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CAPÍTULO II – CRISTIANISMO CATÓLICO E CRISTIANISMO REFORMADO: PERSPECTIVAS E REPRESENTAÇÕES

5. OS CATÓLICOS E A DEFINIÇÃO DE TOLERÂNCIA E LIBERDADE RELIGIOSA

A discussão do lugar a ocupar pelas comunidades reformadas na sociedade portuguesa era também a discussão sobre o problema da tolerância e da liber- dade, sendo que, no discurso católico anti-protestante os dois termos nunca eram propriamente esclarecidos, uma vez que ou eram utilizados indiferenciadamente

228 D. Manuel Martins Manso – Duas pastorais contra o protestantismo sendo Bispo do Funchal. In Pinha-

randa Gomes – D. Manuel Martins Manso, p. 43. Acrescentava ainda: «Os hereges bretões fazem entrar a Religião falsa que professam no número de seus cálculos comerciais; para eles não há princípios fixos, não há dogmas permanentes».

229 Arquivo Histórico Diplomático – MNE – Soberania de Portugal na Zambézia, Miguel Martins d’Antas,

A. nº 5.

ou com vista à determinação de dois tipos de situação diferentes. Acima de tudo, tinham um sentido e uma abrangência bastante diversos daqueles que actualmente se lhes fornece, pelo que essas fontes católicas representam também uma fase da história desses conceitos.

Figuras como o Conde de Lavradio, que assumiam um discurso clara e agressivamente anti-evangélico, complementavam sempre as intervenções acerca do «fanatismo protestante», da descrição das suas consequências nefastas e da necessidade de protecção da Igreja Católica com a declaração de que tudo isso deveria ser posto em prática «sem offensa dos princípios de tolerância»230 de que se consideravam defensores. De acordo com o diplomata essa defesa da tolerância era compatível não só com o impedimento da entrada de missões anglicanas em território português mas também com os desígnios do Código Penal de 1852 que, criminalizando o proselitismo protestante, as manifestações públicas do culto evangélico, as conversões, etc., não deixava de fazer do Governo português o «[...] mais tolerante de quantos existem na Europa (sem exceptuar mesmo o de sua Magestade Britannica) [...]»231. Mais do que isso, o ministro plenipotenciário assumia-se como defensor da liberdade de consciência, da liberdade religiosa, mas também da liberdade civil, citando os artigos 145.º e 6.º da Carta Constitucional para legitimar o seu discurso232.

O argumento baseado na diferenciação entre o carácter civil e religioso da liberdade era comum como forma de inclusão em relação ao universo liberal mas também de exigência de protecção do catolicismo, sendo, por vezes, elevado até à sua forma mais radical, como uma distinção absoluta. Manuel de Albuquerque defendia a diferenciação entre o “tolerantismo político” e o “tolerantismo reli- gioso”, sendo que se o primeiro se poderia admitir, em defesa da tranquilidade pública, com o segundo a recusa era absolutamente intransigente, uma vez que, a admitir-se, seria «como se todas as religiões fossem egualmente verdadeiras»233. Por conseguinte, no primeiro caso, o horizonte da tolerância prendia-se ainda apenas com a necessidade de resolver problemas práticos, mas no segundo, não se

230 Arquivo Histórico Diplomático – MNE – Correspondência, 1852, Conde de Lavradio, Ofício nº 29. 231 Arquivo Histórico Diplomático – MNE – Correspondência, 1853, Conde de Lavradio, Ofício nº 105. 232 A propósito da missão de Gomez y Togar em Portugal, o Conde de Lavradio afirmava, dirigindo-se ao

Visconde d’Athouguia: «Não julge V. Exª que eu desejo inculcar ao Governo de Sua Magestade que tome medidas contra a liberdade de consciência, bem pelo contrário eu quero a liberdade religiosa como quero a civil, eu quero a observancia do §4.º do artigo 145.º da Carta Constitucional, mas quero também a obser- vancia das disposições do artigo 6.º. E, sobretudo, o que eu quero é cumprir o meu dever como Ministro de Sua Magestade nesta Corte, participando a V.Exª os projectos das Sociedades Protestantes d’Inglaterra [...]» (Arquivo Histórico Diplomático – MNE – Correspondência, 1853, Conde de Lavradio, Ofício nº 105). A sobrevalorização do artigo 6.º em relação ao 145.º é clara em todo o discurso do Conde de Lavradio e, neste caso, é sobretudo reforçada pelo facto do diplomata tomar como uma obrigação adstrita às suas funções a transmissão de informações relativas às actividades das comunidades reformadas em Inglaterra.

233 Manuel de Albuquerque – A verdadeira Igreja de Christo, p. 8.

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admitia sequer o conceito de tolerância. O próprio autor assumia: «[...] seja qual for a religião que se professe, os seus adeptos serão naturalmente intolerantes»234.

Manuel de Albuquerque assumia-se como tal. Aliás, a intolerância surge, geral- mente, entre as confissões religiosas como forma de identidade e quando têm a capacidade de recorrer ao poder político com vista à imposição da sua verdade, e era precisamente isso que acontecia com a Igreja Católica em Portugal.

Sob outros prismas, a literatura anti-protestante acabava por chegar às mes- mas conclusões, com algumas variantes a considerar. A definição da liberdade era também analisada a partir da exigência de harmonia entre a religião e a verdade. A problemática da tolerância era inseparável do problema do conhecimento, uma vez que a esmagadora maioria das posições católicas eram declaradas em nome da “Verdade” e surgia como inconcebível fornecer um lugar ao erro e à negação dessa mesma verdade. Estas premissas serviam então de base a posições como as de D. Luiz Maria da Silva Ramos que defendia: «O direito, que é uma causa essencialmente boa, por que é a expressão da justiça, não pode conceder ao erro os mesmo direitos que á verdade, nem ao mal os mesmos foros que ao bem. [...] Só há liberdade para o bem. Assim como o erro provém do abuso ou da errada direcção da liberdade»235. Assim sendo, a heresia estava para além das fronteiras da liberdade, que, no entanto, não deixava de ser considerada como essencial. Aquela recusa da integração do protestantismo, que envolveria também alguma aceitação, era interpretada não como uma limitação dessa liberdade mas antes como o meio de evitar os abusos em relação à mesma236. A compreensão do outro religioso seria

a deturpação desse conceito de liberdade e não a extensão da amplitude da mesma. No mesmo sentido, entendia-se que a imposição divina de uma revelação sobrenatural era impeditiva da aceitação e reconhecimento da legitimidade da igualdade de outras confissões religiosas que não a católica. Confrontados com a reclamação da liberdade de cultos por parte de membros das comunidades

234 Manuel de Albuquerque – A verdadeira Igreja de Christo, p. 8. D. Luiz Maria da Silva Ramos declarava

também abertamente que «A verdade é a essência do Christianismo e a intolerância é a expressão genu- ína da caridade. O Christianismo deixaria de ser uma religião verdadeira e cheia de amor, para se tornar falsa e cruel, se transigisse com o erro, e ensinasse ao homem que em qualquer seita poderia salvar-se.» (D. Luiz Maria da Silva Ramos – A Liberdade de Consciência considerada philosophica, religiosa e socialmente. Conferência recitada na Sé Cathedral de Coimbra. Porto-Braga: Livraria Internacional Ernesto-Eugénio Chardron, 1878, p. 27).

235 D. Luiz Maria da Silva Ramos – Affirmações catholicas, p. 491. As posições de Manuel de Albuquerque em

relação ao “tolerantismo religioso” também se baseavam nessa ideia de que «[...] a verdade nunca transige com o êrro, pois são dois inimigos, que se defrontam, [...], e que se repellem, como a luz às trevas. A verdade religiosa será sempre a negação do êrro religioso, e este êrro será sempre a negação d’aquella verdade, porque a verdade e o erro são uma radical anthitese [...]» (Manuel de Albuquerque – A verdadeira Igreja de Christo, p. 9).

236 D. Luiz Maria da Silva Ramos esclarecia: «É necessário não confundir a liberdade com o abuso que d’ella

se póde fazer. Mal da sociedade onde se arvorasse o principio da liberdade omnimoda de pensamento» (D. Luiz Maria da Silva Ramos – A Liberdade de Consciência, p. 18).

reformadas, alguns representantes do catolicismo consideravam que isso equi- valeria a consignar como verdadeiro o princípio de que as leis políticas do país deviam permitir o exercício público de qualquer confissão religiosa. A equivalên- cia revelava-se aliás bastante rigorosa, mas era precisamente essa ideia que esses católicos contestavam. Manoel Felippe Coelho afirmava a esse propósito: «Assim pois o politheismo, o fetichismo, a religião de Confúcio, de Brahma, de Bouddha, o Judaísmo, o Mahometismo, qualquer das religiões protestantes ou gregas dissiden- tes, e não sei se também o Catholicismo, todos são chamados a tomar parte n’este publico convívio da liberdade. Outro tanto não digo eu, porque o não ensinam Jesus Christo, os Apóstolos, a Igreja nem a razão»237. Por conseguinte, não se negava apenas a liberdade religiosa mas também a liberdade de cultos, o que aliás era cor- roborado pela legislação penal, e essa recusa alicerçava-se na definição da liberdade de cultos como anti-cristã, anti-eclesiástica e irracional, o que, sendo aceite, deitava por terra qualquer tipo de tentativa de integração da pluralidade religiosa.

Acrescentava-se a essa incompatibilidade o facto da liberdade de cultos ser também perspectivada como um potencial instrumento de manipulação e não um fim em si mesma, no sentido da sua utilização como um meio de protes- tantização da população portuguesa238. A definição e hiperbolização do “perigo protestante”, sucessivamente reiteradas, alimentavam precisamente essa noção de um movimento que aguardava a estruturação das circunstâncias que lhe permi- tiriam expandir-se.

Em última instância, perante a presença do cristianismo evangélico e as recla- mações das comunidades reformadas, a liberdade era objecto da exigência dos próprios católicos que consideravam que a mesma devia ser consignada única e exclusivamente à Igreja Católica, uma vez que esta «[...] nasceu para ser completa- mente livre e imperar em toda a terra. As restantes, como falsas, não podem gozar as mesmas franquias da verdadeira; e não tendo o beneplácito do Creador, também das creaturas não deviam esperar um peremptório acolhimento»239. Por essa razão,

a religião católica era a única que deveria ser abraçada e defendida pelo Estado e, consequentemente, a única a que o Estado devia protecção.

Mesmo quando se procurava reconhecer a necessidade de construção de uma plataforma de tolerância, a mesma era entendida como uma concessão e uma aceitação passiva dos erros do outro, não como um espaço de liberdade. Por con-

237 Manoel Felippe Coelho – Refutação das principaes objecções d’alguns protestantes, p. 130.

238 Em reacção à posição de Guilherme Dias relativa à defesa da liberdade de cultos, Manoel Felippe Coelho

afirmava: «Pois hei-de crer que os intuitos do Autor da Resposta consistem em pedir a autonomia dos cultos unicamente para que o seu symbolo possa trabalhar mais á vontade na conquista do solio e obrigar depois as restantes communhões a curvarem-se diante d’elle como servos humildes? Não supponho a existência de tão louco projecto.» (Manoel Felippe Coelho – Refutação das principaes objecções d’alguns protestantes, p. 136).

239 Manoel Felippe Coelho – Refutação das principaes objecções d’alguns protestantes, p. 138.

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seguinte, embora os outros cultos pudessem ser permitidos, «o Estado porém não dev[ia] conceder aos cultos bastardos e falsos uma representação pública, mas [...] só um exercício “doméstico, particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo”»240. O conceito de tolerância não era pois concebido como um reconhecimento do direito a diferentes posições sobre a liberdade reli- giosa, mas sim como uma admissão de uma diferenciação religiosa que deveria, progressivamente, ser corrigida, através dos meios de combate anteriormente analisados. A tolerância era perspectivada como um mal necessário e não como um objectivo a atingir.

240 Manoel Felippe Coelho – Refutação das principaes objecções d’alguns protestantes, p. 139. Acrescentava

ainda: «Praza a Deus que nunca vingue no meu formoso paiz qualquer tentativa para riscar da sua lei Cons- titucional a Religião Catholica, Apostólica, Romana, porque não vejo outra cousa, que possa substituil-a, a não ser o mau e o peor» (Manoel Felippe Coelho – Refutação das principaes objecções d’alguns protestantes, p. 139).

C A P Í T U L O I I I

A CONSTRUÇÃO DE ESPAÇOS DE PLURALIDADE RELIGIOSA: