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Os neurônios possuem 80% de seu citoplasma constituído por água. Seria esse um entendimento possível para águas de pensamento? Por outro lado, a água flui por toda a superfície do planeta, com a hidrosfera transcendendo seus limites próprios e infiltrando-se em todas as demais esferas materiais, desde a biosfera (em que representa cera de 2/3 de sua constituição) onde se encontra no citoplasma de qualquer célula, até a atmosfera, sob a forma de vapor e de nuvens, passando pela litosfera, onde é encontrada nos interstícios dos solos, nos lençóis subterrâneos e na rede cristalina de muitos minerais, tornando, inclusive, curiosa a denominação do planeta de Terra. Essa onipresença das águas estender-se-ia ao próprio pensamento? Seria impossível pensar o ambiente terrestre sem travestí-lo de água?

Ou, trilhando outra linha interpretativa, deveria assumir-se que o autor do verso estaria querendo chamar a atenção para a fluidez e inconstância dos pensamentos que, tal como as águas, vão e vêm, aceitando as formas circunstanciais de seus reservatórios, principalmente quando

atrelados às percepções? Senão, como associar atos tão diferentes quanto perceber e

conceber? Seriam tão diferentes assim? Um dos caminhos para a busca dessas respostas seria um mergulho na provável essência do poema: a radical subjetividade humana, tamanha que até o ato de percepção é norteado por concepções prévias, fazendo com que a observação das águas, na realidade, apenas expressem as águas concebidas nos pensamentos dos seres humanos.

Não apenas Octávio Paz rendeu-se ao fascínio das águas para expressar suas idéias e sentimentos. Músicos como Tom Jobim11, e outros poetas, como Fernando Pessoa12, criaram imagens clássicas em torno das águas e sua importância para o ser humano. Independentemente das interpretações e especulações já criadas para as águas, os pensamentos e suas possíveis inter- relações, há que se considerar a compreensão científica dos dois termos postos em relevo:

§ Água: molécula resultante de duas ligações covalentes entre dois átomos de hidrogênio e um de

oxigênio, formando um ângulo de 104,5º entre si.

§ Pensamento: processo complexo que envolve uma teia de aproximadamente 10 bilhões de

neurônios, dezenas de neurotransmissores, milhões de células glias e bainhas de mielina.

Os pensamentos fundamentados e sistematizados nos estudos físico-químicos determinam que a água é uma molécula polar13, cuja estrutura é garantida pela ocorrência das pontes de hidrogênio14 entre suas moléculas. A configuração molecular dessa substância, mais especificamente sua polaridade, além de torná-la um poderoso solvente natural, atribui-lhe uma característica única entre as demais substâncias químicas, pois quando tem sua temperatura

11 Com os versos São as águas de março fechando o verão, é a promessa de vida no teu coração, Tom Jobim, em sua canção Águas de Março (1972) parece querer atribuir às águas um poder purificador da vida e do pensamento humanos. Augusto MASSI

(2000) também identifica essa (...) reencenação de antigos mitos de renovação (p.12) em outras duas canções do maestro Brasileiro Chovendo na Roseira (1970) e Correnteza (1970), ambas envolvidas com o tema da água.

12 Os antigos navegadores portugueses utilizavam-se da frase navegar é preciso, viver não é preciso, para, provavelmente,

expressarem a exatidão que deve cercar o ato da navegação ao contrário da vida em geral. Há ainda uma outra interpretação da frase que acentua a necessidade do ato de navegar, que se torna maior que o próprio viver. O famoso poeta português Fernando Pessoa vai ainda mais longe nesta última linha interpretativa, apropriando-se da frase e interpretando-a da seguinte maneira: Navegadores

antigos tinham uma frase gloriosa: “Navegar é preciso, viver não é preciso” Quero para mim o espírito dessa frase, transformada a forma para a casar com o que eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar. Não conto gozar a minha vida; nem em goza-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a minha alma a lenha desse fogo. Só quero torna-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha. Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho na essência anímica do meu sangue o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da Humanidade. É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça. (Fernando PESSOA, 1997)

13 Essa polaridade ocorre devido à localização, nesse caso, de uma maior densidade de carga negativa na extremidade do oxigênio,

enquanto que nas extremidades dos hidrogênios é maior a densidade de carga positiva. A polaridade favorece o aparecimento de pontes de hidrogênio e permite uma maior interação entre as moléculas nos estados líquido e sólido.

14 Pontes de hidrogênio são interações de curto alcance que ocorrem devido à polaridade da molécula. Basicamente é caracterizada

pelo compartilhamento do átomo de hidrogênio por dois átomos de oxigênio. Tais pontes de hidrogênio possibilitam o aparecimento, na água, de propriedades diferentes da presente em outros hidretos da mesma família como o H2S, o H2Se e o H2Te.

diminuída, sua densidade vai aumentando, atingindo seu valor máximo a 3,98º C. A partir desta temperatura a densidade começa a diminuir novamente e o gelo formado fica menos denso que a água líquida. Essas características físico-químicas são responsáveis por diversas propriedades da água, conferindo-lhe a possibilidade de existir nos três estados físicos, na superfície terrestre15, bem como desempenhar um papel fundamental na configuração do ambiente desde o passado até o presente geológico, incluindo nesse cenário a presença da vida.

Essa concepção físico-química da água impede ou favorece as percepções acerca desse componente pelos seres humanos? Perceber essa substância físico-quimicamente consistiria em uma desestruturação de tal concepção ou seria seu complemento? Ou ainda, não seria também essa concepção nada mais, nada menos, do que uma criação/invenção humana, por isso relativa e ambígua?

Transferindo a concepção da água para o pensamento fundamentado e sistematizado nos estudos biológicos, ela representa a molécula que possibilitou o aparecimento, além de garantir a permanência no planeta, da razão de ser da própria biologia - a vida. Como o metabolismo dos seres vivos constitui-se básica e fundamentalmente de reações físico-químicas, o conhecimento biológico não exclui a importância dos atributos físicos e químicos da água. Mas, como os seres vivos não criam água em quantidade necessária para que se mantenham vivos independentemente do entorno, eles são obrigados a obtê-la do ambiente externo ao seu corpo.

A partir dessa dependência metabólica, apresentada por todos os seres vivos, sem exceção, a água adquire outra concepção, estabelecendo-se uma relação indissociável entre o interior dos seres vivos e a água localizada no ambiente externo. Começa-se a admitir que a percepção da água é vital para os seres vivos. Mas, estaria o ser humano aí incluído? Ou, para essa espécie, bastaria concebê-la sob os pressupostos físico-químicos e/ou biológicos? Mas, para concebê-la, não necessitariam os seres humanos primeiramente percebê-la? Ou perceber e conceber, mesmo sendo atos distintos, seriam indissociáveis e concomitantes?

As Geociências contribuíram de modo significativo para a construção de um vínculo entre a concepção e a percepção das águas pelos seres humanos. Estudos nelas fundamentados e sistematizados apresentam a água como agente geológico, capaz de proporcionar uma complexa rede de interações entre todas as esferas materiais superficiais terrestres, não somente no tempo atual, mas durante as etapas passadas da existência da Terra. Possibilita, assim, a concepção de

15 Ambiente físico da Terra que, embora perfaça apenas aproximadamente de 1 a 1,5% do raio da esfera do planeta, engloba a

água como um agente geológico da dinâmica terrestre por intermédio de uma permanente e constante troca de matéria e energia entre a hidrosfera e as demais esferas materiais, incluindo as inter-relações e interdependências entre todos os componentes do ambiente envolvidos no ciclo hidrológico.

Por sua vez, o enfoque fornecido pela Geologia, assumida como ciência histórica da

natureza16, proporciona a inserção da biosfera17 na dinâmica planetária, incluindo as

ações/reflexões humanas e as suas produções, como por exemplo as concepções e percepções, além dos condicionantes dessas ações/reflexões, sob a forma do que alguns autores designam de

noosfera18 (esfera das relações sociais), na qual o ser humano é assumido como possuidor de uma naturalidade bio-sócio-cultural. (...) Pela origem, pelo que é, pelo que faz, não há, pois, razões convincentes para considerar o Homem um ser não natural ou não pertencente à natureza. (AMARAL, 1995, p.349).

Assim sendo, na perspectiva geológica de tempo e espaço, o ser humano passa a ser encarado como um “simples” agente geológico, conjuntamente à água, aos ventos, aos demais seres vivos. Além disso, ao passarem a ser entendidos na escala geológica, o tempo e o espaço deixam de centrar-se nos referenciais cotidianos da espécie humana, possibilitando identificar que a concepção construída sobre a água e sobre qualquer componente do ambiente está inerentemente atrelada à percepção que os humanos deles fazem, podendo, portanto, modificar-se de acordo com os referenciais por eles utilizados.

16 A Geologia, entendida como ciência histórica da natureza (POTAPOVA, 1968) tem como objeto de estudo todas as esferas

materiais superficiais da Terra, inclusive a biosfera, visualizadas na perspectiva histórico-geológica. A litosfera, em virtude de suas características e propriedades físico-químicas, é tomada também como objeto de investigação, pois é nela que estão registrados os vestígios do passado terrestre. Segundo AMARAL (1995), distingue-se das Geociências porque estas têm como objeto de estudo a constituição e a dinâmica das esferas materiais terrestres inanimadas tomadas na escala de tempo do presente geológico.

17 Interessante realçar que a biosfera, além de ser a última das esferas a ter seu conceito definido pelas Ciências, teve um geólogo,

Vladimir Ivanovich Vernadsky, como definidor desse conceito. Vernadsky introduziu a novidade em sua obra The Biosfhere (1922) a partir do conceito original dado por Suess em Das Antilitz der Erde (GRINEVALD, 1986). Vernadsky também realçou a importância da biosfera para o equilíbrio dinâmico do planeta e identificou a resistência que os cientistas da época apresentaram para entender o ambiente de maneira integrada. A importância da vida em toda a estrutura da crosta terrestre penetrou muito

vagarosamente na mente dos cientistas, ainda não sendo aceita plenamente. Isso remonta a 1875 quando E. Suess, professor da Universidade de Viena, um dos mais eminentes geólogos do último século, introduziu na ciência a noção de biosfera como a idéia de um envelope particular na crosta terrestre, uma camada permeada pela vida. (VERNADSKY,

1929 Apud GRINEVALD (1986), tradução da autora da presente pesquisa).

18 TEILHARD, em sua obra The future of the man, compara a noosfera à um envelope de substância pensante, uma camada que

envolve todo o planeta, possuindo um crescimento sobre e além da biosfera. (Apud GRINEVALD, 1986). A idéia original acerca de uma esfera terrestre que envolvesse especificamente as manifestações bio-sócio-culturais humanas, surgiu, segundo GRINEVALD, como resultado de vários encontros de Teilhard, Le Roy e Vernadsky, em Paris, nos anos 20 do século passado.