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Formação social da Amazônia

No documento Corpo em devir Entre a floresta e a cidade (páginas 61-75)

CAPÍTULO 2. CORPO-CIMENTO.

2.1. Formação social da Amazônia

A formação social da Amazônia, do Estado do Amazonas e mais especificamente de sua capital Manaus, foi marcada pela resistência do povo da terra contra a colonização dos estrangeiros. Essa resistência está presente em todos os períodos da história de colonização da região, está presente na invasão dos europeus, na migração dos nordestinos e na expansão urbana resultado da industrialização. De uma forma mais sutil essa resistência perdura até hoje.

Segundo Djalma Batista, a formação da cultura na Amazônia tem estado intimamente ligada à colonização e à economia:

O primeiro esforço de disciplinar as atividades regionais, devemos aos missionários, que intentaram o aldeamento dos gentios e sua incorporação à civilização do tipo europeu; e aos reinóis, que se fixaram nestas paragens, em busca de aventura ou no desempenho de funções administrativas. A rebeldia dos indígenas, a rarefação populacional, a extensão imensa da terra, a luta contra os invasores nas suas iterativas sortidas, o desenvolvimento econômico precário – tudo isso contribuiu para que nada ou quase nada resultasse em favor da cultura, nesses primeiros tempos, sobretudo porque pretenderam os brancos fazer que os peles-tostadas ascendessem, de um salto, do totemismo ao monoteísmo, da barbárie ao cristianismo, do nomadismo à atividade sedentária, da colheita aleatória dos bens da terra e da água à agricultura sistemática.73

Os peles-tostadas, como caracteriza Djalma Batista, apresentavam um modo de subsistência baseado no contato íntimo com o ambiente da floresta, seus valores, mitos e crenças refletiam às peculiaridades da região. A interação com a selva, os perigos, os alimentos, as plantas medicinais, os óleos, animais, peixes, a forma de sobreviver e viver na Amazônia fazia parte de um conhecimento inerente aos ameríndios que viviam na Amazônia no período das primeiras colonizações. Segundo Benchimol, o conhecer, o saber, o viver e o fazer na Amazônia colonial foi um processo predominantemente indígena. Ainda que centenas de nações indígenas vivessem na região, apesar de sua rebeldia e insubmissão, pouca resistência puderam oferecer à cobiça do invasor.

73 BATISTA, Djalma. 2006, p.68. Originalmente publicado na Revista da Academia Amazonense de Letras,

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Assim começou a Amazônia Lusíndia, mais índia do que lusa, porém, mesmo assim, suficientemente forte para influenciar os novos padrões culturais e espirituais europeus a serviço da fé e do império. Estes acabaram por desintegrar a identidade cultural indígena, pelas tropas de resgates, aldeias, missões, reduções, catequeses, queima de malocas, dízimos e trabalho servil.74

Benchimol continua dizendo que a contribuição indígeno-cabocla para a ocupação e desenvolvimento da Amazônia foi essencial, sem ela a tarefa de descoberta e ocupação teria sido impossível. Domesticados, eles ensinaram aos novos senhores e imigrantes os segredos do rio, da terra e da floresta. Dentre essas contribuições estão o conhecimento da geografia dos rios e águas da região o que possibilitava o transporte fluvial, o abastecimento de água e alimentos; o aproveitamento das várzeas dos rios; a convivência com o regime das enchentes e vazões fluviais; o uso das terras firmes da floresta, a construção de embarcações e o domínio da navegação; as práticas agrícolas, a caça, a pesca e a identificação de plantas e animais; a construção de casas para vencer as enchentes; o artesanato; a culinária. Riquezas e recursos que foram sendo apropriados por outros grupos mais audazes e agressivos, que se tornaram patrões e senhores de suas terras, aldeias, malocas, desintegrando as suas culturas e anulando as suas identidades tribais.75

Gilberto Freyre, em Casa-grande e Senzala, coloca que no Brasil verificou-se primeiro o colapso da moral católica, a da reduzida minoria colonizadora, intoxicada a princípio pelo ambiente amoral de contato com a raça indígena. Mas a colonização tomou um rumo puritano que sufocou muito da espontaneidade nativa: os cantos indígenas foram substituídos pelos jesuítas, por outros cantos mais mecânicos e secos; a naturalidade das diferentes línguas regionais foi sobreposta por uma língua geral, acabaram-se as danças e festivais impregnados dos instintos e da energia animal. Além disso, procuraram destruir ou castrar, tudo o que fosse expressão viril de cultura artística ou religiosa em desacordo com a moral católica e com as convenções europeias. Povos acostumados com uma vida dispersa e nômade degradaram-se quando forçados a uma grande concentração e à sedentariedade absoluta. Sendo assim, o que se salvou dos indígenas no Brasil foi a despeito da influência jesuítica.76

74 BENCHIMOL, Samuel. 2009, p. 25. 75 BENCHIMOL, Samuel. 2009, p. 26-30. 76 FREYRE, Gilberto. 2006, p. 178-179.

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Do indígena se salvaria a parte por assim dizer feminina de sua cultura. Esta, aliás, quase que era só feminina na sua organização técnica, mais complexa, o homem limitando-se a caçar, a pescar, a remar e a fazer guerra. Atividades de valor, mas de valor secundário para a nova organização econômica – a agrária estabelecida pelos portugueses em terras da América. O sistema português do que precisava fundamentalmente, era do trabalhador de enxada para as plantações de cana. Trabalhado fixo, sólido, pé de boi. Entre culturas de interesses e tendências tão antagônicos era natural que o contato se verificasse com desvantagem para ambas. Apenas um conjunto especialíssimo de circunstâncias impediu, no caso do Brasil, que europeus e indígenas se extremassem em inimigos de morte, antes se aproximassem como marido e mulher, como mestre e discípulo, daí resultando uma degradação de cultura por processos mais sutis e em ritmo mais lento do que em outras partes do continente.77

Apesar do consenso que a miscigenação no Brasil manteve a presença viva de elementos indígenas e de influência ameríndia tanto em nossas instituições sociais como em nossa cultura material, não podemos deixar de ressaltar que a expropriação do índio não foi pacífica.

Segundo Márcio Souza, as constantes rebeliões foram sufocadas pela repressão armada:

Em 1929, por exemplo, 20.800 índios Muhra foram trucidados por um comando militar português. A resistência do tuxaua Ajuricaba na região do Rio Negro, foi tratada com rigores de uma rebelião e todos os principais cabeças perderam a vida no final. Belchior Mendes de Morais, encarregado de fazer a repressão ao tuxaua Ajuricaba, inaugura sua tarefa subindo pelo rio Urubu e destruindo aproximadamente trezentas malocas e dizimando a ferro e fogo mais de 15.000 índios entre homens, mulheres, velhos e crianças. Se de um lado os colonialistas encontravam adesão pacífica de povos exauridos, outros recusavam esta aliança e mantiveram o colonizador cercado e ameaçado. Quando o remédio do salvacionismo não surtia efeito, a pólvora dos arcabuzes abria uma perspectiva. Os militares portugueses, para enfrentar a resistência nativa, jogava tribo contra tribo, e as punições genocidas completavam o enfraquecimento indígena em sua rarefeita unidade.78

Ajuricaba, o tuxaua Manau, historicamente, foi líder de uma das maiores guerras indígenas de resistência na Amazônia do século XVIII. Seu nome significa abelha feroz e

77 FREYRE, Gilberto. 2006, p. 230. 78 SOUZA, Márcio. 1977, p. 46.

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indica uma pessoa irritável, que não tolera a inércia. Contesta desde muito cedo todas as regras que lhe são impostas e busca sempre seus próprios caminhos. Sua morte, foi o grande gesto que lhe deu entrada na História e no coração do povo da Amazônia. O índio guerreiro, ao ser transportado com seus homens de Manaus para Belém, tenta se rebelar contra os soldados, que tomam suas armas, batem em alguns e matam outros, Ajuricaba pula então da canoa e não reaparece nem vivo, nem morto, e passa a ser considerado um símbolo de coragem, liberdade e inspiração, sendo até hoje mencionado pelo povo amazonense.79

Os enfrentamentos violentos continuaram, não foi diferente nos primeiros anos da Independência do Brasil, com destaque para a Cabanagem como outra marca importante de resistência de índios e mestiços. A Cabanagem ou Revolta dos Cabanos aconteceu no período regencial, entre os anos de 1835 e 1840, na então província do Grão-Pará, a qual hoje corresponde aos estados do Amazonas, Pará, Amapá, Roraima e Rondônia, e tinha como objetivo a independência da região. O Brasil torna-se independente da coroa portuguesa, mas continua sendo politicamente monárquico. As decisões políticas e econômicas favoreciam o sul e o sudeste, a região norte vivia excluída das decisões do país. Essa situação somada às precárias condições de pobreza das classes menos favorecidas, formaram o estopim para o início da revolta.80

Segundo Márcio Souza, esta revolução dos esfarrapados colonizados que encontravam na luta contra o mercantilismo a sua identidade perdida, correria paralela à luta amazonense pela autonomia administrativa. A classe dominante do Amazonas não podia admitir a ousadia da massa revoltada que reivindicava uma Amazônia indígena, e sentiam-se atados para recorrer a um poder central que os ignorava. Vila da Barra (Manaus) caiu na mão dos cabanos em 1836 e tornou-se um matadouro. Mas a força dos “legalistas” chega ao Amazonas e repele os cabanos que vão resistir por dois longos anos. Vila da Barra, agora sem a revolta popular, esmera-se na repressão, reivindicando também uma definição para o território. Pela primeira vez, o Amazonas via seus líderes, sua elite se unir para angariar um objetivo almejado, mesmo que contra seu povo. Em 1850, o Amazonas torna-se província do Brasil.81

Podemos considerar que a resistência indígena permanece evidente no estado do Amazonas, nos modos de vida de um numeroso grupo étnico-social que ocupa as calhas dos

79 COSTA, 2012, p. 33 e 81-82. 80 ARRUDA e PILETTI, 2015, p. 370. 81 SOUZA, Márcio. 1977, p. 50-51.

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rios amazonenses. Segundo Benchimol, a população indígena na Amazônia não é representada apenas pelos 200 grupos linguísticos, não-aculturados, aculturados, ou de contatos intermitentes; mas também por meio de seus descentes nessa grande massa de população cabocla dos beiradões.

Se sua cultura ancestral-original foi destruída pela destribalização, catequese e servidão, o extermínio físico e o holocausto étnico não se realizaram, pois uma grande massa de caboclos e seus descendentes está presente na sociedade amazônica nos dias de hoje.82

Mas ser índio carrega o peso do preconceito, o estigma da preguiça e do atraso. Segundo Márcio Souza, os portugueses sabiamente afastaram a única força suficientemente poderosa, capaz de pôr em xeque sua ideologia mercantil, expropriou do índio certas técnicas indispensáveis para a vida na Amazônia, nos ofereceu como herança a vergonha castradora.83

Ser índio ou tapuia, significa baixa posição social, as pessoas descendentes do ameríndio, ao contrário dos negros, não gostam que se mencione sua ascendência indígena (...). Na sociedade amazônica o índio, muito mais frequentemente que o negro, era o escravo da sociedade colonial. Segundo os europeus, o índio era um selvagem nu, inferior ao escravo africano, mais dispendioso. Hoje em dia, as características físicas de índios são, portanto, um símbolo não só de descendência escrava como também de origem social mais baixa, nos tempos coloniais, do que a do negro.84

Viveiros de Castro em seu manifesto Involuntários da Pátria, problematiza a questão do índio no Brasil. O autor distingue as palavras “índio” e “indígena”, “índios” são os membros de povos e comunidades que têm consciência de sua relação histórica com os indígenas que viviam nesta terra antes da chegada dos europeus. “Indígena”, por outro lado, significa “gerado dentro da terra que lhe é própria, originário da terra em que vive”. O antônimo de “indígena” é “alienígena”, já o contrário de “índio”, no Brasil, é “branco”. Ser indígena é ter como referência primordial a relação com a terra em que nasceu, é ser parte de uma comunidade ligada a um lugar específico, ou seja, é integrar um povo. Ser cidadão,

82 BENCHIMOL, 2009, p. 31. 83 SOUZA, Márcio. 1977, p. 46.

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ao contrário, é ser parte de uma população controlada por um Estado. Ao transformar o indígena em índio o Estado transforma um povo, uma etnia em brasileiro, em cidadão, ao desindianizá-los eles desaparecem enquanto multiplicidade e passam a fazer parte de uma massa pobre e sem-terra, que precisam vender sua força de trabalho, seus corpos, enriquecendo os novos donos da terra.85

O povo baré é um dos retratos desse processo de esmagamento da subjetividade indígena, que vivendo às margens do Rio Negro, habita um penoso intervalo que o coloca entre os aculturados, dissipando suas possibilidades de identificação, seja como verdadeiros representantes indígenas, seja como branco. Um povo que assistiu a dissolução de sua imagem e representatividade junto a outras comunidades indígenas, condição que comprometeu sensivelmente sua percepção a respeito de si mesmo.86

A Fundação Nacional do Índio já considerava o povo baré no médio Rio Negro extinto. Atualmente, através da FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro) e da criação da Acibrin (Associação das Comunidades Indígenas do Baixo Rio Negro) e da ACIMRN (Associação das Comunidades Indígenas do Médio Rio Negro), que se propuseram a incentivar o povo baré a assumir sua identidade original e reivindicar a demarcação e o usufruto de seu território de direito, a situação tem mudado e foi dado início a um processo de recuperação da identidade baré.87

O processo de colonização no Amazonas nunca teve data para acabar. Após o longo período de colonização portuguesa, longo período de revoltas e aculturamento dos indígenas sobreposto principalmente por valores cristãos, o Amazonas e a cidade de Manaus vão sofrer novo processo civilizatório e de colonização com o primeiro ciclo da borracha.

Sendo assim, a partir de 1827, a borracha amazônica já começava a aparecer na pauta da exportação regional. Segundo Dias, a partir de 1890, Manaus sofre o primeiro grande surto de urbanização, graças aos investimentos propiciados pela acumulação de capital, via economia agrária extrativista-exportadora. Antes do apogeu da borracha, conviviam ricos e pobres, brancos, índios, mamelucos e mestiços, a vida em Manaus era vivida por todos os segmentos sem distinção, até aquele momento ainda havia uma reconciliação dos diversos elementos, homem, natureza, trabalho. Naquela época, grande parte da população de Manaus

85 VIVEIROS DE CASTRO, 2016, p. 7-8. 86 HERRERO, M. e FERNANDES, U. 2015, p. 7. 87 HERRERO, M. e FERNANDES, U. 2015, p. 32.

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era formada principalmente por índios, que representavam o maior contingente de trabalhadores; apesar desse dado, os indígenas reagiam contra a ruptura de seu modo de vida que era orientado por sua necessidade e não pelo lucro, se manifestavam de diversas formas, a mais frequente era o abandono das atividades sem se importarem em receber seus salários, o que era visto como falta de ambição e ignorância.88

Durante a fase áurea da borracha, os portugueses que como classe dominante já tinha importante função na modelagem da sociedade, da economia e da política amazônica, atraídos pela fortuna, continuaram desembarcando no Amazonas e foram pioneiros na organização do sistema mercantilista de intercâmbio, representado pelo comércio típico de casas aviadoras (estabelecimentos que abasteciam os seringais, recebendo a borracha ali produzida), o que foi fundamental para que Manaus se transformasse em um relevante entreposto comercial. Já na época da crise e da depressão da borracha, foram também os portugueses, juntamente com os descendentes de imigrantes judeus-marroquinos e sírio- libaneses, que substituíram os antigos exportadores anglo-saxões e germânicos, que voltaram para seus países de origem, passando então a dominar como aviadores e exportadores tanto na capital como no interior, além de fundarem e desenvolverem o mercado varejista.89

Dentre os europeus que imigraram para o Amazonas, os ingleses foram os responsáveis pela mudança de base produtiva e pela criação de novos bens e serviços. Segundo Benchimol, o tempo dos ingleses na Amazônia coincide com o apogeu da borracha e com o auge do Império Britânico que se fazia presente nos cinco continentes, além de marcar o início de um período de investimentos que abriu um ciclo de expansão do capitalismo.

Os ingleses foram responsáveis, em quase todo o mundo, pela importante tarefa de difusão cultural, transferência de tecnologia e inversão de capitais no campo da infraestrutura econômica e de serviços. Desempenhando o papel de inovadores de tecnologia ocidental, ainda com base na Revolução Industrial, os empreendedores e investidores ingleses foram responsáveis, em quase todos os países por onde atuavam, pela implantação de empresas concessionárias de serviços públicos, criando as pré- condições estruturais com a formação de economias externas necessárias para todo o processo de embasamento econômico ulterior.90

88 DIAS, 1999, p. 29-35.

89 BENCHIMOL, 2009, p. 81-84. 90 BENCHIMOL, 2009, p. 226.

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Os ingleses que haviam se antecipado e investido em empresas na Amazônia, puderam usufruir os lucros de seus investimentos, já que houve uma crescente demanda mundial pela borracha, que passou a ser largamente utilizada pela indústria para produção de pneus e outros produtos. Mas da mesma forma que contribuíram para a prosperidade amazonense, numa operação de contrabando atribuída ao aventureiro inglês Henry Alexander Wickham, partiram com setenta mil sacas de sementes de seringueira que foram plantadas experimentalmente em Kew Garden, Londres, transferidas mais tarde para o sudeste da Ásia, onde o clima é semelhante ao da Amazônia e onde as mudas cresceram e transformara-se em seringais ordenados como um bosque, produzindo o látex.91 Com a quebra do monopólio amazônico por plantações racionalizadas, no período da depressão dos anos 20 e 30, com os contínuos déficits e prejuízos, os ingleses retiraram-se da região, a Amazônia viveria então uma longa crise.

Márcio Souza demonstra que este período foi marcado por uma recusa inconsciente à intromissão europeia na arquitetura e costumes manauaras, a boa vida da belle-époque amazonense era uma falácia, uma caricatura de civilização, que de um lado sustentava uma metrópole opulenta e, de outro, vivia a simbiose da exploração do trabalho no seringal com a difícil vida na selva virgem.92

Além da imigração europeia, durante os anos áureos do ciclo da borracha, a principal massa humana que irá aumentar exponencialmente a população do estado do Amazonas e da cidade de Manaus são de migrantes nordestinos que fugindo da seca e da fome ou atraídos pelo desejo de fazer fortuna, deixavam o sertão e vinham em direção à floresta para trabalhar nos seringais. Segundo Benchimol, mais uma vez, quando se iniciou a marcha dos caucheiros e seringueiros nos baixos e altos rios, a onda invasora nordestina transformou os seringais e castanhais em centros de extermínio de muitas tribos e etnias ameríndias. Os indígenas mais uma vez seriam eliminados por novos exploradores da região, mas estes por sua vez, seriam também explorados e viveriam uma vida de penúrias na lida da seringa.93

Durante o tempo em que durou o ciclo da borracha, o migrante nordestino percorreu na Amazônia um longo caminho de sofrimento, sacrifício e muito trabalho para, ao final, chegar à ascensão e classificação econômica, social e política. Flagelado, retirante,

91 SOUZA, 1977, p. 135.

92 SOUZA, 1977, p. 104, 111, 126. 93 BENCHIMOL, 2009, p. 25.

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brabo, comboieiro, mateiro e seringueiro na sua primeira fase. A seguir, gerente de depósito, regatão, seringalista, coronel-de- barranco, chefe político, prefeito, deputado, até atingir a governança em diversos Estados amazônicos. Senão na primeira, com certeza na segunda e terceira gerações de seus filhos e netos.94

Estima-se que a Amazônia, desde o início do ciclo da borracha até 1960, recebeu aproximadamente 500.000 migrantes nordestinos. Entre os primeiros anos do ciclo da borracha até a depressão, de 1877 a 1920, avalia-se que a Amazônia recebeu 300.000 migrantes nordestinos. O segundo ciclo da borracha aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial, quando o Japão dominou militarmente o Pacífico Sul, invadindo a Malásia e controlando os seringais, o que culminou na queda de 97% da produção da borracha asiática. Nesta ocasião os Estados Unidos, através de acordos com o governo brasileiro, desencadearam uma operação em larga escala com objetivo de retomar as grandes exportações de borracha, o que foi chamado de Batalha da Borracha. Neste período, tempo do exército de soldados da borracha, em que trabalhadores nordestinos eram incorporados aos seringais da Amazônia pela Comissão Administrativa de Encaminhamento de Trabalhadores para a Amazônia (Caeta), entre os anos de 1941 e 1945, é possível afirmar que 152.138 pessoas chegaram a Manaus e 118.068 deixaram a capital com destino ao interior do estado do Amazonas e outros estados, sendo assim provavelmente permaneceram em Manaus 34.070 pessoas.95

Quando a guerra acaba, os americanos vão embora e os investimentos federais não dão continuidade à Campanha da Borracha, que apesar de parecer, não era um plano de valorização regional a longo prazo. Depois de 1946, os seringais são novamente abandonados, o que se vê a partir de então é o êxodo rural e o processo de esvaziamento do

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