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PENSANDO SOBRE POLÍTICA DE MEMÓRIA HISTÓRICA: A EXPERIÊNCIA DA RBMVJ

Com o passar do tempo, nota-se que a RBMVJ vem incorporando, em sua pauta de reivindicações e em sua agenda de estratégias e ações prioritárias, o termo “política de memória histórica”.

Ainda que no Brasil esse processo não seja tão intenso como o que ocorre na Argentina, foi a partir do I Encontro da RBMVJ, em Cajamar, que o movimento incorporou o termo ao seu rol de reivindicações, entendido como “todas aquelas iniciativas de caráter público (não necessariamente político) destinadas a difundir ou consolidar determinada interpretação de algum acontecimento do passado de grande relevância para determinados grupos sociais ou políticos, ou para o conjunto de um país” (FERNANDÉZ, 2008, p. 52).

Como podemos observar, essa temática – política para a memória histórica – pode ser formulada no âmbito das iniciativas que se reivindica, como movimentos políticos ligados aos direitos humanos. Na visão dos membros da Rede, isso exige um amplo debate público envolvendo governo, partidos políticos, parlamento, vítimas da ditadura e sociedade, além de outros movimentos sociais correlatos, não como debate privado entre os mais diretamente interessados, onde os acordos políticos são mais permeáveis a impunidade.

Assim, a criação de políticas públicas voltadas à preservação da memória histórica depende não só de uma conjuntura de correlação de forças entre os grupos hegemônicos no campo político, mas também de profundas mudanças diante dos esgotamentos de referenciais

43 Disponível em: http://apublica.org/tag/ditadura. Acesso em: 25/01/2016.

44 Site do Armazém Memória: http://www.armazemmemoria.com.br. Acesso em:

25/01/2016.

45 Site Documentos Revelados: http://www.documentosrevelados.com.br/o-site. Acesso

fundamentados na ideia de bem-estar social, pressionados pelas constantes crises provocadas pelo avanço das políticas econômicas neoliberais nas últimas décadas.

A perspectiva defendida por autores liberais, como Norberto Bobbio em a Era dos Direitos, que propõe que “direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem, reconhecidos e protegidos, não há democracia, sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos” (BOBBIO, 1992).

De acordo com as perspectivas compartilhadas entre as organizações da RBMVJ e seus respectivos membros, a universalidade dos direitos humanos defendida por Bobbio não é viável e está submetida a determinadas restrições, como afirma Antônio Carlos Fon, membro da RBMVJ e do Comitê Paulista, ao afirmar que

O regime político liberal, não disseminou a liberdade plena e a igualdade entre as pessoas, mas consolidou uma cultura fundamentada na domesticação dos conflitos entre as classes sociais, em troca de políticas de segurança e bem- estar social (Informação verbal).46

O que se postula aqui é que há uma contradição absoluta revestindo as relações sociais, na medida em que um sistema de desigualdade, como esse gerado pela economia internacional capitalista, não permite que todos os seres humanos e todos os povos gozem os mesmos direitos. Ou seja, “o não reconhecimento dessa contradição é, assim, a condição de legitimidade perante o que Bobbio chama de resistências, sem o que um sistema não sobrevive e para isso institui, na medida dessa legitimação, a memória histórica requerida” (SOUSA, 2011, p. 75-76). Ainda sobre esse ponto, Sousa (2011) complementa o debate dizendo:

Trata-se de um paradoxo e um dilema, visto que os regimes transicionais, tanto em países com histórico de colonizadores como de colonizados, que estabelecem os termos da democracia, vivem

46 Informação retirada da entrevista com Antônio Carlos Fon, membro da RBMVJ e do

Comitê Paulista. [28/04/2013]. Entrevistadora: Juliana de Jesus Grigoli. Sede da CUT, Cajamar, SP.

com essas questões, pois não será na ideologia liberal que os direitos humanos e os direitos dos povos serão construídos para melhor (SOUSA, 2011, p. 76).

Assim como sugere Sousa (2011, p. 76), a RBMVJ considera que a transição da ditadura à democracia no Brasil é algo inacabado. Como consequência, temos uma memória histórica inconclusa sobre o passado recente de repressão e uma disputa não das lembranças a respeito do passado, mas das imagens reais de um nacionalismo que não se foram.

A atual política de memória histórica no Brasil cumpre então o papel de legitimação de uma história marcada pela “domesticação de um imaginário que não questiona essa legitimidade que conserva as coisas como são, que mantém certas tradições” (Informação verbal).47

Na visão de Aluizio Palmar, membro do RBMVJ, isso ocorre porque “em geral, os movimentos em defesa dos direitos humanos obtêm êxito nas denúncias de violações que não comprometam as políticas públicas vigentes, o que os distancia da luta por justiça e condenação criminal dos torturadores e assassinos” (Informação verbal).48

Com efeito, mudar o curso dessa tendência implica alinhar algumas ações da RBMVJ às estratégias de outros movimentos políticos e sociais comprometidos com a defesa dos direitos humanos, bem como incorporar outras universalidades à sua agenda de prioridades. É precisamente na articulação dessas ações que a RBMVJ se constitui enquanto movimento político pela memória e verdade, na medida em que reconhece a transitoriedade, a contingência e a heterogeneidade das relações políticas e sociais.

Dentro dessa perspectiva, a RBMVJ fomenta, juntamente às organizações que participam de sua estrutura, a implantação e o desenvolvimento de ações e atividades voltadas à preservação da memória e à consolidação de políticas de memória histórica. É nessa esteira que a Rede se insere quando propõe a construção pública da memória ao socializar todos os materiais sobre a temática.

Exemplos desse esforço de promoção da memória histórica e de diálogo para a construção da verdade foram os Encontros presenciais da RBMVJ, que propiciaram a realização de debates e a definição de

47 Informação retirada da entrevista com José del Roio, membro da RBMVJ.

[28/04/2013]. Entrevistadora: Juliana de Jesus Grigoli. Sede da CUT, em Cajamar, SP.

48 Informação retirada da entrevista com Aluízio Palmar, membro da RBMVJ.

estratégias de ação para a elaboração e encaminhamento de projetos de lei de políticas de memória histórica a prefeituras e governos do estado de todas as regiões do país. A partir dessa ação em rede, alguns municípios e estados aprovaram leis que autorizam a troca de nomes de símbolos, rodovias, pontes, praças, ruas, logradouros, escolas de ditadores por nomes de pessoas que representam a luta pela democracia; e outras leis que celebram datas em homenagem a todos que lutaram contra a ditadura civil-militar instalada por meio de Golpe de 1964 e visam promover a reflexão sobre a importância do Estado Democrático de Direito e a preservação dos direitos humanos.

Outra oportunidade de intenso movimento e geração de debate sobre os direitos à memória e à verdade foram as oficinas educativas e os cineclubes organizados pelos diversos Comitês e Coletivos da Rede. Exemplo dessa ação foi a oficina O direito à memória e à verdade, realizada pelo Coletivo Catarinense Memória, Verdade e Justiça, que foi oferecido a estudantes de licenciaturas, bacharelados e professores, dentro da programação do I Congresso Internacional de Direitos Humanos: civilização ou barbárie, promovido pelo Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina – CESUSC, Florianópolis. Além de apresentar instrumentos metodológicos diversos para enriquecer a informação e a criticidade sobre as graves violações de direitos humanos ocorridas durante a ditadura, a oficina ofereceu um apanhado histórico sobre os anos de chumbo e apresentou sugestões de atividades que poderiam ser desenvolvidas pelos professores em sala de aula. Tal atividade foi produtiva, pois os participantes mostraram-se receptivos às atividades propostas pela oficina e, ao final, o grupo discutiu a necessidade de criar uma maior interação entre o espaço escolar e os movimentos políticos e sociais.

Paralelamente às oficinas, alguns Comitês e Coletivos da Rede promoveram mostras audiovisuais, lançamentos de livros e criaram cineclubes com o objetivo de fomentar o debate sobre memória e verdade. Em geral, a receptividade e a repercussão dessas atividades são positivas, fato que demonstra a necessidade de investir ainda nesse segmento, de criação de espaços que discutam as questões que envolvam os direitos civis e políticos e as heranças deixadas pela ditadura na história do país.

É significativo que, para os Comitês e Coletivos da Rede viabilizarem suas atividades, é preciso contar com parcerias institucionais, uma vez que não costumam dispor de recursos próprios, já que se trata de grupos de pessoas reunidas em torno da preservação da memória da resistência. Dentro desse espectro de parceiros, destacam-

se: universidades públicas e privadas, escolas estaduais e municipais, escolas particulares, assembleias legislativas, câmaras municipais, espaços culturais, teatros, associações e fundações.

De acordo com Antônio Carlos Fon, os principais parceiros do Comitê Paulista Memória, Verdade e Justiça são: “Assembleia Legislativa de São Paulo, Prefeitura de São Paulo, Núcleo Preservação da Memória, Universidade de São Paulo, escolas públicas, Instituto de Estudos da Religião, OAB/SP e outros movimentos políticos e sociais que atuam no estado”. No Rio de Janeiro, os principais parceiros do Grupo Tortura Nuca Mais são as escolas públicas, a Universidade Federal do Rio de Janeiro, a Universidade Federal Fluminense, os Centros Culturais e a OAB/RJ e movimentos populares e sociais. Na região Nordeste, em Pernambuco, destacam-se as parcerias com Centros Culturais, com a Universidade Federal de Pernambuco, escolas municipais e estaduais, Secretarias do Estado de Pernambuco e movimentos sociais. E, por fim, em Santa Catarina, na região Sul, os principais parceiros são:

Assembleia Estadual de Santa Catarina, Prefeituras Municipais, Universidade Federal de Santa Catarina, Universidade do Estado de Santa Catarina, Universidade do Sul de Santa Catarina, Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina, Instituto Federal de Santa Catarina, escolas públicas, Centros Culturais, sindicatos e outros movimentos sociais (Informação verbal).49

De acordo com Antônio Carlos Fon: “é essencial a participação cada vez mais ampla da sociedade e dos movimentos sociais, políticos e populares nesse processo de debate sobre o período da repressão” (Informação verbal).50

Nesse mesmo sentido, José del Roio enfatiza que

A criação de Comitês e Coletivos regionais e locais oportuniza a constituição de espaços

49 Informação retirada da entrevista com Antônio Malakovisk, membro do Coletivo

Catarinense Memória, Verdade e Justiça. [16/10/2014]. Entrevistadora: Juliana de Jesus Grigoli. Instituto Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC.

50 Informação retirada da entrevista com Antônio Carlos Fon, membro da RBMVJ e do

Comitê Paulista. [28/04/2013]. Entrevistadora: Juliana de Jesus Grigoli. Sede da CUT, Cajamar, SP.

de reflexão e discussão sobre o tema de forma contextualizada, possibilitando assim uma visão mais específica da história, em especial da trajetória política local. A partir desse conhecimento as pessoas podem pensar melhor sobre o alcance das práticas autoritárias aos quais se submetem no dia a dia, seja por uma questão econômica ou sociocultural (Informação verbal).51

Para o Comitê Memória, Verdade e Justiça de Pernambuco, a democracia brasileira ainda é frágil, pois

Convive diariamente com permanências da ditadura em diversos âmbitos da sociedade, especialmente pela atuação violenta da polícia, ocupações militares em periferias, restrições à liberdade de expressão e manifestação, prisões em massa sem condenação e avanço do Estado Policial na suposta resolução dos problemas cotidianos. No sentido de analisar tais permanências na estrutura institucional atual e nas violações de direitos perpetradas pelo Estado. [...] Cada passo dado pela Justiça de Transição é uma tentativa de superar esse legado. Ainda que cheio de falhas e imperfeições, o regime democrático é a única garantia de possibilidade da diferença, da discussão em praça pública e das soluções negociadas para os conflitos. As mazelas da democracia só podem ser superadas na própria democracia.52

Para Aluízio Palmar, a construção da democracia e da memória histórica da resistência

Exige um amplo debate público envolvendo governo, partidos políticos, ex-presos políticos e familiares de mortos e desaparecidos políticos,

51 Informação retirada da entrevista com José del Roio, membro da RBMVJ.

[28/04/2013]. Entrevistadora: Juliana de Jesus Grigoli. Sede da CUT, em Cajamar, SP.

52 Trecho da nota publicada pelo Comitê Memória, Verdade e Justiça de Pernambuco.

outros movimentos políticos, sociais e populares para discutir sobre os motivos que levaram ao golpe de 1964, a correlação de forças envolvida no processo e os esgotamentos dos paradigmas de bem-estar social em função das sucessivas crises econômicas vividas pelo país. Portanto, cabe a RBMVJ e demais parceiros exigirem o debate público, o esclarecimento da verdade, a valorização da memória histórica e reivindicar a justiça! Além disso, é importante também explorar ainda mais os vínculos históricos entre liberalismo, capitalismo, exploração da mão de obra, uso da violência e a luta entre as classes sociais por mais liberdade e igualdade de direitos (Informação verbal).53

Ainda sobre esse assunto, Palmar finaliza, dizendo:

Sem essa abordagem, corremos o risco de permanecermos estagnados, presos aos paradigmas de uma democracia inacabada, que não enxerga que não será na ideologia liberal e nem no capitalismo que os direitos fundamentais, humanos e dos povos serão construídos para melhor (Informação verbal).54

Com efeito, para a RBMVJ, mudar o curso dessa tendência requer a definição de novas estratégias e ações associadas às demandas que estão questionando os limites do ideário liberal, como, por exemplo, apoiar os movimentos em defesa dos direitos sociais. No ideário liberal, o mundo não seria desigual e os seres humanos não seriam explorados em termos de força de trabalho. Entretanto, o sistema econômico atual não permite que esses direitos se efetivem em plenitude.

Por fim, reforça-se a ideia de que a RBMVJ acredita que é dever do Estado brasileiro zelar pela democracia e investir cada vez mais em ações que visam o fortalecimento da cultura da paz e de respeito aos direitos humanos. Para isso, considera fundamental

53 Informação retirada da entrevista com Aluízio Palmar, membro da RBMVJ.

[28/04/2013]. Entrevistadora: Juliana de Jesus Grigoli. Sede da CUT, em Cajamar, SP.

Revolver minuciosamente esse passado recente [...] para que não mais continue ameaçando o presente, como acontece nos vários casos de desaparecimento, no extermínio da juventude pobre, negra e, em geral, dos moradores da periferia geográfica e social do Brasil. Ao mesmo tempo é necessário o aprofundamento do intercâmbio e dos encontros do Movimento Político por Memória, Verdade e Justiça do Brasil, nos moldes do que houve em Cajamar (SP) e dos Encontros Regionais, a fim de fortalecer nossos laços, disseminar as diversas experiências e assegurar o poder de pressão da sociedade civil sobre o governo, não só para garantir as conquistas já obtidas como para dar passos efetivos rumo à Justiça de Transição e à consolidação da democracia brasileira.55

Assim, mesmo que a política de memória histórica no Brasil hoje vigente cumpra o papel de legitimação de uma história, de domesticação, exploração, esquecimento e silêncio em relação à violência perpetrada pelo Estado brasileiro contra seus opositores políticos, ainda se configura como um espaço de luta e de pressão pelo reconhecimento dos direitos humanos universais e pela adoção de novos paradigmas que se sobreponham aos atuais, neocolonizadores.

55 Trecho da nota publicada pelo Comitê Memória, Verdade e Justiça de Pernambuco.

CAPÍTULO 3

O MOVIMENTO POR MEMÓRIA E VERDADE EM SANTA CATARINA: a experiência do Coletivo Catarinense MVJ

Imagem 5 - Passeata de “descomemorização” do Golpe de 1964. Organização: Coletivo Catarinense Memória, Verdade e Justiça. Centro de Florianópolis. Abril de 2014. Esse capítulo tem como objetivo apresentar o sujeito de nossa pesquisa: o Coletivo Catarinense Memória, Verdade e Justiça, sua história, sua metodologia de ação, bem como as etapas diferenciadas de sua organização, representação e mobilização. A apresentação dessa trajetória tem o fito de apontar as especificidades desse movimento político, indicando as transformações que ocorreram ao longo dos quase quatro anos de fundação da organização, caracterizado por um processo intenso de participação do Coletivo em diversas ações voltadas à garantia dos direitos à memória e à verdade em Santa Catarina.

O Coletivo Catarinense Memória, Verdade e Justiça é um movimento político, de caráter nacional, com forte capilaridade e participação no Estado de Santa Catarina, que influencia, de maneira mais crescente e propositiva, as esferas públicas locais e regionais, contribuindo ativamente para a conquista de direitos relacionados à memória e à verdade. Como movimento político mais amplo, o Coletivo reflete as identidades características de sociedades complexas e globalizadas, a inclusão de outras dimensões das lutas pelos direitos humanos, como igualdade, liberdade, paz e respeito à diversidade.

A partir dessas considerações, apresentaremos nesse capítulo a trajetória do Coletivo Catarinense Memória, Verdade e Justiça, desde o período de sua fundação – de 2011 a 2015, considerando as modificações ocorridas, especialmente na relação entre o movimento e o Estado. Apresentaremos também os aspectos marcantes de sua estrutura e forma de organização política, destacando suas prioridades e atividades desenvolvidas ao longo dos anos de atuação no estado de Santa Catarina.

3.1. O NASCIMENTO DO COLETIVO CATARINENSE MEMÓRIA,