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CAPÍTULO IV – O CONTEXTO DA LEI DA SEPARAÇÃO REPUBLICANA

2. A LEI DA SEPARAÇÃO DA IGREJA DO ESTADO

Aprovada pelo Governo Provisório a 20 de Abril de 1911, a Lei da separação da Igreja do Estado representou um momento fundamental na acção do novo regime e um instrumento essencial no verdadeiro conflito que então se desenvolvia com a Igreja católica30. A liberdade de cultos constituía a base de um articulado

desenvolvido ao longo de sete capítulos e cento e noventa e seis artigos e assente simultaneamente na sobreposição da autoridade civil em relação à autoridade ecle- siástica, com vista à submissão do poder eclesiástico em relação ao poder civil31.

29 Bernardino Machado citado por A. H. de Oliveira Marques e Fernando Marques da Costa – Bernardino

Machado, p. 111.

30 Assinaram a lei: Teófilo Braga, António José de Almeida, Afonso Costa, José Relvas, António Xavier

Correia Barreto, Amaro de Azevedo Gomes, Bernardino Machado e Manuel de Brito Camacho.

31 Disperso por vários artigos, essa disposição da submissão era particularmente evidente no artigo 48.º,

onde se determinava que «O Ministro de qualquer religião, que, no exercício do seu ministério, ou por occasião de qualquer acto do culto, em sermões, ou em qualquer discurso publico verbal, ou em escrito, publicado, injuriar alguma autoridade publica ou atacar algum dos seus actos, ou a forma do governo ou as leis da Republica, ou negar ou poser em duvida os direitos do Estado consignados neste decreto e na demais legislação relativa ás igrejas, ou provocar a qualquer crime, será condemnado na pena do artigo 137.º do código penal e na perda de benefícios materiaes do Estado» (Lei da Separação da igreja do Estado decretada

pelo Governo Provisório da República Portugueza em 20 de Abril de 1911. Lisboa: Francisco Franco, [s.d.], p.

11). Em circular de 1 de Julho de 1911, Bernardino Machado, o ministro da Justiça interino, confirmava essa imprescindibilidade da obediência eclesiástica, avisando: «O Governo não pode consentir que ministros de religião que devem dar o exemplo de respeito para com os poderes públicos, estando sob um regime de

CAPÍTULO IV – O CONTEXTO DA LEI DA SEPARAÇÃO REPUBLICANA

A lei era encetada com o reconhecimento e a garantia, por parte da Repú- blica, da «[...] liberdade de consciência a todos os cidadãos portuguezes e ainda aos estrangeiros que habitarem o território portuguez»32, determinando tam-

bém que a religião católica romana deixava de ser a religião do Estado e que se autorizavam todas as igrejas ou denominações religiosas, com a condição de respeito pela moral pública e pelos princípios do direito português33. Na

sequência dessas determinações, o Estado deixava de subsidiar o culto34, abolia as côngruas impostas aos paroquianos35 e autorizava a prossecução de práti-

cas religiosas em casas com formas exteriores de templo a todas as confissões religiosas36.

O propósito da Lei da Separação não se cingia, pois, à consignação da liber- dade de consciência e de culto, mas também à implementação de um novo tipo de comunidade política, baseada na necessidade de consolidação de um clero nacional devidamente supervisionado, no controlo dos bens da Igreja pelo poder civil e político, na restrição do poder de associação das comunidades religiosas para além das acções de beneficiência e de assistência37, e, enfim, na

discussão e de opinião, dentro do qual a razão será sempre reconhecida a quem a tenha, em vez de repre- sentarem contra qualquer lei, para sua modificação e aprefeiçoamento, se levantem em rebelião, protestando hostilmente contra ela. [...] Representar contra uma lei é cumprir o dever de acatar o Estado soberano que decretou, e prestar-lhe apoio para melhorar a sua obra em bem da sociedade» (Lei da Separação do Estado

das Igrejas anotada. Porto: Companhia Portuguesa Editora, 1914, p. 53).

32

Cf. Art. 1.º da Lei da Separação da Igreja do Estado. In Lei da Separação da Igreja do Estado, p. 2.

33

O artigo 2.º determinava: «A partir da publicação do presente decreto com força de lei, a religião catholica apostólica romana deixa de ser a religião do Estado e todas as egrejas ou confissões religiosas são egualmente auctorisadas, como legitimas agremiações particulares, desde que não offendam a moral publica nem os princípios do direito politico portuguez» (Lei da Separação da Igreja do Estado, p. 2).

34 De acordo com o artigo 4.º: «A Republica não reconhece, não sustenta, nem subsidia culto algum; e,

por isso, a partir de 1 de Julho próximo futuro, serão supprimidas nos orçamentos do Estado, dos corpos administrativos locaes e de quaesquer estabelecimentos públicos todas as despezas relativas ao exercício dos cultos» (Lei da Separação da Igreja do Estado, p. 2).

35 O artigo 156.º decretava: «A partir da publicação do presente decreto com força de lei, consideram-se

extinctas, e são em todo o caso extinguíveis em juízo, as prestações em dinheiro ou géneros, com que os parochianos, por uso e costume, soccorriam o seu parocho, comprehendendo-se n’esta extincção as oblatas ou obradas, as premicias, os sobejos de cera e os demais benesses; e também são inexigíveis em juízo, salvos os casos dos artigos seguintes, os encargos de funeraes, enterramentos, officios, nocturnos, exéquias e bens da alma e quaesquer outros suffragios» (Lei da Separação da Igreja do Estado, p. 34).

36 No artigo 7.º consignava-se que «O culto particular ou domestico de qualquer religião é absolutamente

livre e independente de restricções legais» e no artigo 8.º: «É tambem livre o culto publico de qualquer religião nas casas para isso destinadas, que podem sempre tomar forma exterior de templo; [...]» (Lei da

Separação da Igreja do Estado, p. 2-3).

37 Entre outros, o artigo 169.º determinava que «Emquanto não for publicada a nova lei sobre o direito de

associação, fica prohibida a constituição de novas corporações exclusivamente destinadas a culto, ou somente de piedade que não deva considerar-se assistência ou beneficência, não podendo as que porventura existam n’essas condições conservar a individualidade jurídica, e devendo por isso transformar-se em harmonia com este decreto até 31 de dezembro de 1911 sob pena de serem extinctas [...]» (Lei da Separação da Igreja do

Estado, p. 33-34).

concretização de um projecto secularizador38 e, nalguns elementos, inclusiva- mente laicizante.

A nação portuguesa deveria então ocupar o lugar exclusivo como objecto de uma crença colectiva, afirmando-se uma «confiança inquebrantável nos superiores destinos da Pátria, dentro de um regime de liberdade e justiça»39,

onde todos os outros cultos eram tolerados e permitidos, ao mesmo tempo que se procurava controlar e restringir a sua influência na vida pública. No entanto, essa visão positivista da religião e a subvalorização do papel da Igreja católica e definição da mesma como uma organização reaccionária potenciaram a discussão de uma Lei da Separação que acabaria também por determinar a demarcação de sectores conflituosos no interior do movimento dos apoiantes da República e as divisões que daí resultaram. De facto, a Lei da Separação, mais do que qualquer outra medida, transformou-se na problemática fundamental da República. Análises historiográficas actuais definem a Lei como “o grande acto da República”, ao mesmo tempo que afirmam: «Nunca nenhuma lei em Portugal teve um nome tão enganador. Como reclamaram os bispos e reconhe- ceram os chefes republicanos, não se tratava de uma “separação”, mas de uma “integração”»40, no sentido em que não só se deixava de reconhecer a religião católica como religião do Estado, como deixava de se reconhecer o seu papel na sociedade portuguesa e, sobretudo, se procurava extinguir esse papel. Essa separação que, com mais rigor, se poderia definir como uma integração, acabou enfim por ser a tradução de uma vontade de dominação do novo regime sobre o catolicismo romano e, num sentido mais lato, sobre o fenómeno religioso, o que provocou reacções não apenas de católicos, mas também de protestantes. Deste modo, esse articulado legislativo que procurara, na sua origem, garantir a consolidação e firmeza do regime republicano, acabou, no entanto, por se apresentar como a origem da sua fragilização e a raíz das clivagens que cedo se fizeram sentir junto dos seus apoios.

38 A título de exemplo refira-se aqui o caso dos cemitérios onde, a partir de então, e de acordo com o artigo

56.º, «[...] poderão celebrar-se separadamente as cerimonias cultuaes funerárias de qualquer religião ou sem religião alguma [...]» (Lei da Separação da Igreja do Estado, p. 12). Em instruções posteriores, esclarece-se que devem ser «[...] secularisadas as capelas de todos os cemitérios municipais e paroquiais, retirando-se delas os símbolos litúrgicos e religiosos [...]» (Instruções do Ministério do Interior de 11 de Fevereiro de 1913. Lei da Separação do Estado das Igrejas anotada, p. 8-9). Face à contestação, com origem sobretudo nos sectores católicos, que se seguiu a essas determinações, a Comissão Central de Execução da Lei da Separação, esclarecia através de parecer de 7 de Junho de 1913, que as mesmas tinham sido tomadas «Attendendo a que a secularisação torna os cemitérios e as suas capelas como que terreno neutro a todas as religiões; e desse modo não impede que os católicos nelas continuem a sufragar a alma dos seus defuntos e permite que os não católicos, sem repugnância, nelas celebrem as suas cerimonias funerárias» (Lei da Separação do Estado

das Igrejas anotada, p. 61-62).

39 Constituição de 1911. In As constituições portuguesas, p. 209.

40 Rui Ramos – A cultura republicana. In História de Portugal. Dir. de José Mattoso, vol. 6. Lisboa: Círculo

de Leitores, 1994, p. 407.

CAPÍTULO IV – O CONTEXTO DA LEI DA SEPARAÇÃO REPUBLICANA

De qualquer modo, a Constituição de 1911, promulgada a 21 de Agosto desse mesmo ano41, procurou ainda solidificar as posições emitidas na Lei da Separação,

reforçando o princípio fundamental da liberdade de consciência, decretando a neutralidade religiosa e garantindo uma série de direitos até aí ausentes da legis- lação portuguesa. A neutralidade religiosa alicerçava-se: no reconhecimento da igualdade politica e civil de todos os cultos42 e garantia do seu livre exercício43,

na secularização dos cemitérios públicos44, na neutralidade do ensino ministrado nas escolas públicas e particulares fiscalizadas pelo Estado45, na manutenção da

legislação contra a entrada, em Portugal, de todas as congregações religiosas e ordens monásticas46; na obrigatoriedade e exclusividade do registo civil47, e no direito de resistência a qualquer ordem que infringisse as garantias individuais, se não estivessem legalmente suspensas48. Por seu lado, no que diz respeito aos direitos, consignava-se: a liberdade de consciência e de crença49, a liberdade de expressão50, a liberdade de reunião e de associação51 e a inviolabilidade do domi-

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A Carta Constitucional de 1826 não foi automaticamente abolida a 5 de Outubro de 1910, tendo con- tinuado em vigor durante os dez meses que se seguiram à implantação do regime e que precederam a Constituição de 1911. Porém, em termos práticos, a Carta deixou efectivamente de existir a 5 de Outubro, sendo que o país se regia por decretos ditatorialmente emanados do Governo Provisório da República.

42

De acordo com o §5.º do artigo 3.º «O Estado reconhece a igualdade politica e civil de todos os cultos e garante o seu exercício nos limites compatíveis com a ordem publica, as leis e os bons costumes, desde que não ofendam os princípios do direito publico português» (As Constituições Portuguesas, p. 210).

43

O §8.º do artigo 3.º define: «É livre o culto publico do qualquer religião nas casas para isso escolhidas ou destinadas pelos respectivos crentes, e que poderão sempre tomar forma exterior do templo; mas, no interesse da ordem publica e da liberdade segurança dos cidadãos, uma lei especial fixará as condições do seu exercício» (As Constituições Portuguesas, p. 211).

44

Segundo o §9.º do artigo 3.º «Os cemitérios públicos terão carácter secular, ficando livre a todos os cultos religiosos a pratica dos respectivos ritos, desde que não ofendam a moral publica, os princípios do direito publico portugues e a lei.» (As Constituições Portuguesas, p. 211).

45

De acordo com o §10.º do artigo 3.º «O ensino ministrado nos estabelecimentos particulares públicos e particulares fiscalizados pelo Estado será neutro em matéria religiosa» (As Constituições Portuguesas, p. 211).

46

O §12.º do artigo 3.º determina que «É mantida a legislação em vigor que extinguiu e dissolveu em Portugal a Companhia de Jesus, as sociedades nela filiadas, qualquer que seja a sua denominação, e todas as congregações religiosas e ordens monásticas, que jamais serão admitidas em território portugues» (As

Constituições Portuguesas, p. 211).

47

O §33.º do artigo 3.º decreta que «O estado civil e os respectivos registos são da exclusiva competência da autoridade civil» (As Constituições Portuguesas, p. 213).

48

De acordo com o §37.º do artigo 3.º «É licito a todos os cidadãos resistir a qualquer ordem que infrinja as garantias individuais, se não estiverem legalmente suspensas» (As Constituições Portuguesas, p. 213).

49 O §4.º do artigo 3.º determina que «A liberdade de consciência e de crença é inviolável» (As Constituições

Portuguesas, p. 210).

50 Segundo o §13.º do artigo 3.º «A expressão do pensamento, seja qual for a sua forma, é completamente

livre, sem dependência de caução, censura ou autorização prévia, mas o abuso deste direito é punível nos casos e pela forma que a lei determinar» (As Constituições Portuguesas, p. 211).

51 O §14.º do artigo 3.º decreta que «O direito de reunião e associação é livre. Leis especiais determinarão

a forma e condições do seu exercício» (As Constituições Portuguesas, p. 211).

cílio52, destacando-se aqui aqueles que mais directamente se relacionavam com o exercício da religião.

Determinados os princípios legislativos que procuraram solucionar a questão religiosa, consensualmente definida como parte integrante da crise que o país atra- vessava desde finais do século XIX, multiplicaram-se as reacções em relação ao tipo de soluções seleccionadas e, sobretudo, em relação à exequibilidade dessas mesmas medidas. No seio do protestantismo português assistia-se à concretização de dois princípios há muito reclamados: a desconfessionalização do Estado português e a instituição da liberdade de cultos, mas testemunhava-se também uma progressiva subversão dos instrumentos e dos resultados que se pensava estarem adstritos a essa mesma liberdade.