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CAPÍTULO II – CRISTIANISMO CATÓLICO E CRISTIANISMO REFORMADO: PERSPECTIVAS E REPRESENTAÇÕES

2. IDENTIDADE E ALTERIDADE: CAMPOS DE DEFINIÇÃO DO “OUTRO” PROTESTANTE

2.4. Verdade e erro

O discurso católico acerca do cristianismo evangélico alicerçava-se numa dico- tomia fundamental que contrapunha o erro à verdade. A relação entre a verdade e a moralidade e a vida religiosa estivera sempre presente ao longo da história do Cristianismo, no contexto dos encontros e desencontros entre Deus e o homem.

162 De acordo com o bispo do Porto o protestantismo «[...] apresenta duas classes de homens, dous campos

bem distinctos: d’um lado os chefes, os mestres de certa doutrina; do outro os sectarios que a adoptam. Dos chefes cada qual, interpretando a Biblia, abraça o que n’ella encontrára, ou encontra n ’ella o que houvera abraçado; em nome do direito do livre exame sustenta o de repudiar o ensino de outros chefes, e contra elles defende como póde e sabe o seu proprio, sem que lhe faltem razões que á mesma Biblia vae buscar. Cada um d’elles préga sua doutrina, faz proselytos, agrupa-os em sociedade religiosa e com elles fórma uma Egreja» (D. Américo, bispo do Porto – Instrucção Pastoral sobre o Protestantismo, p. 43-44).

163 C. Aubert – Cartas sobre o estado actual da religião catholica, p. 7.

164 Manoel Felippe Coelho – Refutação das principaes objecções d’alguns protestantes, p. 124.

165 D. Manuel Joaquim da Silveira explicava que «A divisão arruina toda a sociedade, ou a impede de crescer,

e as numerosas heresias, que se elevarão por seu turno contra a Fé nas primeiras idades do Christianismo, e nas que se lhe seguirão, terão infallivelmente conduzido a Egreja á sua ruína, se ella guiada pela luz do Espírito Santo, e sustentada pela graça de Jesus Cristo seu fundador, não tivesse opposto ao erro uma constante barreira [...]» (D. Manuel Joaquim da Silveira – Carta pastoral, p. 58).

12. Página de rosto do livro A Verdadeira Igreja de Christo, de Manuel de Albuquerque. Obra publicada na segunda metade do século XIX com o objectivo de opor aos denunciados erros do

protestantismo a doutrina católica romana, perspectivada como única tradução da Verdade. (Biblioteca Nacional de Portugal)

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13. Página de rosto da obra Affirmações catholicas contra os erros d’um apostata, de D. Luiz Maria da Silva Ramos, publicada em 1889. A obra pretendia colocar em oposição clara o

protestantismo e o catolicismo romano, entendidos, respectivamente, como erro e verdade. (Biblioteca Nacional de Portugal)

Para o cristão, a verdade era a verdade de Jesus Cristo, a verdade dos Evangelhos, e, por conseguinte, havia uma relação estrita entre verdade e fé, dificilmente distintas. Nas fontes católicas relativas ao protestantismo essa fusão era bastante clara, uma vez que, ao mesmo tempo que a verdade era encarada como algo extremamente prático, era simultaneamente tratada como algo envolvido no mistério da realidade infinita de Deus.

Longe da visão contemporânea da verdade prática e subjectiva, pela qual cada um vive e com a qual se compromete, nas fontes católicas a verdade era definida como uma entidade inteiramente objectiva, representada no catolicismo e oposta ao protestantismo. Estabelecia-se um abismo entre o catolicismo como a «religião verdadeira», porque caracterizada pela unidade, catolicidade, apostolicidade e san- tidade; e o cristianismo evangélico, sem nenhuma dessas marcas. A Igreja Católica era a «depositária e possuidora da verdade»166 e todas as outras confissões religiosas que se diziam cristãs, designadamente as “seitas protestanticas” eram «[...] falsas Igrejas de Christo, e d’ellas, por isso, deve abster-se todo o verdadeiro christão, todo o que pretender seguir o verdadeiro christianismo»167. Por conseguinte, faltando- -lhe esse fundamento, o protestantismo surgia como uma religião fantástica, até porque não poderiam existir duas fés verdadeiras168 e uma vez que a Igreja Católica era a verdadeira, o cristianismo evangélico era necessariamente falso.

Do ponto de vista católico, dessa falsidade resultava necessariamente, a inefi- ciência do cristianismo reformado, uma vez que se justapunha à inexistência de meios de salvação e elementos mediadores, o distanciamento, e mesmo oposição, em relação à verdade, «[...] portanto o seu edifício, por muito bello e seductor que fosse, não poderia passar de cousa fantástica [...] sem resultado algum para o fim de ligar o homem com Deus [...] ou conseguir aquelle a salvação eterna, que é o fim ultimo da religião»169. Em última instância, o maior erro do protestantismo,

para os católicos, era não ser católico, isto é, todas as críticas e subsequentes repre- sentações em relação ao cristianismo reformado se baseavam nas diferenças do mesmo em relação à doutrina e às práticas católicas. O que mais importava não era o conteúdo dessa crença, mas o facto da mesma não ser católica, já que aí sim residia a verdade.

166 D. Américo, bispo do Porto – Instrucção Pastoral sobre o Protestantismo, p. 39. 167 Manuel de Albuquerque – A Verdadeira Igreja de Christo, p. 58.

168 Depois de esclarecido e sucessivamente repetido que a Igreja Católica era a verdadeira, Manuel de Albu-

querque esclarecia que tudo se poderia aliás resumir a uma questão de lógica: «Se a Igreja protestante fosse a verdadeira Igreja apostólica, não o seria a Igreja Romana, porque, combatendo-se quanto á doutrina, só uma póde ser a verdadeira. [...] Basta ponderar que a Igreja Romana se conserva no seu posto há desanove séculos, sustentando sempre a mesma doutrina, enquanto que a igreja protestante appareceu somente quinze séculos depois e é uma babel ou confusão em material doutrinal.» (Manuel de Albuquerque – A Verdadeira

Igreja de Christo, p. 102-103).

169 D. João Maria Pereira d’Amaral e Pimentel, bispo de Angra do Heroísmo e Ilhas dos Açores – Carta

pastoral sobre o protestantismo, p. 2-3.

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Procurar compreender aquilo que era o protestantismo, ainda que para demonstrar a sua ilegitimidade, ineficácia e desonestidade, era também definir o que significava ser-se protestante, o que acabou por resultar na construção daquilo que poderíamos denominar como um protestante-tipo. O conjunto das fontes transmitia a imagem do cristão reformado como um homem sem missão, um falso profeta, enganador, racionalista e frio, movido apenas por objectivos temporais, através de meios como a caridade estratégica e maliciosa, a sedução, a ardileza e a manha. O bispo do Porto sintetizava-o, em 1878, numa frase: «Eis então a que se reduz a decantada prédica evangélica: um missionario sem missão; um ensino sem doutrina; uma asserção sem crenças; um dogma sem fé; uma palavra sem auctoridade; um mestre sem discipulos; e um orador sem influencia em face d’um auditorio sem confiança»170. Demonstradas a falsidade e a ineficácia das doutrinas e práticas evangélicas, tornava-se então necessário assegurar que a socie- dade portuguesa, isto é, os católicos, não seriam influenciados ou seduzidos pelos apelos protestantes, revelando-se essencial, depois do alerta, a concretização de meios que contrariassem essa entrada das comunidades reformadas em Portugal, num ambiente que cada vez mais frequentemente se perspectivava como o de um conflito que era preciso travar.