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Antes de apresentar o estudo sobre a Comissão Nacional da Verdade, um dos objetos de reflexão desta pesquisa, é necessário esclarecer, primeiramente, o que significa uma Comissão da Verdade, sua natureza jurídica, seus objetivos, suas ações, atividades e resultados.

As Comissões da Verdade são mecanismos de justiça de transição para a apuração de abusos e violações de direitos humanos, amplamente aplicados em diversos países do mundo como uma forma de esclarecer o passado histórico, marcado por períodos de exceção ou de guerras civis. Seu trabalho consiste em escutar as vítimas e familiares de vítimas de arbitrariedades cometidas, coletar o depoimento dos perpetradores dessas violências, localizar e analisar os documentos oficiais e buscar arquivos ainda desconhecidos.

É importante salientar que as Comissões da Verdade são órgãos temporários, de assessoria a governos e com poderes para investigar todos os fatos ocorridos, bem como identificar as pessoas que participaram do processo, sejam as vítimas ou os algozes. Em geral, os mandatos que se atribuem às Comissões da Verdade para que possam desempenhar suas funções corretamente duram um determinado período de tempo, que varia de 6 meses a 3 anos, sendo que a maioria delas atua por cerca de dois anos.

Cada Comissão apresenta características próprias que refletem a diversidade de culturas dos países em que foram implementadas e de condições sob as quais se deram as violações de direitos humanos. Por isso, esses órgãos atuam de forma específica, de acordo com as intenções de cada Estado em relação à Comissão e do contexto histórico, político e social do período investigado. Sobre isso, Hayner (2001) explica que a reconciliação como objetivo, por exemplo, pode ou não constar no mandato, o que não significa que não haverá reconciliação no final do processo. As Comissões possuem menos poderes que as Cortes Internacionais, sendo suas investigações passíveis de uso para processos penais posteriores.

A partir da coleta de documentos, dados, informações, testemunhos e depoimentos, as Comissões devem elaborar um registro do passado histórico, isto é, uma espécie de memorial comprometido com a constituição da História silenciada dos países onde atuam. A partir desses parâmetros, os objetivos adicionais desses órgãos são:

 combater a impunidade: significa identificar e revelar as causas, os desdobramentos históricos, o modus operandi, os motivos que levaram o Estado a cometer os atos de violência e repressão e, por fim, apontar os agentes envolvidos nos crimes de lesa- humanidade. Com isso, as Comissões auxiliam os Estados e as sociedades a desvendarem o passado e as responsabilidades que ficaram pendentes, bem como a definirem políticas públicas de proteção aos direitos humanos e de combate à impunidade;

 recuperar a dignidade das vítimas e familiares: por meio da coleta de depoimentos e testemunhos é possível resgatar a dignidade das pessoas e reconhecer que sua trajetória de vida também faz parte da História do país;

 responsabilizar o Estado pelos crimes ocorridos e recomendar reformas às instituições: o reconhecimento público e oficial dos abusos cometidos pelo Estado apresentado nos relatórios das Comissões é de vital importância para a implantação de reformas institucionais, tanto no setor judiciário como no setor educacional;

 contribuir para a justiça e a reparação: o relatório final das Comissões podem servir para a movimentação de processos de criminalização e punição daqueles que cometeram os crimes de lesa-humanidade;

 reduzir conflitos e promover a reconciliação e a paz: para as vítimas dos abusos e das violências cometidas, a reconciliação e a paz estão relacionadas a Justiça, ou seja, o reconhecimento oficial da responsabilidade daqueles que cometeram os crimes contra os direitos humanos a mando do Estado.

Os membros escolhidos para participar das Comissões da Verdade são pessoas de prestígio social, reconhecidas e respeitadas pela idoneidade moral e intelectual. Em geral, as Comissões da Verdade evitam designar vítimas ou perpetradores para atuar como membros ativos, bem como representantes de partidos políticos e pessoas ligadas aos órgãos públicos envolvidos nos atos de violência. Ademais, os membros, assessores e pesquisadores devem ter autonomia, estabilidade e imunidade para desenvolver os trabalhos. As Comissões também devem ter orçamentos próprios e de poder para a tomada das decisões que lhe cabem.

Os membros devem estabelecer critérios objetivos para a convocação das testemunhas, bem como uma postura correta no tratamento dos materiais coletados. Suas atribuições devem ser amplas para que possam solicitar a presença de testemunhas, a abertura de arquivos, o encaminhamento de documentos oficiais e visitas aos locais em que ocorreram os crimes denunciados pelas vítimas e familiares de mortos e desaparecidos políticos.

Apesar de possuir poderes para investigar os crimes cometidos contra a humanidade, as Comissões da Verdade não são aceitas pelo direito internacional dos direitos humanos como órgãos substitutivos de instituições judiciárias de investigações. E tampouco podem aplicar

medidas punitivas ou executar ordens penais.

O resultado do seu trabalho é algo mais sutil, entendido como revelação da “memória histórica” e da “verdade histórica” em contraponto à “memória oficial” e à “verdade jurídica”. No direito internacional, o consenso que aponta para autonomia entre justiça e verdade histórica ainda prevalece. Cabe às vítimas e à sociedade exigir das instituições judiciárias a responsabilização judicial dos envolvidos nas graves violações de direitos humanos. É importante frisar que as Comissões da Verdade “não substituem a obrigação do Estado de estabelecer a verdade e assegurar a determinação judicial de responsabilidades individuais, através dos processos judiciais penais”, conforme decidido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.98

Ou seja, a Corte Interamericana, em sua jurisprudência, considera que a busca pela verdade, mediante procedimentos extrajudiciais, não substitui o dever de apurar e penalizar os autores desses atos no âmbito judicial. Desse modo, as Comissões da Verdade se constituem como instrumentos de satisfação do dever de revelar a “memória histórica” e a verdade dos fatos, com o estabelecimento das responsabilidades institucionais e a apresentação de um relatório final com as minúcias do regime que oprimiu e violou e as recomendações para o aprimoramento das instituições do Estado no que se refere aos direitos humanos. Já os processos penais tratam da produção da “verdade judicial”, dos atos ilícitos cometidos pelas pessoas e de suas responsabilidades.

É importante frisar que a criação da Comissão da Verdade no Brasil foi “objeto de desejo” do movimento por memória e verdade por vários anos. Desde 2007, essa questão tornou-se recorrente e passou a ocupar espaço privilegiado na agenda do poder executivo e das instituições correlacionadas.

Em 2009, o poder executivo encaminhou um projeto de lei para a criação da Comissão Nacional da Verdade, que só veio a ser aprovado pelo Congresso Nacional em 2011, após muita negociação entre o poder executivo, os partidos políticos e as Forças Armadas.

Assim, em 18 de novembro de 2011, foi sancionada a Lei nº 12.528/2011, responsável por criar a Comissão Nacional da Verdade, como um órgão vinculado à Casa Civil da Presidência da República, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade históricas e promover a reconciliação nacional (art. 1º). Nota-se que a lei não atribuiu à Comissão a tarefa jurisdicional ou persecutória (art. 4º § 4º), atividade que somente pode ser realizada judicialmente, por iniciativa do

Ministério Público (Constituição Federal, art. 129, I).

A partir dessa definição, a Comissão Nacional da Verdade organizou suas ações de acordo com três finalidades: (a) promover o direito à memória; (b) efetivar a verdade histórica; (c) promover a reconciliação nacional.

A promoção do direito à memória e à verdade é objetivo comum a todas as Comissões da Verdade e integra-se a uma lista de medidas de Justiça de Transição que trataremos logo abaixo, quando discutirmos a classificação das atividades desenvolvidas pela CNV.

Aspecto que merece observação é o efeito que a distância temporal entre os fatos investigados e a criação da CNV produziu no desenvolvimento de seu trabalho e no relatório final. O fato é que enquanto na maioria dos países as Comissões foram implantadas logo após o fim dos regimes autoritários, no Brasil, há um intervalo muito grande de tempo, superior a 50 anos em relação a 1964, data do Golpe civil-militar. É evidente que esse intervalo de tempo trouxe várias consequências tanto boas quanto ruins para os trabalhos desenvolvidos pela CNV. Como consequência ruim ou negativa, temos a dificuldade que o próprio tempo produz na coleta de documentos e testemunhos e também na localização dos restos mortais de desaparecidos políticos. E como consequência boa ou positiva, temos a distância das disputas políticas da época da ditadura, o que permitiu uma maior clareza sobre as causas políticas, econômicas, culturais e jurídicas que levaram a instauração da ditadura civil-militar no país. Com base nessas questões, a CNV conseguiu prospectar recomendações mais propositivas ao poder executivo, visando a não repetição das graves violações de direitos humanos.

Outro aspecto que também chama a atenção são as medidas de reconciliação prevista no art. 1º e reafirmada no inciso VI, do art. 3º. A reconciliação está diretamente relacionada a um processo de restabelecimento de vínculos entre a sociedade, o Estado e suas instituições. A expectativa é que esse processo de restabelecimento da verdade histórica permita, ao final, que as pessoas voltem a confiar no Estado, de promover a segurança e o bem comum. Para isso, torna-se indispensável a adoção de medidas de reforma das instituições estatais, em especial os setores militar, judiciário e educacional.

Cabe frisar que reconciliação é diferente de perdão. Enquanto a reconciliação trata do restabelecimento de relações entre a sociedade e o Estado por meio de medidas de reparação moral e material, o perdão é uma atitude pessoal, muito subjetiva e não cabe ao Estado ou a qualquer outra instituição impor às vítimas essa decisão. Assim, a Comissão da

Verdade não tem poderes para exigir o perdão, mas pode criar condições favoráveis para que as vítimas consigam decidir por isso.

Importante salientar que a reconciliação não depende única e exclusivamente dos esforços da Comissão Nacional da Verdade, mas de um movimento conjunto que envolve as vítimas, os algozes e o Estado.

Considerando todos esses elementos, coube à CNV apurar as graves violações de direitos humanos, depurar as causas e os efeitos que esses fatos geraram na vida das vítimas e na história do país e fazer com que o Estado brasileiro reconhecesse, perante as vítimas, a autoria de seus atos. A partir do desenvolvimento dessas ações, foi possível começar a vislumbrar uma relação de reconciliação entre vítimas e algozes, ou seja, entre Estado e sociedade.

Além de atuar no campo da reconciliação, a Comissão Nacional da Verdade também cumpre um papel importante em relação à garantia dos direitos à memória e à reparação das vítimas, e, sobretudo, para a reforma das instituições do Estado, que se envolveram com a prática dos crimes investigados. Desse ponto de vista, a Comissão não é uma mera apuradora de fatos, mas também formuladora de políticas públicas voltadas ao aprimoramento das instituições democráticas do país.

A análise da Lei 12.528 de 2011, apontou que a norma legal atribuiu objetivos bem amplos à Comissão Nacional da Verdade, os quais permitiram ao órgão desenvolver uma série de atividades, sejam elas: atividades investigativas e de pesquisa; atividades em defesa dos direitos humanos; atividades de preservação da memória histórica e de promoção de políticas de memória; e atividades propositivas. Logo abaixo, abordaremos cada uma dessas atividades e apresentaremos parte dos resultados alcançados pela Comissão, segundo o relatório final elaborado pela mesma.

4.1.1 As atividades investigativas e de pesquisa

O relatório final entregue pelo CNV ao governo federal está dividido em três Volumes. O primeiro volume, apresenta informações sobre o processo de criação da Comissão Nacional da Verdade, objetivos e métodos de trabalho; as estruturas do Estado e as graves violações de direitos humanos; métodos e práticas nas graves violações de direitos humanos e suas vítimas; dinâmica das graves violações de direitos humanos: casos emblemáticos, locais e autores; conclusões e recomendações. O volume é assinado coletivamente pelos seis membros do colegiado: José Carlos Dias, José Paulo Cavalcanti Filho, Maria Rita Kehl, Paulo Sérgio Pinheiro, Pedro Dallari e Rosa Cardoso.

No segundo volume, a CNV reúne um conjunto de nove textos produzidos sob a responsabilidade de alguns membros da CNV. Parte desses textos têm origem nas atividades desenvolvidas em grupos de trabalho constituídos no âmbito da Comissão, integrando vítimas, familiares, pesquisadores relacionados aos temas investigados. Neste bloco o relatório trata, portanto, de graves violações de direitos humanos em segmentos, grupos ou movimentos políticos e sociais. Sete textos mostram como militares, trabalhadores e estudantes organizados, camponeses, indígenas, homossexuais, universidade e igrejas cristãs foram afetados pela ditadura e a repressão e qual papel esses grupos exerceram enquanto participantes do movimento de resistência no país. É no volume II do relatório que é abordada a relação da sociedade civil e a ditadura. Um dos capítulos finais analisa o apoio civil à ditadura, notadamente de empresários (como apontado na introdução do trabalho) e outro, a resistência dos setores da sociedade às graves violações de direitos humanos.

O volume III é integralmente dedicado ás vítimas. Nele, 434 mortos e desaparecidos políticos têm reveladas sua vida e circunstância de sua morte, “tragédia humana que não pode ser justificada por motivação de nenhuma ordem”, como afirma a apresentação final da CNV. Sobre essa publicação, os membros da CNV argumentam que

Os relatos que se apresentam nesse volume, de autoria do conjunto dos conselheiros, ao mesmo tempo que expõem cenários de horror pouco conhecidos por milhões de brasileiros, reverenciam as vítimas de crimes cometidos pelo Estado brasileiro e por suas Forças Armadas, que, no curso da ditadura, levaram a violação sistemática dos direitos humanos à condição de política estatal.

Dentre os diversos casos de graves violações de direitos humanos investigados pela CNV, escolhemos analisar os temas que seguem abaixo.

4.1.1.1 Quantificação das violações de direitos humanos

Até a entrega do relatório final da CNV, o país não sabia ao certo o número de vítimas da repressão durante a ditadura militar. Até então, o que havia era uma relação de mortos e desaparecidos políticos,