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Se me vejo no que vejo, apesar da impossibilidade da limpidez plena do olhar, é lícito perguntar se é minha criação isto que vejo? Se a resposta for afirmativa, que criação é essa? Criação mental a partir do olhar contaminado ou criação da própria realidade? Quais seriam as condições para que se materializasse essa criação que vejo? Os seres humanos somente criariam e veriam após a manipulação intelectual do ambiente, configurada na construção de conhecimento e das representações de espaço e tempo, após a manipulação material e energética do ambiente, ou em uma terceira situação – unicamente na associação de ambas as apropriações?

Em um primeiro momento pode-se ter a impressão de que ações/reflexões concernentes ao suprimento de matéria e energia fundamentar-se-iam somente nas necessidades biológicas dos seres humanos, ocorrendo praticamente à margem da manipulação dos pensamentos e das concepções. Ledo engano, pois assim como as ações não se desvinculam das reflexões, as concepções das percepções, as transformações que o ser humano realiza no ambiente não se desvinculam das apropriações que realiza, quaisquer que sejam, bem como não se dissocia de todos os condicionantes envolvidos nessas apropriações.

O manuseio/apropriação de materiais visando o suprimento das necessidades humanas de matéria e energia confunde-se com a própria evolução da espécie24, a construção de conhecimento sobre o ambiente e das representações de espaço e tempo. Duas ações/reflexões humanas exemplificam a impossibilidade de dissociação desses aspectos ao discutir sobre as apropriações humanas, além do indubitável atrelamento de todos eles aos condicionantes geográficos, históricos, físicos, geológicos, biológicos, sociais, econômicos e culturais: a agricultura25 e a pecuária. Tais invenções/criações, de modo algum, referem-se exclusivamente ao suprimento de matéria e energia, pois ambas proporcionaram, e ainda continuam proporcionando, o desenvolvimento de novas técnicas e conhecimentos acerca de alguns componentes do ambiente, assim como o aprimoramento da utilização de artefatos já existentes. Outro fato observado com o advento da agricultura nas primeiras comunidades humanas foi a necessidade e o interesse sobre a medição do tempo e do espaço, pois começou a tornar-se fundamental determinar a época do plantio26 e os limites dos territórios.

A partir de uma manipulação dos componentes do ambiente que, supostamente, limitava-se basicamente às necessidades bio-fisiológicas, a agricultura e o pastoreio começaram a envolver uma complexa teia de necessidades, interesses, valores, crenças e ideologias dos mais diversos matizes, possibilitando identificar a inextricabilidade das ações/reflexões humanas em relação a todos os seus condicionantes.

Assim, no transcorrer desses milhares de anos, as comunidades humanas vêm transformando profunda e constantemente o ambiente de acordo com as suas necessidades e interesses em apropriar-se das mais variadas maneiras dos componentes ambientais, norteadas pelos mais diversos condicionantes. No entanto, essa intensa atividade, ao mesmo tempo fundamental e essencial para a manifestação da condição humana, começou a mostrar-se paradoxalmente destruidora, visto que exterminava o que não poderia, de modo algum, acabar: as fontes de energia e matéria para as comunidades humanas. Como se situar frente a esse impasse?

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A primeira espécie do gênero ao qual os seres humanos hoje pertencem teve seu nome devido à destreza manual em confeccionar utensílios de pedra, o Homo habilis, fato ocorrido há, aproximadamente, 2.300.000 anos. Essa habilidade foi muito maior no Homo

erectus, atingindo o estágio atual com o Homo sapiens sapiens, há aproximadamente 100 mil anos.

25 Foi tão profunda e intensa a influência dessa prática na organização social humana que Darci RIBEIRO (1998), ao propor uma

discussão ampla e global sobre o desenvolvimento da evolução sociocultural da humanidade por meio de diferentes revoluções ocorridas no transcorrer de sua história, localiza a Revolução Agrícola como a primeira delas. Segundo o autor, após a Revolução Agrícola a humanidade ainda presenciou a Urbana, a do Regadio, a Metalúrgica, a Pastoril, a Mercantil, a Industrial e a Termonuclear.

26 Inicialmente o ano foi baseado nos movimentos lunares. Porém, o ano lunar começava sempre 11 dias mais cedo a cada ano que

passava e, ao final de algum tempo, inverno e verão estariam em posição invertida. Desta forma os egípcios adotaram a estrela Sírius e os gregos o Sol como referencial para demarcar o ano (ASSIS, 1999). Os muçulmanos adotam até hoje o calendário lunar.

Após aproximadamente 100 mil anos sobre a superfície do planeta, alguns Homo sapiens

sapiens depararam-se com um cenário aterrador e questionaram-se: é essa a criação que vejo?

Ou nisto que vejo há coisas que escapam à minha criação e à minha visão?

A preocupação com esse cenário intensificou-se principalmente a partir da década de 70 do século XX, quando a constatação da destruição do ambiente em escala planetária começou a ser mais evidenciada tanto pela comunidade científica quanto pela mídia. Quais seriam as saídas? Ergueu-se, quase que imediatamente, a voz contra o desperdício tanto da matéria quando da energia. Sem dúvida, o desperdício precisa ser evitado, porém uma reflexão mais minuciosa precisa ser realizada: qual o referencial para determinar o que seja desperdício? Qual o parâmetro para indicar o limite entre as necessidades (sejam socioculturais, psicológicas, físicas, químicas, biológicas e/ou geológicas) e o desperdício? Assim, como qualquer ação/reflexão humana, o desperdício está intrinsecamente atrelado aos seus condicionantes, mostrando-se subjetivo e relativo no tempo histórico e no espaço geográfico.

A concepção atual de desperdício, no entanto, não é essa que integra as ações/reflexões desperdiçadoras ao conjunto de seus condicionantes, mas sim, aquela que prioriza apenas os interesses e valores econômicos. Desta maneira, o desperdício é apresentado de maneira restrita e simplista, ocorrendo somente quando não há produção sócio-econômica, relegando-se ou, na maioria das vezes, ignorando-se, os aspectos socioculturais, psicológicos, físicos, químicos, geológicos e/ou biológicos que também constituem as ações/reflexões humanas. A contraposição dessa interpretação reducionista e fragmentadora, no entanto, é identificada permanente e constantemente na história humana, onde vicejam ações/reflexões que não “produzem” economicamente, mas que jamais foram e provavelmente nunca serão consideradas desperdícios.

(...) a construção de pirâmides, igrejas, templos, palácios, manutenção de poetas, seresteiros, artistas em geral, intelectuais diversos, manutenção de forças armadas e policiais, além de alguma garantia de seguridade social que mantém pessoas que não produzem, são mostras de ‘desperdícios’ conscientemente realizados e não de irracionalismo do sistema. (MAZZOTTI,

p.239, 1998)

Crianças e adolescentes, nas salas-de-aula, escrevem duas letras e já atiram suas folhas de caderno ao lixo. Quantas folhas de papel Chico Buarque, Carlos Heitor Cony, Vinícius de Moraes,

Arnaldo Antunes, entre dezenas de tantos outros escritores, devem ter jogado fora para compor suas obras? Toneladas de árvores são transformadas em papel que produzem milhares de exemplares de jornais, revistas e livros de duvidosa qualidade. Outras tantas toneladas de vegetais são transformadas em lenha, única fonte de energia para milhões de africanos que vivem sob as mais sangrentas e desumanas guerras civis. Onde está o desperdício?

Além disso, é salutar ressaltar que toda e qualquer manipulação realizada pelas ações/reflexões humanas gera resíduos, denominados genericamente de lixo e poluição. Mas qual seria a “especificação” para que um material fosse considerado lixo27? Existiria lixo somente na esfera material ou seria possível identificar sua presença na esfera energética e, até mesmo, na esfera intelectual? O que é lixo para um bebê de 10 meses também o é para um adulto? O lixo limeirense é igual ao lixo londrino?

Igualmente à discussão acerca da inerente ambigüidade das ações/reflexões humanas relacionadas ao desperdício, o lixo e a poluição, também estão carregados de relativismo, sendo conceitos extremamente genéricos e que possuem divergentes, quando não antagônicas, significações. O mesmo gás carbônico que sustenta a vida na Terra por intermédio da fotossíntese acumula-se na estratosfera causando o efeito estufa. A mesma radiação gama que matou milhares em Hiroshima e atingiu outros tantos milhares em Chernobyl proporciona um tratamento eficiente para controlar as divisões celulares das células cancerosas, salvando milhões de seres humanos. Não existe, portanto, um limite definido e límpido para o que seria lixo e poluição. Apenas sabe-se que há desperdício, lixo e poluição, mas que podem não se configurar como tal, dependendo das circunstâncias e do referencial de análise que se utiliza, conforme é possível depreender dos autores que seguem.

(...) resíduos são sempre descritos como uma forma potencial de matéria prima para alguém, no local errado e no tempo errado. (CAMPBELL, 1991) A poluição é um conceito útil e relativo. Não é típico da ação humana nem da vida, bem como nem toda intervenção humana constitui poluição. (...) O problema fundamental é que a intervenção humana tem se caracterizado por uma velocidade e intensidade tal que passou a dificultar os mecanismos de

27 Segundo TEIXEIRA (2001) há uma grande quantidade de definição para resíduo sólido, como pode ser verificado em LIMA (1995),

TCHOBANOGLUS, THEISEN e VIGIL (1993), TEIXEIRA (1993) e CAMPBELL(1991), além da fornecida pela norma brasileira NBR 10004 (1987).

sobrevivência e evolução, em escala mundial, contrariando assim o comportamento normal da natureza, que nos últimos bilhões de anos manteve-se favorável à manutenção, expansão e evolução da vida. (AMARAL, 1976, p.14)

Mesmo considerando a existência de uma imensa variedade de referenciais a partir dos quais pode-se conceituar lixo e poluição, o que parece conclusivo é que todas as pessoas querem e precisam estar longe dos resíduos provenientes do seu processo de ser/tornar-se humano, qualquer que seja o seu modo de produção, suas características físico-químicas e sua significação sociocultural.

(...) O certo é que os lixeiros são acolhidos como anjos e a sua tarefa de remover os restos da existência do dia anterior é circundada de um respeito silencioso, como um rito que inspira a devoção, ou talvez apenas porque, uma vez que as coisas são jogadas fora, ninguém mais quer pensar nelas.

(CALVINO, 1991, p.105)

Afastando dos olhos os produtos da intensa transformação da constituição e da dinâmica terrestres, provenientes da sua manifestação bio-sócio-cultural, o ser humano procura ignorar a sua delicada e complexa situação perante os demais componentes do ambiente. Porém, essa tentativa de esquecimento, de evitar que me veja no que vejo, não impede nem interrompe o processo de ser/tornar-se humano, configurado pela apropriação sociocultural do ambiente, para além da mera dimensão biológica, sendo sempre minha criação isto que vejo. Os esforços em fazer a “realidade” entrar por meus olhos em um olho mais límpido se esvaem, porque insistentemente me olha o que eu olho e não consigo evitar que, querendo ou não, seja a criatura do que vejo. Assim sendo, perceber torna-se conceber submerso em águas de pensamento, configurando a absoluta miscigenação entre realidade e pensamento, entre ambiente e ser humano, cuja hominização (tornar-se humano) é uma expressão da sua naturalidade.