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Como tocar um coração selvagem?

No documento Corpo em devir Entre a floresta e a cidade (páginas 31-36)

CAPÍTULO 1. CORPO CAOS

1.2. Como tocar um coração selvagem?

Como me manter viva sendo atravessada por afectos que foram fermentados durante séculos de desrespeito, opressão e violência?

Passei o primeiro ano medindo os passos, escolhendo as palavras, me expressando com muito cuidado. Tomada por um sentimento de impotência, observei que todos os sustos, todos os confrontos e choques experimentados até então, passaram a produzir um corpo esvaziado, estratificado.

Uma carapaça foi tomando conta de minha pele e fibras musculares, percebia o enrijecimento. Como efeito de todos os sustos contidos, uma onda de vibração passou a percorrer todas as células, notava a presença de meus órgãos – extremidades trêmulas, garganta, estômago e intestinos frouxos, pulmão comprimido, coração fora do ritmo.

Sobressaltos, espasmos e a sensação de que não havia mais tempo, não havia um lugar. Um corpo vibrátil vibrando em descompasso.

Experimentar em meu próprio corpo os efeitos de um arranjo reativo. Me perceber territorializada no plano das formas vigentes de psicopatologia, aberta aos atravessamentos desta construção social, de seus códigos e representações.

Atenta ao arranjo sintoma-doença-psicofármacos-consumo, tentei me descolar do sentimento de medo e exercitar um olhar de fora. Oscilação entre um organismo aterrorizado e a busca por saídas mais fecundas e potentes. Um Corpo sem Órgãos15 povoado por intensidades, cambaleando entre as superfícies que o estratificam e o plano que o libera.

Corpo sem Órgãos é um conceito criado por Artaud16 e retomado por Deleuze e Guatarri para tratar de um corpo que é pura potência, intensivo, vivo, um conjunto de sensações que resultam da capacidade de ser afetado, experimentar, desejar. Um corpo distinto daquele comandado pelos órgãos que tem um propósito funcional, uma organização produtiva, onde o desejo é adestrado e a vida só faz sentido se tiver uma finalidade, um significado.

15 DELEUZE e GUATTARI, 2012a, p. 27.

16 Antonin Artaud (1896 - 1948) foi um poeta, ator, escritor, dramaturgo, roteirista e diretor de teatro francês

ligado fortemente ao surrealismo, criador do Teatro da Crueldade, foi tido como louco e internado diversas vezes em vários manicômios franceses.

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Deleuze e Guattari propõem que para se atingir um Corpo sem Órgãos é preciso delicadeza, pois como nos encontramos em uma formação social, é necessário ver primeiramente como ela é estratificada para nós, em nós e no lugar onde estamos.

Eis então o que seria necessário fazer: instalar-se sobre um estrato, experimentar as oportunidades que ele nos oferece, buscar aí um lugar favorável, eventuais movimentos de desterritorialização, linhas de fuga possíveis, vivenciá-las, assegurar aqui e ali conjunções de fluxos, experimentar segmento por segmento dos contínuos de intensidades, ter sempre um pequeno pedaço de uma nova terra.17

Sendo assim é necessário certo comedimento ao experimentar novas realidades, ao se abrir para as afetações do mundo, ser cuidadoso ao se deslocar de um território a outro, ao se desterritorializar.

Rolnik ao discorrer sobre a prática do cartógrafo, enfatiza que a regra de ouro para pensar com o corpo vibrátil seria uma regra de prudência, avaliar constantemente o quanto as defesas que estão sendo usadas servem ou não para proteger a vida. Compreender que há um limite de tolerância para o quanto se suporta a desorientação e a reorientação dos afetos, um limiar de desterritorialização.18

E ainda pondera que a potência clínica estaria em abrir o corpo para as forças da alteridade do mundo, não esquecendo da prudência que deve nos orientar na modulação desta abertura. Ou seja, reconhecer um pouco mais a crueldade da vida e se assustar um pouco menos com o assombro e a vertigem em que a vida nos lança a cada vez que ela põe um mundo a perder.19

Suspeito que me faltou prudência, foram tantas rupturas ao longo da vida e a cada uma delas, tantos movimentos, deslocamentos e desejo de mundo, que possivelmente eu não tenha percebido a fragilidade em que me encontrava, a falta de terra embaixo dos pés.

Desterritorializada, ávida por novas conexões, tentando criar um mundo possível, me lancei em todos os encontros. Nômade no caos de uma cidade desconhecida, através do trabalho de Acompanhamento Terapêutico, fui contagiada por experiências psicóticas, me deparei com a recorrência de delírios de fuga da capital, me vi trancada com um jovem rapaz em surto em seu cárcere privado; além dos relatos de violência sexual e outras mazelas

17 DELEUZE E GUATARRI, 2012a, p. 27. 18 ROLNIK, 2011, p. 68-69.

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vividas por meus alunos e alunas do curso de Psicologia. Não coloquei limites ao acolher, dediquei meu corpo, minha energia e afetos para dar um refúgio para a dor que me era apresentada.

Um corpo aberto para as intensidades da Floresta Amazônica, para uma potência viva e extasiante, deixando passar também as forças mortíferas, avassaladoras inscritas na vida de um povo e na história desse lugar.

Deleuze dedicado à leitura de Espinosa, pergunta: O que pode um corpo? “O que o corpo pode é a natureza e os limites do seu poder de ser afetado”. Somos afetados por forças ativas e passivas, as forças ativas é nossa potência de compreender, de conhecer, já as forças passivas impedem ou diminuem nossa potência de agir.20

Espinosa21 discorre sobre a potência de agir e a potência de sofrer, segundo ele, a potência de agir seria esse poder de ser afetado, e por outro lado, a potência de sofrer seria a limitação das forças ativas.

Sofremos por uma coisa exterior, distinta de nós mesmos; temos portanto nós mesmos uma força de sofrer e uma força de agir distintas. Mas nossa força de sofrer é apenas a imperfeição, a finitude ou a limitação de nossa própria força de agir. Nossa força de sofrer não afirma nada, porque não exprime absolutamente nada: ela “envolve” apenas nossa impotência, ou seja, a limitação de nossa potência de agir. Na verdade, nossa potência de sofrer é nossa impotência, nossa servidão, isto é, o grau mais baixo de nossa potência de agir.22

Preocupado com a complexidade da noção espinosista de “ordem da Natureza”, Deleuze chega à conceituação da ordem dos encontros, através da qual expõe uma ordem de conveniências e outra de desconveniências. Os corpos existentes se encontram podendo apresentar relações que se compõem (ordem de conveniência) ou relações que não se compõem, onde um dos corpos seja determinado a destruir a relação do outro (ordem de desconveniência).

A partir dessa lei, entendemos que se encontro um corpo cuja relação convêm com a minha natureza, será possível um encontro útil. É possível identificar um bom encontro

20 DELEUZE, G. 1968, p. 147.

21 É importante entender que o pensamento de Espinosa sobre a potência, os afetos e a alegria foram concebidos

no contexto da Europa pós inquisição, onde as potências da natureza (a potência do vivo) haviam sido eliminadas; diferente da experiência da Amazônia contemporânea, onde apesar da dilapidação da natureza, o vivo ainda persiste gerando possibilidade de criação.

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quando percebemos que alguma coisa nos afeta de alegria, esse sentimento aumenta nossa potência de agir, ele vai nos determinar a desejar, a imaginar, a fazer tudo aquilo que está em nosso poder para conservar essa mesma alegria e o objeto que a proporciona.

Ao passo que, se esse corpo não convém com a minha natureza, ele produz em mim uma afecção passiva que é, ela mesma, má ou contrária à minha natureza. Surge então um sentimento de tristeza, que se define pela diminuição da minha potência de agir. Ainda assim, frente aos maus encontros nos esforçamos para vencer, para fazer com que as partes do corpo que nos afeta de tristeza tenham uma nova relação que se concilie com a nossa.

Sendo assim, nos localizamos frente aos atravessamentos das forças ativas e passivas, um combate entre a potência de vida e as forças normatizadoras da cartografia vigente, permeada de bons e maus encontros. É a prudência que baliza os atravessamentos potentes daqueles que nos leva ao adoecimento, à impotência. Um cuidado que define o limite entre a possibilidade de pensar e a interrupção do pensamento.

Vigilante a esse limiar, me abro para o acolhimento do inesperado, me implico na investigação de processos de produção de subjetividade, avaliando os efeitos da experiência para daí retirar os desvios necessários para o processo de criação.

Lanço mão do método cartográfico, que como define Kastrup e Barros23, entende as configurações subjetivas não apenas como resultantes de um processo histórico que lhes molda estrato, mas que portam em si mesmas processualidade, guardando a potência do movimento.

A cartografia enquanto método, cria seus próprios movimentos, seus próprios desvios, trata de um caminho que deve ser experimentado e percorrido para então estabelecer suas metas. Ela é um mapa do presente que tem como escopo trajetos e devires.

Segundo Deleuze24, os mapas se superpõem de tal maneira que cada um encontra no seguinte um remanejamento, trata-se de uma avaliação dos deslocamentos, o que está em questão é detectar uma trajetória que sirva como indicador de novos universos de referência. A cartografia é um método transversal porque funciona na desestabilização daqueles eixos cartesianos (vertical/horizontal), onde as formas se apresentam previamente categorizadas. Assim, a operação de transversalização consiste na captação dos movimentos constituintes das formas e não do já constituído do/no produto. O

23 KASTRUP e BARROS, 2014, p. 77. 24 DELEUZE, 2011, p. 86.

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método vai se fazendo no acompanhamento dos movimentos das subjetividades e dos territórios.25

Rolnik coloca que o cartógrafo é, antes de tudo, um antropófago, mergulhado nas intensidades de seu tempo, deve estar atento às linguagens que encontra, devorando as que lhe parecerem elementos possíveis para a composição das cartografias que se fazem necessárias. 26

Um trabalho de investigação pautado no método cartográfico é como uma viagem, no caminho: paisagens inéditas, climas e culturas, encontro com novas subjetividades e suas diferentes capacidades de afetar e serem afetadas, no trajeto poderá acontecer percalços os quais causará desvios, as escolhas serão feitas frente às possibilidades, o destino será aquele alcançado.

Não existe vazio, tudo é habitado, nós somos, cada um de nós, o local de passagem e articulação de uma quantidade de afetos, de linhagens, de histórias, de significações, de fluxos materiais que nos excedem. O mundo não nos rodeia, ele nos atravessa. O que nós habitamos nos habita. O que nos cerca nos constitui. Nós não pertencemos. Nós estamos agora e sempre disseminados por tudo aquilo a que nos ligamos. A questão não é dar forma ao vazio a partir do qual finalmente conseguiríamos agarrar tudo aquilo que nos escapa, mas de aprender a habitar melhor este que lá está... Entrever um mundo povoado não de coisas, mas de forças, não de sujeitos, mas de potências, não de corpos, mas de elos.27

25 KASTRUP e BARROS, 2014, p. 77. 26 ROLNIK, 2011, P. 23.

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No documento Corpo em devir Entre a floresta e a cidade (páginas 31-36)