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A inevitável transformação do ambiente acarretada pela própria existência e evolução dos organismos vivos, ganha contornos dramáticos quando se aborda o ser humano. Mais do que sobreviver, como indivíduo e mesmo como espécie, o ser humano pretende dominar os demais componentes do ambiente, controlando as características e manifestações que, porventura, não facilitem ou contraponham-se a seus desígnios. A cultura e sua memória histórica, como uma das especificidades humanas, constitui o poderoso instrumento dessa empreitada bio-social. Mas o processo de hominização não livra o ser humano de sua condição biológica original, ao contrário, é dela dependente. No entanto, esse inter-dependência propicia um paradoxo: Se me vejo no que vejo, como obter um olhar mais límpido para espreitar o mundo que ajudei a construir/destruir?

A porta da verdade estava aberta. Mas só deixavam passar meia pessoa de cada vez. Assim, não era possível atingir toda a verdade, Porque a meia pessoa que entrava só trazia o perfil da meia verdade. E a sua segunda metade voltava igualmente com meio perfil. E os meios perfis não coincidiam. ...

(fragmentos do poema Verdade , de CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

Uma das maneiras que alguns seres humanos encontraram para orientar a busca de uma limpidez do olhar foi a formulação de um rol de procedimentos que quase alcançou o status de algo divino nesses últimos 300 anos - o método científico. Bastaria que as ações/reflexões, incluindo os olhares humanos, fossem orientados por tais procedimentos metodológicos e epistemológicos para que um conhecimento límpido fosse descoberto! Porém, para se alcançar tal estágio, esse conhecimento não poderia submeter-se à pequenez das angústias, desejos, traições e paixões humanas. Por isso foi sendo propagado, justificado e validado, no decorrer dos últimos três séculos, que tal conhecimento era produzido às margens dos interesses, hierarquia de valores, crenças e ideologias que norteiam as ações/reflexões humanas.

No entanto, uma breve retrospectiva histórica do processo de criação/invenção da ciência possibilita constatar o quão profundo e inerentemente humano é o processo de construção e validação do conhecimento científico, visto que a ciência, logo no início da sua consolidação como instituição sociocultural, já representava um papel central na satisfação das necessidades básicas da sociedade burguesa européia do século XVII (BAEDER, 1990). Mas, quais seriam essas necessidades? Quais seres humanos realmente as teriam? A quais outros seriam impostas? De maneira muitas vezes implícita e associada à essas necessidades, são consolidados e legitimados específicos interesses, hierarquias de valores, crenças e ideologias que também são disseminados para alguns seres humanos e praticamente impostos a muitos outros. Portanto, a limpidez proporcionada pelo conhecimento científico está nos olhos de quem olha.

Questionamentos acerca da intrínseca humanidade do conhecimento científico19 começam a florescer principalmente a partir da década de 30 do século XX. Porém, essa mudança de postura foi muito conflitante e angustiante para os próprios cientistas, que pareciam simplesmente não conseguir admitir que eram seres humanos, inseridos e participantes de comunidades humanas, possuidores de interesses, hierarquia de valores, crenças e ideologias, além de serem angustiados, desejosos, traidores e apaixonados como qualquer outro ser da mesma espécie. Inerente e independentemente da pequenez atribuída a tais características.

Essa tensão entre a grandeza do científico em detrimento da pequenez do humano não era identificada com clareza nem pelos próprios construtores da ciência como pode ser observado nas posturas antagônicas de dois cientistas que protagonizaram um debate histórico acerca da interpretação do formalismo quântico durante o V Conselho de Física, realizado em Bruxelas, em 1927: Albert Einstein e Niels Bohr (PRIGOGINE, 1996). Einstein, por um lado, atormentava-se com o aspecto subjetivo da mecânica quântica, que lhe parecia destituir a ciência de seus pilares básicos de sustentação (a razão e a certeza), em um mundo tão desestruturado pelas insanidades das ações/reflexões humanas, tão necessitado de razões e certezas. Nascido judeu ao sul da Alemanha, Einstein viu florescer o nazismo e o caos conseqüentes do extremismo da paixão nacionalista; portanto possuía (ou talvez precisasse possuir) uma visão de ciência - mais especificamente da física - que ignorasse as suas características “humanizadas”20.

Nascido em uma família culta e muito rica na Dinamarca, tendo o pai professor e também cientista, Bohr pôde desfrutar de uma ciência alegre, divertida, embora não menos séria e sistemática. Contrariamente ao físico alemão, defendia o subjetivismo e a incerteza, já que a sua idéia de ciência ligava-se a uma prazerosa busca de conhecimento alicerçado nas ações/reflexões humanas - inerentemente subjetivas e incertas. O físico dinamarquês não havia vivenciado as terríveis situações proporcionadas por ações/reflexões que tentaram exterminar todo um povo

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Os trabalhos de Emile Durkheim, que postulou a origem social dos conceitos, e de Karl Mannheim, que abordou as relações entre a validade do conhecimento e a influência do contexto social, atrelando conhecimento científico e jogo ideológico existente no interior das organizações sociais, realizam intensas críticas à postulada neutralidade ou “desumanização” da Ciência. A concepção de que a ciência é criação/invenção humana, passível, portanto, das interferências dos aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais ganham destaque com reflexões sobre a importância da identificação dos fatores norteadores dessas ações/reflexões para a composição de qualquer comentário ou julgamento acerca do conhecimento científico. Assim o desenvolvimento das discussões dos filósofos da Escola de Frankfurt (principalmente Horkheimer, Theodor Adorno e Jürgen Habermas), envolvendo as ideologias e os interesses humanos no processo de elaboração do conhecimento científico, vai tornando-se fundamental para a legitimação dessa nova postura.

20 Ilya PRIGOGINE complementa citando a importância da postura dogmática de Einstein para as discussões acerca do processo de

construção/criação/invenção do conhecimento científico pelas ações/reflexões humanas. Sua [de Einstein] visão da física, triunfo

último da razão humana sobre um mundo decepcionante e violento, fortaleceu no século XX a oposição entre o conhecimento objetivo e o terreno do incerto e do subjetivo. (PRIGOGINE, 1996, p. 195).

enviando as pessoas para fornos crematórios, que realizaram monstruosos experimentos com crianças, além de tantas outras atrocidades. Parece óbvio que, para Niels Bohr, as ações/reflexões humanas, com suas subjetividades e incertezas, incluindo nesse rol a ciência, proporcionaram momentos de prazer, felicidade e satisfação muito mais intensos e constantes.

Para Einstein, no entanto, Bohr parecia estar “contaminando” o conhecimento científico com aspectos e características que não lhe pertenciam, mas sim a outras ações/reflexões humanas, localizadas em um patamar inferior: o senso comum21. É preciso, no entanto, atentar para a armadilha criada nessa justificativa, já que Einstein investe o conhecimento científico de superioridade tomando como parâmetro os pressupostos da própria ciência!

Ao comparar o conhecimento científico com qualquer outro tipo de conhecimento, entre eles o senso comum, é preciso muito cuidado para não serem tomados como parâmetro somente os fundamentos que orientaram a criação/invenção da ciência. Se esse procedimento for adotado, é óbvio que, ao ser identificada a presença de características como ilusão, falsidade e emoção, o conhecimento em questão será julgado como inferior, pois tais atributos humanos são considerados inaceitáveis quando o referencial é a neutralidade e a “não humanização” da ciência, decorrentes da sistematização, racionalização e precisão do método científico.

Historicamente, no entanto, o senso comum foi sendo comparado ao científico exatamente dessa maneira, considerando-se somente sob os pressupostos da ciência, não restando a mínima possibilidade de ser legitimado, nem considerado como verdadeiro pela ciência. Constituía-se, apenas, em um conhecimento efêmero, calcado somente na aparência dos componentes do ambiente e não na sua verdadeira essência, como o fazia o conhecimento científico.

Partindo-se dessas discussões, conclui-se que todo conhecimento possui seus pressupostos, suas metodologias, sua manifestação e suas formas de comunicação. Por ser construído/inventado por seres humanos, qualquer tipo de conhecimento (sejam definições, classificações, conceituações, previsões, padronizações, quantificações) depende sempre de referenciais relacionados aos mais diversos condicionantes biológicos, históricos, sociais, geográficos, econômicos e culturais, sendo, portanto, impossível serem constituídos “absolutamente”. Dessa forma a construção de qualquer tipo de conhecimento acerca do ambiente

21 O surgimento do senso comum como conceito filosófico ocorreu durante o século XVIII, representando uma resistência burguesa à

ideologia do ancien régime. A valorização filosófica do senso comum esteve, pois, ligada ao projeto político de ascensão ao

poder da burguesia, pelo que não surpreende que, uma vez ganho o poder, o conceito filosófico de senso comum tenha sido correspondentemente desvalorizado como significando um conhecimento superficial e ilusório. (SANTOS, p.36-37,

nunca foi e jamais será realizada à parte das influências desses condicionantes, pois (...) todo

conhecimento se torna um ato de (re)criação da realidade, do qual fazem parte integrante as noções prévias, crenças e valores do seu autor, pelos quais são filtradas as propriedades intrínsecas do objeto estudado. (AMARAL, 1995, p.332).

Boaventura de Souza SANTOS (1989) examina em maiores detalhes o ato de (re)criação da realidade que gera o conhecimento humano, relacionando-o estreitamente ao que denomina de

prática social. Esse autor sistematiza as seguintes características que considera atributos de

qualquer conhecimento:

(...) 1. (...) todo conhecimento é em si uma prática social, cujo trabalho específico consiste em dar sentido a outras práticas sociais e contribuir para a transformação destas; 2. que uma sociedade complexa é uma configuração de conhecimentos (...); 3. que a verdade de cada uma das formas de conhecimento reside na sua adequação concreta à prática que visa constituir; 4. que, sendo assim, a crítica de uma dada forma de conhecimento implica sempre a crítica da prática social a que ele se pretende adequar; 5. que tal crítica não se pode confundir com a crítica dessa forma de conhecimento, enquanto prática social, pois a prática que se conhece e o conhecimento que se pratica estão sujeitos a determinações parcialmente diferentes (grifo do autor, SANTOS, 1989, p.47).

Todavia, é preciso salientar que a existência, concretude e realidade dos componentes do ambiente independem das suas classificações, conceitos, previsões, padronizações e quantificações, sejam elas científicas ou não. Seriam o espaço e o tempo exceções, existindo apenas nos mapas, maquetes, relógios e calendários? A resposta à referida questão, segundo Einstein, em sua Teoria da Relatividade Especial proposta em 1905, é não, pois a realidade consiste em uma reversão das noções básicas de tempo e espaço. Segundo o físico brasileiro Marcelo GLEISER (1999)22, interpretando o pensamento do físico alemão: O tempo flui sempre na mesma

direção (...), indiferentemente a nós, os observadores. Já o espaço é a arena em que eventos acontecem, o palco onde a natureza encena seu drama, independente de nós, os espectadores. Ainda segundo GLEISER, de acordo com Einstein, as passagens do tempo não são

22 Em matéria especial para a Folha de São Paulo, de 01/01/1999 Os buracos negros e a relatividade do tempo, no caderno

absolutas, pois dependem do movimento relativo entre os observadores e os objetos envolvidos. Acrescenta que Um relógio em movimento bate mais devagar do que em repouso, e uma

régua em movimento terá um comprimento menor do que outra em repouso. Não percebemos isso porque os fenômenos relativísticos só se manifestam a velocidades próximas à da luz. (GLEISER, 1999).

Portanto, nesse mundo da relatividade, espaço e tempo são entrelaçados em um sistema de quatro dimensões: três referentes a espaço e uma a tempo. Esse espaço-tempo é o verdadeiro

palco em que a natureza encena seu drama. Nossa visão é bloqueada pelas minúsculas velocidades do nosso dia-a-dia. (GLEISER, 1999).

Mesmo reconhecendo a enorme contribuição dos estudos de Einstein para uma específica forma de organização sociocultural – a ciência –, é preciso distinguir que, para as demais, o tempo e o espaço continuam, praticamente cem anos após a publicação da Teoria da Relatividade Especial, a constituírem-se absolutamente, passíveis de contagens, delimitações e representações, imprescindíveis para o atual estágio de desenvolvimento da espécie humana.

Porém, é necessário ressaltar que, tal como toda e qualquer ação/reflexão humana, o olhar envolvido na construção das representações de tempo e espaço ocorreu sob intensas lutas que abarcaram os mais diversos interesses, hierarquia de valores, crenças e ideologias. O calendário ocidental, por exemplo, foi introduzido pelo papa Gregório XIII, em 1582, que, mediante bula papal, pretendia que todos os países o adotassem imediatamente a partir daquela data. Porém, o calendário gregoriano só entrou em vigor em todas as nações católicas e na maioria dos países cristãos (DONATO, 1976). Os demais povos, pelos mais diversos motivos, não quiseram adotar o calendário gregoriano, como a Inglaterra, que resistiu até 1752, o Japão que decidiu aceitar a reforma somente em 1873, a China em 1911, e a Rússia em 1923 com a revolução comunista.

A mesma luta de poderes pode ser identificada na confecção dos mapas. Igualmente construções/invenções humanas, fundamentam-se tanto em interesses e valores quanto em cálculos e observações dos lugares mapeados. Essa constatação justifica o “reinado” da projeção de Mercator23 para o mapa mundi. Fruto de uma época na qual a Europa partia para as conquistas marítimas, é quase óbvio que os europeus considerassem-se mais importantes que os demais

23 Gerhard Kremer Mercator elaborou seu primeiro mapa-mundi em 1538 e, em 1569, o cartógrafo e matemático belga elaborou uma

projeção cartográfica cilíndrica que utilizou para a primeira carta do mundo direcionada aos navegadores. Essa função específica advinha do fato de que a carta possibilitava a orientação pelas coordenadas geográficas (SENE e MOREIRA, 2000). Ainda segundo esses autores, tal projeção cartográfica Consolidou-se exatamente no momento em que os europeus comandavam a expansão

povos, por isso merecedores “naturais” do centro do mapa. Essa perspectiva nada mais é do que

a materialização cartográfica do etnocentrismo europeu. Trata-se de uma visão eurocêntrica do mundo que não é verdadeira nem falsa, mas simplesmente mais uma visão.

(SENE e MOREIRA, 2000, p.436)

Será que a organização das longitudes a partir do meridiano de Greenwich, Inglaterra, e da uniformização do horário mundial a partir desse mesmo meridiano, desde 1884, está relacionada a alguma característica específica daquele lugar geográfico ou aos valores, interesses, crenças e ideologias que os britânicos impuseram às demais comunidades humanas?

Quando se marca o horário de um encontro, determina-se o roteiro de uma viagem, constrói- se uma habitação, pratica-se a agricultura, pesquisa-se acerca de determinada espécie de ser vivo ou compõem-se uma peça musical, os seres humanos estão atendendo a alguns interesses e sujeitos a outros, bem como estão transformando os componentes do ambiente e a si próprios. Essas são as condições e esse é o ambiente com o qual me deparo quando tento buscar limpidez no olhar.