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MEMÓRIA E MEMÓRIA HISTÓRICA: INTERPRETAÇÕES HISTÓRICAS E SOCIOLÓGICAS SOBRE O CONCEITO

A palavra memória origina-se do grego “mnesis” ou deriva da palavra latina “memoria”. Em ambos os casos, a palavra refere-se à ideia de conservação de uma lembrança. Trata-se de um termo presente e muito utilizado por diversas áreas da ciência e da produção do conhecimento. Para os gregos, a memória era uma divindade, uma deusa recoberta por um halo de luz chamada “Mnemosyne, mãe das Musas, que protegem as artes e a história” (CHAUÍ, 2001, p. 138).

Segundo Chauí (2001, p. 138), a “memória é uma evocação do passado. É a capacidade humana de reter e guardar no tempo o que se foi, salvando-o da perda total. A lembrança conserva aquilo que se foi e não retornará jamais”. Para ilustrar essa afirmação, a autora conta a lenda de Simônides, salvo de um grave acidente no qual morreram muitas pessoas. Como os mortos ficaram praticamente irreconhecíveis, Simônides era a única pessoa que poderia identificá-los, pois estivera com eles ainda em vida. Graças à “arte da memória” de um poema, dedicado às musas e aos deuses, Simônides conseguiu reconhecê-los. E, em função dessa evocação, nossa sociedade preserva elementos culturais, memoráveis, em locais denominados museus, a casa das musas.

Em princípio, podemos dizer que a história é uma ciência da memória, ainda que existam controvérsias. Para o historiador Jacques Le Goff – representante do movimento da Nova História que despontou na década de 70 –, a memória é a propriedade de conservar certas informações, propriedade que se refere a um conjunto de funções psíquicas que permite ao indivíduo atualizar impressões ou informações passadas, ou reinterpretadas como passadas.

Desse modo, a memória está nos alicerces da História, confundindo-se ora com documento, ora com monumento ou oralidade. Ao contrário de outras áreas, como a Filosofia, na Sociologia, Antropologia e principalmente na Psicanálise, em que os estudos sobre memória individual e coletiva já estavam mais avançados, as pesquisas produzidas pela historiografia centradas em estudos sobre a memória são mais recentes. Sigmund Freud, fundador da Psicanálise e um dos ícones da modernidade, foi quem iniciou os debates em torno da memória humana, discutindo seu caráter seletivo, ou seja, o fato de que nos lembramos das coisas de forma parcial, geralmente ativados por estímulos externos. Por isso, Freud distinguiu memória de um simples repositório de lembranças: para ele a mente é algo mais abstruso, muito distante da ideia de museu. A memória não é algo estático, parado no tempo, ela age constantemente sobre o que foi vivido.

Entretanto, a memória não é algo absolutamente individual. Quando associada ao campo social adquire um sentido mais complexo, passando designar processos de formação de vínculos entre indivíduos e coletivos. Para Halbwachs (2013), teórico francês que revolucionou o pensamento de sua época, o fenômeno da recordação e da localização das lembranças não pode ser percebido e analisado se não forem levados em conta os contextos sociais que servem de base para a constituição da memória. Posto dessa maneira, a memória pode ser interpretada

sociologicamente como as reminiscências do passado que reaparecem no presente, no pensamento e na fala de cada indivíduo ou na nossa capacidade de armazenar certa quantidade de informações relativas a fatos vividos no passado. Uma vez que a lembrança é fruto de um constructo social, constituída a partir do convívio com outras pessoas, podemos considerar as lembranças dos outros como base para algumas de nossas recordações, seja no sentido de reforçar, enfraquecer ou completar a nossa própria percepção dos acontecimentos do passado.

De acordo com essa perspectiva, por mais que tenhamos a percepção de ter vivenciado eventos que só nós presenciamos, ainda assim nossas lembranças permanecem coletivas e podem ser recordadas por outras pessoas. Isso porque Halbwachs (2013) tinha a convicção de que nunca estamos sós, mesmo quando os outros não estejam fisicamente presentes, estão em pensamento.

Contudo, para se recordar, é preciso que haja sintonia entre o pensamento individual e coletivo, uma certa concordância entre os pensamentos dos membros do grupo. Sobre esse ponto, o autor esclarece:

Não basta reconstituir pedaço por pedaço a imagem de um acontecimento passado para obter uma lembrança. É preciso que esta reconstituição funcione a partir de dados ou de noções comuns que estejam em nosso espírito e também no dos outros, porque elas estão sempre passando destes para aqueles e vice-versa, o que será possível se somente tiverem feito e continuarem fazendo parte de uma mesma sociedade, de um mesmo grupo (HALBWACHS, 2013, p. 39).

Desse modo, só se pode falar em memória coletiva quando acionamos um evento que também é recordado pelo grupo ao qual pertencemos. Ao lado da memória coletiva, caminha a memória individual. Contudo, “a rememoração pessoal está situada na encruzilhada das redes de solidariedade múltiplas em que estamos envolvidos” (HALBWACHS, 2013, p. 12). Nesse nexo, a memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que pode variar de acordo com a posição que se ocupa no grupo ou da relação com outros ambientes. Quanto à memória individual, Halbwachs explica que:

Ela não é inteiramente isolada e fechada. Para evocar seu próprio passado, em geral, a pessoa precisa recorrer às lembranças de outras e se transportar para os pontos de referência que existem fora de si, determinados pela sociedade. Mais do que isso, o funcionamento da memória individual não é possível sem esses instrumentos que são as palavras e as ideias, que o indivíduo não inventou, mas toma emprestado de seu ambiente (HALBWACHS, 2013, p. 72).

Para além dos conceitos de memória coletiva e memória individual, podemos interpretar a memória de outra maneira: pessoal e social ou memória autobiográfica e memória histórica. De acordo com Halbwachs (2013), a constituição da memória pessoal depende da ajuda da memória social, já que a nossa história pessoal faz parte da história social. A memória histórica se apresenta como conteúdo mais detalhado e esquemático, enquanto que a memória autobiográfica se apresenta como conteúdo mais denso e contínuo. Por isso, explica Halbwachs (2013), a memória humana tende a se conectar mais aos fatos vividos e compartilhados do que com as narrativas e explicações expostas nos livros. Isso significa que “a menos que tenha relação com o tempo vivido, a história é uma ciência vazia de sentidos e, em geral, nos apresenta um quadro muito esquemático e incompleto” (HALBWACHS, 2013, p. 79).

Todavia, é por meio da memória histórica que um fato exterior à nossa vida deixa seu registro em determinado ano, dia ou hora, sendo a partir desse registro que conseguimos recordar um determinado momento. Dessa forma, construímos nossas identificações, tanto com situações quanto com pessoas anteriores a nossa existência. Para Halbwachs (2013, p. 85), “muitas vezes é na medida em que a presença de um parente idoso está de alguma forma impressa em tudo o que este nos revelou sobre um período de uma sociedade antiga, que ela se destaca em nossa memória”.

Daí a importância das narrativas das experiências vividas no processo de composição da memória e da história coletiva e individual, pois “ela tem tudo o que é necessário para constituir um panorama vivo e natural sobre o qual se possa basear um pensamento para conservar e reencontrar a imagem de seu passado” (HALBWACHS, 2013, p. 90).

No caso do movimento político por memória e verdade, por exemplo, esse papel é desempenhado por ex-presos políticos, familiares de mortos e desaparecidos políticos, bem como lideranças, que

transmitem aos membros do grupo suas experiências, possibilitando com que estes consigam reconstruir o contexto social vivido anteriormente. Dessa forma, a história escrita ou a história documental andam ao lado da história viva.

Para Halbwachs (2013), os lugares e pensamentos carregam registros e impressões sem os quais não conseguiríamos restaurar o cenário de uma época. Entendido dessa maneira, a lembrança é “uma reconstrução do passado com a ajuda de dados que tomamos de empréstimo ao presente e preparados por outras reconstruções feitas em épocas anteriores” (HALBWACHS, 2013, p. 91). As novas narrativas do passado substituem, assim, as antigas, fazendo com que as lembranças se renovem, enquanto nos sentimos mais envolvidos no grupo e participando de forma mais próxima. Sob esse ponto de vista, os grupos exercem protagonismo na atualização e complementação das lembranças e recordações a partir dos testemunhos de seus membros.

Portanto, para Halbwachs, memória coletiva e memória história são duas esferas distintas, como segue:

A história é a compilação dos fatos que ocuparam maior lugar na memória dos homens. No entanto, lido nos livros, ensinados e aprendidos nas escolas, os acontecimentos passados são selecionados, comparados e classificados segundo necessidades ou regras que não se impunham aos círculos dos homens que por muito tempo foram seu repositório vivo. Em geral, a história só começa no ponto em que termina a tradição, momento em que se apaga ou se decompõe a memória social (HALBWACHS, 2013, p. 100- 101).

Ou seja, a memória se distingue da história sob dois aspectos: primeiro porque a memória decorre de pensamento contínuo que não supera os limites do grupo, enquanto que na história o pensamento é fragmentado, dando a impressão de que de um período a outro, tudo se transforma – as tradições, mitos, estruturas e relações sociais; e segundo porque enquanto a história se pretende afirmar como conhecimento universal dos fatos e eventos, para Halbwachs (2013), a história de uma sociedade é constituída de muitas memórias coletivas, de uma história viva.

Nessa breve abordagem sobre o pensamento de Halbwachs (2013), visamos debater os conceitos por ele trabalhados, a fim de, a

seguir, tecer algumas críticas às ideias por ele defendidas. Primeiramente, assim como na abordagem durkheimiana, Halbwachs raramente aborda as relações de poder que se estabelecem entre os grupos e como a memória foi e ainda é um instrumento utilizado para legitimar o poder entre os diversos grupos que compõem uma sociedade. Sobre isso, Michael Pollak (1989, p. 03), explica que “a ênfase dada à força quase institucional dessa memória coletiva, à duração, à continuidade, à estabilidade” afasta Halbwachs da possibilidade de “ver nessa memória oficial uma imposição, uma forma específica de dominação ou violência simbólica” (POLLAK, 1989, p. 03) ou analisar a memória como um “campo em disputa” e um instrumento político de dominação social, diretamente relacionada a uma disputa por poder, onde os diferentes segmentos da sociedade visam construir uma versão sobre o passado que melhor os sirva (LE GOFF, 1996).

Outro problema está associado à formulação durkheimiana de memória coletiva como expressão das representações sociais dos indivíduos como fato social. Ao utilizar esse referencial em sua extensa discussão sobre memória, Halbwachs (2013) desconsidera os fatores psicológicos. Para Sousa (2011, p. 25), essa concepção de memória coletiva “minimiza a importância da memória coletiva também como psicologia social, onde o único (no indivíduo não generalizável) não está isento dos constrangimentos das relações sociais [...]; o mais complexo – e ainda reduzido à especialidade da psicologia – é compreender a dialética do único, do indivíduo, na formação da memória coletiva”. Em uma perspectiva mais próxima à sociologia crítica, não se trata de lidar com os fatos sociais como coisas, mas de postular que a memória coletiva é constituída como uma psicologia social – “individual e ao mesmo tempo social, onde a psicologia também é um fator político de estruturação de poder” (SOUSA, 2011, p. 25). Assim sendo, torna-se necessário incorporar os testemunhos e as memórias vivas aos estudos e as pesquisas sociológicas, considerando-as como histórias de vida.

Apesar das críticas e resistências de alguns historiadores em considerar o testemunho ou a história de vida como memória coletiva e histórica – devido ao seu forte componente subjetivo na transmissão das lembranças entre pessoas de diferentes gerações, Sousa (2011) explica que o testemunho é uma importante fonte de pesquisa, que permite compreender como determinados eventos foram influenciados por pessoas, por escolhas e por direções políticas, “onde o fato social sistematicamente entendido, não se faz sem as ações políticas dos indivíduos, transversais as classes sociais e grupos de interesse” (SOUSA, 2011, p. 25-26).

Mais do que testemunho de um fato ou de um evento específico, os testemunhos da história de vida são significativos para as pesquisas sociológicas porque revelam traumas, muitas vezes ainda escondidos, “latentes”, portanto, não superados. Por meio do testemunho, conseguimos romper o silêncio deliberado sobre o passado recente, conhecer suas múltiplas representações e observar os aspectos conflitivos que permeiam a questão da memória histórica. Para Sousa (2011), “esta é a importância de situar a memória histórica como pesquisa interdisciplinar e as políticas para a memória como polifônicas” (SOUSA, 2011, p. 26).

Dentro desse contexto, nos aproximamos do movimento político por memória e verdade, em especial do Coletivo Catarinense Memória, Verdade e Justiça, através da participação em reuniões, audiências públicas, palestras, eventos, encontros regionais e nacionais e realização de entrevistas. No total, foram entrevistadas 10 pessoas, dentre elas: coordenadores e representantes de comissões institucionais, lideranças do movimento político pela memória e verdade e membros do Coletivo Catarinense Memória, Verdade e Justiça. Todas as entrevistas foram realizadas com a mesma lógica. A ideia foi deixar os entrevistados falarem livremente (entrevistas semidirigidas) sobre suas trajetórias e experiências políticas advindas dos processos de democratização do país, da luta pelos direitos à memória e à verdade acerca das graves violações dos direitos humanos cometidas na ditadura civil-militar. Todos(as) permitiram a gravação da entrevista. Depois de algumas perguntas mais abertas sobre a trajetória individual e quais organizações que participou, segui com um roteiro semiestruturado de temas relevantes de nossa proposta de investigação. As questões foram elaboradas de acordo com os seguintes eixos: trajetória de vida e a experiência do golpe de 1964; a Lei da Anistia e o processo de democratização do país; Comissões da Verdade e o movimento político por memória e verdade; e políticas de memória histórica e avaliação da política brasileira.

Dessa forma, a pesquisa cumpre não favorecer o silêncio e o esquecimento, mas apoiar as iniciativas e valorizar as vozes de ex- presos políticos, familiares de mortos e desaparecidos políticos, professores, advogados, promotores, juízes e autoridades governamentais, pela abertura dos arquivos considerados ultrassecretos, pela continuidade das investigações dos crimes de lesa-humanidade e implementação das políticas de memória recomendadas pela Comissão Nacional da Verdade e demais Comissões formadas no país. Essas iniciativas devem ser consideradas como um movimento político. Desse

modo, pauta-se a breve abordagem sobre políticas de memória histórica como segue.

1.3 POLÍTICAS DE MEMÓRIA HISTÓRICA E MOVIMENTO