociais, a influência evangélica era tomada como um incentivo à imoralidade. Ao nível das células familiares, a evangelização protestante era responsabilizada pela criação de um ambiente onde «já se acha atiçada a discórdia por motivos religiosos entre paes e filhos, maridos e espozas, irmãos e irmãs nas freguesias ruraes. Ja tem fugido filhas da caza paterna, para se evadirem á seducção (que horror!) dos authores dos seus dias que pertendem obrigal-as a arrnegar de sua religião!! Ja se tem visto mulheres abandonarem a seus espozos para se refugiarem no grémio do protestantismo que as recebe com as honras de martyres!!»171. Mas era igualmente criticada a relação do cristão evangélico com o dinheiro, repetida- mente caracterizada como base das suas acções, acusando-se essas comunidades de utilizarem o factor religioso com vista ao lucro172.

170 D. Américo, bispo do Porto – Instrucção Pastoral sobre o Protestantismo, p. 93.

171 Manoel de Sant’Anna e Vasconcellos – Revista Historica do proselytismo anti-catholico, p. 71-72. 172 O jornalista Sousa Amado, no semanário O Domingo, apresentava como prova o seguinte exemplo: Perto

de Lisboa há um proprietário protestante, que actualmente anda levantando umas casas: nos dias de trabalho paga aos jornaleiros e oficiais segundo preço corrente, nos Domingos e dias santificados acrescenta aos salários

Revelava-se então necessário defender a sociedade portuguesa da desmora- lização. Desde logo, essa protecção era levada a cabo através das pastorais e das obras relativas ao cristianismo reformado, tomadas como métodos de denúncia, refutação e alerta para aquele perigo. Manoel Felippe Coelho, na sua refutação dos “erros protestantes”, definia a pastoral contra o protestantismo do bispo do Porto como o resultado do «desempenho de um importante dever do seu sagrado ministério»173, no sentido de não apenas refutar a doutrina reformada mas sobre- tudo de preservar os seus diocesanos da sua influência. Alguns anos depois, o bispo de Angra do Heroísmo dirigia-se aos seus fiéis reconhecendo como do seu «[...] rigoroso dever advertir-vos e illustrar-vos sobre o que de vós se pretende, e sobre as consequências de abandonar a verdadeira religião para seguir uma seita, que não pode dar salvação»174. Mesmo quando não explicitados, esses objectivos eram claros na escrita de todos aqueles que se dedicaram à temática do cristianismo evangélico.

Apesar de tudo, se a palavra era tomada como um instrumento fundamental em relação à protecção dos fiéis católicos, o ambiente que se descrevia era de verdadeiro conflito, sendo repetidamente anunciado que: «A época é de combate! Do campo da lucta em defeza da nossa Mãe e santa Egreja não arredamos passo. Sempre com a Egreja; sempre; na vida e na morte»175. Definia-se claramente um inimigo – os cristãos reformados, e descrevia-se a Igreja Católica como um «baluarte»176, encarregue do comando e direcção dos «soldados de Cristo», inci- tados a «pelejar», a tomar «armas»177 e mesmo a travar uma «guerra incruenta»178

contra o adversário.

O estabelecimento de um cenário de conflito, acompanhado com o esclareci- mento do lado do bem e da verdade e do lado do mal e da falsidade, incitava, em primeiro lugar, à renúncia e conversão daqueles que se encontravam no campo errado. Reconhecendo os seus erros, a par da sua fé, deveriam «[...] contritos e humilhados [...] lançar-se nos braços da [...] carinhosa Mãe Comum [...]»179 que

mais uma terça parte!...Vejam que apóstolo da desmoralização!» (Pinharanda Gomes – D. Manuel Martins Manso, p. 44).

173

Manoel Felippe Coelho – Refutação das principaes objecções, p. V.

174

D. João Maria Pereira d’Amaral e Pimentel, bispo de Angra do Heroísmo e Ilhas dos Açores – Carta

Pastoral sobre o protestantismo, p. 1.

175

Ainda o protestantismo na diocese dos Açores, p. 4.

176 Cf. D. Américo, bispo do Porto – Instrucção Pastoral sobre o Protestantismo, p. 96. 177 Manuel de Albuquerque – A Verdadeira Igreja de Christo, p. 24.

178 D. João Maria Pereira d’Amaral e Pimentel, bispo de Angra do Heroísmo e Ilhas dos Açores – Carta

Pastoral, p. 11.

179 D. Manuel Martins Manso – Duas pastorais contra o protestantismo sendo bispo do Funchal. In Pinha-

randa Gomes – D. Manuel Martins Manso, p. 118. O incitamento à conversão surgia muitas vezes como conclusão das pastorais e opúsculos relativos ao protestantismo. Com esse objectivo, pede-se a Deus que «[...] se compadeça dos nossos Irmãos dissidentes, que lhe abra os olhos de sua intelligencia para conhecerem

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era a Igreja Católica. Porém, mais do que um incitamento, esses conselhos adqui- riam no discurso católico um carácter cada vez mais imperativo, de modo que a renúncia aos erros reformados não se considerava apenas como uma oportunidade mas sobretudo como uma obrigação, uma vez que «[...] para poderem salvar-se, o seu primeiro dever [era] abjurá-los, e voltar ao centro da unidade católica [...]»180.

Nesse caso, a Igreja Católica adquiriria então, afirmavam, uma postura integradora. Além do aconselhamento à renúncia, os católicos utilizavam também como método de combate o poder da oração, no sentido em que os fiéis eram incitados a rezar por todas aquelas «almas extraviadas»181, para que reconhecessem o cami- nho da verdade e se juntassem à Igreja Católica. Foram inclusivamente traduzidos do castelhano alguns textos que procuravam responder à questão: Quais são os

meios mais seguros, mais efficases e menos perigosos para oppôr-se á propaganda protestante?182. Esses métodos resumiam-se a dois grupos fundamentais: activida- des de índole espiritual e acções de pendor eminentemente prático. No primeiro núcleo incluíam-se: a oração, o fomento do culto, o alargamento da missionação, a fundação de confrarias, a multiplicação de associações de caridade, a organização das escolas católicas, a prestação de serviços a pobres, doentes e presos e a propa- gação da “boa leitura”. No segundo grupo integravam-se: o afastamento em relação aos predicantes e o isolamento dos apóstatas, a recusa de aluguer de casas a cristãos reformados, a prossecução de manifestações pacíficas e legais de reprovação e desa- grado, a utilização de métodos como o assobio, o canto ou gritos quando algum cristão reformado fosse encontrado a blasfemar num local público, a formação de uma opinião pública capaz de impedir os abusos da liberdade religiosa e a recusa da utilização do voto político a favor de inimigos da Igreja.

Utilizava-se também recorrentemente o prognóstico do fim próximo do cristianismo evangélico como método de demonstração da sua ineficácia e con- sequente inutilidade. Uma vez que tinha entrado «num momento de dissolução e ruína completa»183, o protestantismo rapidamente desapareceria, permanecendo

a verdade, e mova o seu coração, para que renunciando ao erro, [...] voltem para o grémio da [...] Santa Egreja Catholica, fora da qual não há salvação» (D. Manuel Joaquim da Silveira, metropolitano e primaz do Brasil – Carta pastoral, p. 69); ou que ilumine o protestante para que ele «[...] veja a profundidade do abysmo em que se despenhou e reconheça a Egreja catholica [...]» (D. Luiz Maria da Silva Ramos – Affirmações

catholicas, p. 495).

180 D. Manuel Martins Manso – «Duas pastorais contra o protestantismo sendo bispo do Funchal». In

Pinharanda Gomes – D. Manuel Martins Manso, p. 130.

181 Cf. D. João Maria Pereira d’Amaral e Pimentel, bispo de Angra do Heroísmo e Ilhas dos Açores – Carta

Pastoral, p. 12.

182 Cf. Ainda o protestantismo na diocese dos Açores, p. 26-28.

183 D. Luiz Maria da Silva Ramos – Affirmações catholicas, p. 14. Cerca de vinte anos antes, em 1865, Camilo

Castelo Branco defendia já que o protestantismo estava «[...] decrépito, entorpecido no leito da paralisia, esperando bocejar o ultimo suspiro [...]» (Camilo Castelo Branco – Divindade de Jesus, p. 185). E mesmo fora de Portugal, esse era um argumento frequentemente utilizado pelos católicos. No Brasil, o bispo da Baía, explicava, precisamente no mesmo ano, que «Ainda heresia nenhuma durou mais de quatro séculos [...] e

apenas como memória dos obstáculos ultrapassados pela Igreja Católica e das heresias expurgadas do núcleo da verdade cristã.

Finalmente, o último dos meios de combate, porventura o mais eloquente, consistia na descrição das consequências nefastas de uma conversão ao cristia- nismo evangélico. Desde logo representada como uma subtracção, ou mesmo um roubo, em relação à Igreja Católica184, a conversão era descrita como a entrada

no erro ou no Inferno, uma vez que fora do catolicismo não existia salvação. A conversão equivaleria então, automaticamente, à condenação. Esta ameaça era aliás reforçada pelo facto de se estabelecer uma distinção entre aqueles que haviam nascido no grémio do protestantismo e os católicos que se haviam convertido, «[...] porquanto, se é possível á misericórdia divina compadecer-se d’um protestante de boa fé, que nasceu e foi educado no protestantismo, sem ter conhecimento da verdade da Egreja catholica, como os ha, não pode a sua justiça salvar um catholico, que renegou da verdadeira religião para se entregar mais plenamente ás commodidades ou prazeres do Mundo»185.

Ao mesmo tempo, descreviam-se como desqualificados os indivíduos que se haviam convertido, no sentido de criar a imagem de que as comunidades refor- madas cresciam à custa dos incompetentes e intelectualmente incapazes que não se integravam na Igreja Católica. Aliás, a tendência para definir as populações com menos educação e mais pobres como principais alvos do proselitismo evangélico era já uma insinuação, por vezes mesmo uma afirmação, de que o protestantismo só assim conseguia evangelizar, quer pela sua incompetência crónica quer pelo carácter de aproveitamento da fragilidades do outro. Mesmo em análises histo- riográficas substancialmente distanciadas deste período, na década de trinta, se afirmava que o «[...] um ou outro que abraçou o protestantismo estava bem longe de fazer falta na Igreja católica»186.

Não menos frequente era a utilização da conversão inversa, isto é, do cristia- nismo reformado para o catolicismo, como meio dissuasor e demonstrativo da progressiva dissolução do protestantismo e da eficácia do catolicismo. Multiplicam- -se nas fontes católicas as referências ao facto de se contarem «[...] por milhares em cada anno os que [...] se teem convertido ao Catholicismo na Allemanha, na Inglaterra, nos Estados Unidos da América, onde o Protestantismo imperava altivo

há trezentos annos que o Protestantismo trabalhando sem cessar contra Egreja Catholica [...] se aproxima do seu termo [...] na sua agonia mortal [...]» (D. Manuel Joaquim da Silveira, metropolitano e primaz do Brasil – Carta Pastoral, p. 60).

184 Definia-se a pregação evangélica como as «[...] malditas tentativas – de tirar a um povo o thesouro

inestimável da sua fé» (Ainda o protestantismo na diocese dos Açores, p. 5).

185 D. João Maria Pereira d’Amaral e Pimentel, bispo de Angra do Heroísmo e Ilhas dos Açores – Carta

pastoral sobre o protestantismo, p. 16.

186 Fortunato de Almeida – História da Igreja em Portugal, vol. 3, livro IV, p. 353.

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[...]»187, acrescentando-se na maioria das vezes que o carácter desses conversos era diametralmente oposto ao dos recebidos pelas comunidades evangélicas, uma vez que se destacavam sempre pela sua notabilidade e inteligência188.

Enfatizado o abismo entre protestantismo e catolicismo, reforçada a nega- tividade subjacente a todos os estereótipos relacionados com o cristianismo reformado, fortalecidas as afirmações doutrinais da Igreja Católica, o combate resumia-se então a três objectivos essenciais: manter e proteger aqueles que se encontravam no interior da Igreja católica; dissuadir aqueles fiéis católicos abertos à pregação evangélica e influenciados pela mesma; e procurar converter aqueles que estavam integrados nas comunidades reformadas. Porém, estes propósitos não se resumiam apenas à dinâmica interna da sociedade portuguesa, uma vez que esse sentido de defesa e de combate se aplicava igualmente na análise das relações entre a metrópole e as colónias e no âmbito das relações externas portuguesas.

4. CATOLICISMO E NACIONALISMO VERSUS PROTESTANTISMO E