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Analisando-se a figura anterior, entremeada pelos versos do poema tomados como analogia, é possível considerar as reflexões anteriores sob uma determinada perspectiva e concluir que todas elas desembocaram em um desvelado e incômodo antropocentrismo. Por mais que tal conclusão pareça contradizer a intenção de integrar os diversos aspectos constituintes das ações/reflexões humanas aos demais componentes do ambiente, é essa “antropocentricidade” que caracteriza e especifica o ser humano.

Seguindo outra linha de raciocínio AMARAL (1995) também detecta essa característica tipicamente humana ao discutir acerca da inextricabilidade entre o ser biológico e a produção social da cultura no ser humano, comentando haver um (...) egocentrismo que tipifica a postura

humana perante o restante da natureza e que tal característica egocêntrica simplesmente é(...) o resultado da natural condição de ser bio-social do ser humano (p.351)

(Querendo ou não) Sou a criatura do que vejo (?)

(Quando ajo/reflito sobre)

Como entrar por meus olhos em um olho mais límpido (com o que me deparo?)

(Então, as águas e os pensamentos só ganham significado quando) É minha criação isto que vejo (?)

Me vejo no que vejo (nas águas, nos pensamentos ou em qualquer outro

componente do ambiente?)

(Por que) Me olha o que eu olho (?)

(Ou será que) Perceber é conceber águas de pensamento (sejam quais forem as percepções, concepções, as águas e os pensamentos?)

Figura do século XII que procura evidenciar a relação do ser humano com o universo e, para isso apresenta os nomes de planetas e elementos químicos mapeados sobre a forma humana.

Dessa forma, antes de tentar “desantropocentricizar” o que é inerente e essencialmente antropocêntrico, é preciso questionar profundamente essa condição humana. Um divertido exemplo fornecido por Italo Calvino, em uma das novelas reunidas em As cosmicômicas28, intitulada Tudo

num ponto, pode auxiliar e aliviar a discussão dessas questões. Neste episódio é retratada uma

situação supostamente ocorrida antes do Big Bang, portanto antes da existência do Universo como é conhecido/concebido. Mas como se referir ao não-Universo se a concepção de Universo é decorrente de invenções/criações historicamente realizadas por seres humanos? Embora os personagens da novela tenham nomes impronunciáveis e ilegíveis, “desumanizados”, apresentam características infalivelmente humanas, como o velho Qfwvfq; o antipático Sr. Pbert, Pberd; a

apreciável Sra. Ph(i)Nk0 , possuidora de seios e ancas inesquecíveis; o apaixonado Sr. De

XuaeauX, amante da referida senhora, entre outras personagens. Assim, o ponto de vista

antropocêntrico é inevitável e inerente à espécie humana, mesmo quando tenta referir-se a fenômenos que fogem à representação conceitual dos mesmos.

No desenrolar da história identificam-se situações que refletem a impossibilidade do ser humano agir/refletir “desumanizadamente”, como ao referir-se à definição de imigrante em um “lugar” anterior à existência do próprio espaço/tempo humanos29. Configura-se, portanto, que querendo ou não somos a criatura do que vemos, não constituindo em assombro perceber e conceber que

nos vemos no que vemos e olha-nos o que olhamos. Mais do que aceitar e legitimar tal constatação, é primordial preocupar-se com o direcionamento do olhar e da construção da visão, conjuntamente à identificação dos condicionantes que fundamentam esse processo, para que a realidade entre por meus olhos em um olho mais límpido.

Um equívoco freqüentemente detectado é a desconsideração da existência desse olhar, concebendo as ações/reflexões destituídas de “humanidade”, em uma tentativa de destruição da exclusiva maneira humana de observar, experimentar, admirar, modificar, destruir, encantar-se, enfim, relacionar-se com o mundo. Uma das formas de expressão dessa postura pode ser identificada quando as ações/reflexões humanas são dissociadas/desvinculadas dos fatores que as

28 CALVINO, I. As cosmicômicas. São Paulo, Companhia das Letras, 1994.

29 É muito criativa a maneira como Ítalo Calvino aborda esse preconceito, talvez mais antigo do que o próprio Universo! Também os outros tinham lá sua implicância com os Z’zu, a começar por aquela definição de ‘imigrante’, baseada na pretensão de que, enquanto estavam ali primeiro, eles haviam chegado depois. Que isso era um preconceito sem fundamento, a mim me parecia claro, dado que não existia nem antes nem depois e nem lugar nenhum de onde imigrar, mas havia quem sustentasse que o conceito de ‘imigrantes’ podia ser entendido em seu estado puro, ou seja, independentemente do espaço e do tempo. (1994, p.47)

norteiam, quais sejam, as crenças, as ideologias, os interesses e a hierarquia de valores dos seus autores, bem como dos condicionantes históricos, geográficos e biológicos.

Quando as ações/reflexões humanas são desmembradas desses interferentes, muitas delas passam a ser caracterizadas como unicamente “destruidoras do ambiente”, fornecendo uma boa justificativa para a legitimação de um princípio constantemente presente nos movimentos ambientalistas, segundo o qual a ética centra-se na vida, na natureza, e não no ser humano (MAZZOTTI, 1998). Outra manifestação dessa “desumanização” das ações/reflexões humanas foi constatada por ORLANDI (1996) na análise de documentos sobre Educação Ambiental. A pesquisadora identificou que, na maioria desses documentos, ocorrem situações nas quais os aspectos políticos, históricos e ideológicos das ações/reflexões humanas são simplesmente ignorados, não sendo explicitados que as mesmas são inerentemente impregnadas de valores sociais e posições políticas.

[os ambientalistas] Pretendem preencher essa falta [de valores e posições políticas] com a “espiritualidade”. Daí as conclusões moralizantes. Ora, a

moral da história - toda narrativa que analisamos, seja classificada como paradidática ou literária, tinha uma moral da história - poderia ser uma aber- tura e não um fechamento se fosse dado lugar ao político, ao social. Desse modo, as relações de poder não apareceriam como ganância, mas como uma questão estrutural sócio-histórica, parte de um processo político em que se inclui o cidadão. (ORLANDI, 1996, p.43)

Um segundo equívoco que pode ser cometido consiste na posição oposta e igualmente perigosa, a consideração extremada dessa característica, levando a um antropocentrismo

exacerbado que, segundo AMARAL(1995) (...) foi inferido a partir da veiculação da imagem de uma natureza passiva, autômata, a mero serviço do ser humano, configurada pela ênfase na disponibilidade, conservação e uso racional dos recursos naturais e na capacidade infinita de [o ser humano] transformar artificialmente a paisagem de acordo com suas necessidades e caprichos. (p.340-341)30. É possível depreender que o autor também

30 AMARAL (1995) detectou essa características em estudos independentes de seu trabalho de doutorado, com livros didáticos de

considera o antropocentrismo inerente à condição humana, visto qualificá-lo negativamente somente quando presente de maneira mais intensa, mais veemente, mais violenta31

.

O início dessa exacerbação pode ser localizado principalmente a partir do século XVII, na filosofia Ocidental, quando o homem32 imbuiu-se de autoridade perante os demais seres vivos pela propriedade da razão, a qual legitimou não só uma superioridade, mas também a posse sobre os demais componentes do ambiente: (...) a natureza inteira tende a prover a felicidade do

homem, cuja autoridade se estende por toda a terra, podendo apropriar-se de todo produto. Assim, nesta relação, tudo foi criado para o homem. (LINNEU, 1972, p.118)33. Porém, a razão, por ser atributo humano, não pode ser isolada do contexto individual nem sociocultural do indivíduo que a possui. A razão não é tudo. Tem alcances e limites. Há razões

que transcendem a razão. (BOFF, 1998, p.17)

Aceitar o antropocentrismo de forma exacerbada, ou como algo inerente à condição humana, ou ainda ignorá-lo, irá depender da maneira como são ou não são considerados os interesses, hierarquia de valores, crenças e ideologias que guiam as ações, as reflexões, os olhares, as visões e as miopias humanas.

... Arrebentavam a porta. Derrubaram a porta. Ao chegar ao lugar luminoso onde a verdade esplendia seus fogos,

era dividida em metades diferentes uma da outra. Chegou-se a discutir qual a verdade mais bela. Nenhuma das duas era realmente bela. E carecia optar. Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

(fragmentos do poema Verdade , de CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)34

31

Significado de exacerbar segundo o Novo Dicionário Básico da Língua Portuguesa - FOLHA/AURÉLIO

32 Aqui a denominação homem, no lugar de ser humano é proposital, visto que as mulheres, as crianças e muitas minorias culturais e

econômicas não eram, e muitas ainda continua não sendo, consideradas pertencentes à espécie Homo sapiens sapiens. É preciso ainda ressaltar que a estrutura sociocultural e científica que alçou a razão como marca indelével das ações/reflexões humanas é extremamente exclusivista. Apenas os seres humanos constituintes das elites do poder econômico, político, cultural e/ou científico a possuíam, enquanto que a escravos, negros, indígenas, mulheres e outros grupos socioculturais, esse atributo era sumariamente negado.

33 Apud ACOT, 1992