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CAPÍTULO 3. CORPO-ÁRVORE

4.1. Entre muros

Como me manter viva sendo atravessada por afectos que foram fermentados durante séculos de desrespeito, opressão e violência? Como me livrar dos efeitos reativos de todos os sustos suportados pelo meu corpo? Como reconhecer a crueldade da vida sem me congelar no assombro e na vertigem em que ela nos lança a cada vez que põe um mundo a perder?

Um corpo irreconhecível, pesado, aterrorizado, mas convicto da potência das experimentações, da performance-arte como uma forma intensiva de tecer o mundo. Com o deslocamento geográfico, muitas coisas ficaram para trás; o estudo das artes visuais e especialmente a participação no projeto “Performance e Memória”, vinculado ao curso de teatro da Universidade Federal de Uberlândia, vinham me ajudando a pensar o corpo e uma outra forma de habitar o mundo, novos experimentos e possibilidades de expressão que me conciliava com os absurdos da vida, do mundo e da lida com o sofrimento humano. Fui encontrando novas formas de me movimentar, de projetar a voz, de me expor, de me relacionar, conquista a passos lentos.

Com o afastamento desse território de criação compartilhada, frente aos efeitos reativos que percebia em meu corpo e sem condições de enfrentar a cidade, passei a ocupar os espaços da casa, exatamente o lugar por tanto tempo destinado socialmente ao feminino. Na cozinha, o tempo de preparo dos alimentos, a atenção aos processos, a escolha dos ingredientes, combinação de temperos, higiene, corte, cozimento, me afastava momentaneamente da aceleração da vida. O remédio era cozinhar, experimentar, aguardar. A comida, seu preparo, um consumo mais consciente de produtos de origem animal, a preocupação com a procedência do alimento, a investigação dos melhores lugares para encontrar determinado ingrediente, a aproximação com produtores ribeirinhos, me oportunizaram um novo modo de me relacionar com a comida e ao mesmo tempo, um processo de elaboração, resgate de aromas afetivos e absorção de alimentos da região.

Uma boa forma de conhecer uma cultura, uma região, um povo é por meio de seus hábitos alimentares. A comida boa é aquela que ativa memórias, que nos transporta à presença de pessoas queridas, sabores da infância. Eita saudade da comida de Minas Gerais! Mas como dizem em Manaus: “Quem come jaraqui, não sai mais daqui!” E comi jaraqui e vários outros peixes da região, comi farinha uarini, tacacá, tucupi, jambu, pupunha, tucumã,

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cará roxo, cupuaçu, tapioca, castanha. Como diz o professor Amálio Pinheiro, “o ato gastronômico, comer, é absorver a paisagem”188. E assim, fui me alimentando, mastigando,

engolindo, digerindo a cidade, a região.

Gradualmente fui ocupando também o quintal de minha casa, nos momentos em que o mal-estar se convertia em angústia, corria para o quintal, passava um bom tempo observando meus vasos de planta, respirava fundo. Um quintal todo cimentado, cinza, entre muros a vontade era de ter um horizonte para fugir com os olhos. Investigando Pindorama, descobri que Manaus é um grande sítio arqueológico e que é comum encontrar urnas funerárias e vestígios de um outro tempo enterrados no quintal, fiquei fascinada por essa possibilidade, passei a frequentar ainda mais o quintal de minha casa. À noite, me deitava bem no meio e fechava os olhos imaginando todos os seres que poderiam ter passado por ali, nesse exato recorte de chão, tudo que poderia existir enterrado embaixo das minhas costas, sentia o solo quente, brincadeira infantil, devir criança, devir índio, sensação de pertencimento, comunhão com a terra.

A partir daí comecei a experimentar todos os cantos, quinas e arestas desse espaço, protegida por quatro paredes conseguia avivar meu corpo, reaver sensações corporais, recuperar movimentos, contato improvisação. Como diz Bergson, “não há percepção que não se prolongue em movimento”189.

Resgatava lembranças de um quintal com pitangueira e jabuticabeira, do jabuti de estimação circulando lentamente, da bisavó matriarca e todas as outras mulheres da família ao seu redor preparadas para produção da pamonha, ralar o milho, encher a palha com a massa cremosa, o cheiro marcante colado nas mãos. Imagens tão próprias de minha infância, mas resgatadas por afectos que vinham de fora, presentes ali no meu quintal, a memória atualizando o passado no presente.

A memória, praticamente inseparável da percepção, intercala o passado no presente, condensa também, numa intuição única, momentos múltiplos da duração e, assim, por sua dupla operação, faz com que de fato percebamos a matéria em nós, enquanto de direito a percebemos nela.190

188 PINHEIRO, A. 2013, p. 29. 189 BERGSON, 1999, P 105. 190 BERGSON, 1999, p.77.

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Devir criança, devir índio produzindo a repetição do diferente, a criação de um duplo, a instauração de um não-eu, reconhecer em mim o lado de fora. Abrir o corpo para vivências singulares, poéticas, para a dissolução de estratos, fluidificação da realidade, ritual de apaziguamento da cabocla em mim.

No início, a câmera de segurança posicionada no fundo da casa era o único olho registrando essa interação, depois comecei a nos fotografar, eu e meu quintal. A criação de imagens-movimentos, de sombras, formas, borrões potencializava novas experimentações e fortalecia o desejo de interagir com a cidade.

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As lembranças de quintal e o despertar de sensações adormecidas trouxeram fortemente a presença de minha bivó Vita. Jovita Augusta, mãe de minha avó materna, nasceu no interior de Goiás, brasileira legítima, mestiça, cabocla. Com 16 anos conheceu meu bisavô que era dentista prático e viajava exercendo sua profissão, ela tinha metade da idade dele quando foram viver juntos, tiveram 4 filhos, 11 netos, 24 bisnetos, ficou viúva com 47 anos, mandava e desmandava em toda família, esteve lúcida e cuidando de todos até o último suspiro, faleceu com 91 anos.

Bivó Vita ficava sentadinha em sua cadeira de balanço, fazendo croché, ao seu lado tinha sempre uma cestinha de palha onde guardava as linhas e agulhas, que ela chamava de “balainho”. Analfabeta, só sabia escrever o nome, tinha um modo próprio de dar nome as coisas que me encantava, depois que a infância passou entendi que era porque ela falava algumas palavras erradas, jeito de gente da roça, sábias palavras erradas. Bivó passava seu tempo fazendo sapatinhos de croché, bainhas de pano de prato e toalhas para doar para bazares de caridade; sempre que alguém estava com algum problema, que acontecia algo que precisava ser resolvido ou quando ouvia uma notícia de que algo no mundo não ia bem, bivó fazia uma “tençãozinha”. Ela colocava uma intenção naquele croché que estava fazendo, como se fosse uma promessa, rezava entre agulhas e linhas e aumentava a meta de sapatinhos, toalhas e panos de prato que seriam doados, com isso sempre teve muito trabalho pela frente.

Foi essa cena que me inspirou a enfrentar a cidade e a criar a performance “Linhas”. Resgatá-la na memória é resgatar o aconchego, um sentimento de pertencimento, além de um exemplo de vitalidade e coragem. Bivó Vita carregava com ela o saber do corpo, um corpo vivo tão potente que prolifera ativamente até hoje.

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4.2. Linhas

A performance “Linhas” traz como elementos uma gaiola e um novelo de linha vermelho, estou vestida com uma saia cinza florida, longa e rodada, camiseta preta e coturno preto. A performance começa com uma deriva e a busca pelo melhor espaço para realizá-la, o novelo de linha está dentro da gaiola. A ação se divide em dois fragmentos, no primeiro a intenção é desnovelar a linha, soltá-la do novelo, o que algumas vezes acontece de maneira delicada e outras vezes agressiva, a interação com o ambiente e com as pessoas presentes que irá determinar a energia empregada. Além disso, ainda nesta parte da ação, quatro movimentos são executados: engolir e cuspir a linha, desenrolar o novelo no meio das pernas, enrolar a linha no pescoço e enrolá-la na cabeça na altura da boca. O resultado da primeira parte da performance é um emaranhado de linha que se espalha pelo ambiente e envolve meu corpo. No segundo fragmento, a finalidade da ação é desembolar, retirar os nós e enrolar novamente a linha no novelo. Durante a performance recito versos da música “Milágrimas” de Itamar Assumpção, letra de Alice Ruiz, algumas vezes falo alto e outras vezes sussurro, sempre de forma descomprometida, conforme as palavras vão surgindo.

Em caso de dor ponha gelo Mude o corte de cabelo Mude como modelo Vá ao cinema dê um sorriso Ainda que amarelo, esqueça seu cotovelo Se amargo foi já ter sido Troque já esse vestido Troque o padrão do tecido Saia do sério deixe os critérios Siga todos os sentidos Faça fazer sentido A cada mil lágrimas sai um milagre Caso de tristeza vire a mesa Coma só a sobremesa coma somente a cereja Jogue para cima faça cena Cante as rimas de um poema Sofra penas viva apenas Sendo só fissura ou loucura Quem sabe casando cura Ninguém sabe o que procura Faça uma novena reze um terço

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Caia fora do contexto invente seu endereço A cada mil lágrimas sai um milagre Mas se apesar de banal Chorar for inevitável Sinta o gosto do sal do sal do sal Sinta o gosto do sal Gota a gota, uma a uma Duas três dez cem mil lágrimas sinta o milagre A cada mil lágrimas sai um milagre191

Imagens: Guigo – Suçuarana Filmes. (Praça da Polícia. Manaus – AM)

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Antes de realizar a performance “Linhas” nos espaços públicos da cidade, ela foi executada em dois eventos. A primeira ação aconteceu no Centro Psiquiátrico Eduardo Ribeiro no “Sab Eugênia: Arte, Cultura, Renda e Inclusão Social na Saúde Mental”, evento que tinha como objetivo abrir as portas do hospital psiquiátrico para a comunidade e promover a cidadania de pessoas portadoras de sofrimento mental. A performance foi realizada na escadaria que dá acesso à entrada do hospital. Essa primeira experiência aconteceu de forma delicada e comovente, declamava com mais precisão os versos da música e ao desfazer o novelo, a linha foi se espalhando pelos degraus da escada, onde na sequência, me sentei para desfazer os nós e voltar a enovelar. Dois anos tinha se passado desde a última performance, meu corpo rompia com a rigidez, sentia meus órgãos trêmulos, captava os atravessamentos manicomiais, a estratificação da loucura em doença. Ouvi alguém questionando se não era uma paciente em surto. Uma usuária da saúde mental me perguntou o que eu estava fazendo, respondi com um dos versos e ela concluiu: “Que bonito”. Percebi algumas pessoas emocionadas, com os olhos úmidos. Contágio, o movimento da performance, o desate dos nós, a desordem transmutada em um corpo paciente e leniente parecia afetar as pessoas que observavam, talvez reconhecendo ali seus próprios processos de desterritorialização e reterritorialização.

A performance também foi realizada no dia 18 de maio, data estabelecida como Dia Nacional da Luta Antimanicomial e também como Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, em um evento em prol das duas causas, concebido na Praça do Congresso. Diferente da primeira experiência, essa ação aconteceu de forma mais enérgica e agressiva. No primeiro fragmento da performance utilizei um espaço maior para executar os movimentos, que vieram bruscos e rápidos, a fala embargada soltava versos aleatórios. Sintonizada às intensidades do espaço, atravessada por múltiplas violências, parecia devolver à cidade o mal-estar concentrado até então, purgação de sustos e sintomas, catarse. Neste instante não conseguia identificar as reações emocionais das pessoas que me assistiam, estava completamente absorta em mim mesma. Na sequência, sentei no meio fio para desembolar a linha, desatar os nós, me recolhi a essa ação por longos minutos. Podia ouvir as pessoas dizendo: “Ela vai até o final”, “Só vai sair daí quando acabar”, “Vai enrolar toda a linha”. Algumas pessoas se aproximaram e ficaram observando bem de perto, até que alguém se abaixou e começou a me ajudar a desfazer o bolo de linha, em alguns minutos, mais de 10 pessoas estavam me ajudando a desfazer os nós e a enovelar a linha novamente, parece que o gesto de solidariedade proliferou entre os espectadores. A

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performance acabou quando interrompi a ação, reunindo o novelo e a linha que ainda estava espalhada pelo chão e colocando dentro da gaiola. Fui aplaudida. Na sequência, várias pessoas vieram falar comigo, algumas queriam que eu explicasse o porquê daquela ação, o que aquilo tudo significava, outras me diziam que tinham reconhecido em mim, a violência vivida por elas. Na noite que se seguiu, tive o sonho relatado no início desse capítulo, me sentia potente, um corpo a flor da pele, sentia que estava pronta para enfrentar as ruas de Manaus.

Imagens: Guigo – Suçuarana Filmes. (Praça do Congresso. Manaus – AM)

Havia experimentado a performance em dois ambientes delimitados por uma finalidade específica, o que parecia determinar a expectativa das pessoas que assistiram. É provável, que nestes dois momentos, a reflexão sobre a performance tenha sido delineada pelo propósito do evento, associada à imagem da loucura enclausurada no primeiro e à violência sexual no segundo. Mesmo assim, como apreendia em meu corpo os atravessamentos presentes no ambiente, devolvendo as diferentes intensidades experimentadas por meio dos movimentos, ficou evidente que a ação desestabilizou a percepção do espectador, que tentava entender sua finalidade e racionalizar o que estava se passando, isso acontece porque esse tipo de proposta visa afetar os corpos através de forças intensivas, uma lógica diversa da hegemônica em nossa cultura.

Neste sentido a performance-arte atua como um dispositivo performativo que, por meio dos atravessamentos possíveis, desarranja o território que está posto, abala imagens e signos consolidados, provocando estranhamento e ao mesmo tempo produzindo aberturas que escancaram um modo de existir homogeneizado e massificado, evidenciando sintomas e cortes no fluxo desejante.

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É na produção de encontros com um campo ordinário que imagens em performance se produzem e intervêm, criando vazamentos do que está fixado nos signos, nos significados, nos espaços e nos corpos, nas paisagens, nas imagens, nos elementos em jogo, forças que criam tensões, abrindo e perfurando as estabilizações ditadas por uma cultura. Esses processos se dão pela produção de transversalidades, esse é o procedimento de uma performance. Em uma transversalidade há um esfacelamento das relações hierárquicas de poder pré-fixadas frente às práticas discursivas, as funções analíticas, às normas institucionais, às palavras de ordem, às comunicações a-significantes gerando, no acontecimento de uma clínica poética, novos agenciamentos maquínicos de produção de desejo, de conexões que têm como bússola os fluxos que potencializam as máquinas desejantes e não os indivíduos como entidades isoladas, desconectadas e, portanto, adoecidas.192

Bom-Tempo nos apresenta outro dispositivo para pensar a performance, ela propõe a performance-arte como um acontecimento clínico, que difere da compreensão da clínica institucional, nosológica ou das terapêuticas, sugerindo uma clínica poética que opera junto aos riscos de abortos e de instabilidades que criam suas condições junto à própria experiência.193 Entendo que nesse sentido, a produção de transversalidades estaria associada

à potência clínica da performance, ao movimento rizomático que potencializa a singularidade, os acontecimentos, os devires e a alteridade, fabricando diferença.

Segundo Deleuze e Guattari, o rizoma é um sistema acentrado, não hierárquico e não significante, ele é oposto a uma estrutura que se define por correlações binárias, o rizoma é feito somente de linhas, linhas de segmentaridade, de estratificação, como dimensões, mas também de linha de fuga ou de desterritorialização, segundo a qual a multiplicidade se metamorfoseia, mudando de natureza.194 Em Mil Platôs, os autores nos apresentam três tipos de linhas, as quais revelam-se imanentes: linha de segmentaridade dura ou molar, predeterminada socialmente, sobrecodificada pelo Estado, sendo seu endurecimento de difícil modificação; a linha de segmentaridade maleável ou molecular que procede por desterritorializações relativas, permitindo reterritorializações que bloqueiam e remetem para a linha dura; esta linha carrega uma ambiguidade já que está presa entre as outras duas, pronta pra tombar para um lado ou para o outro; e a linha de fuga que opera por

192 BOM-TEMPO, J. S. 2015, p. 44. 193 BOM-TEMPO, J. S. 2015, p. 37.

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desterritorialização absoluta, não admite qualquer segmento, e é como que a explosão das duas séries segmentares.195

Parece haver uma tendência de pensar a performance-arte como um movimento estranho e bizarro que se aproxima da loucura, que provoca desterritorizalização, mas ao entender seu movimento rizomático, fica claro que os três tipos de linhas se manifestam na ação. Sendo assim, a performance “Linhas” se propaga a partir de emaranhados dos três tipos de linha, ela não se apresenta apenas como linha de fuga, mas traz as linhas de segmentaridade dura e maleável. Elementos comuns se agrupam de forma descontextualizada, uma gaiola sem passarinho, um novelo de linha, uma mulher de coturno, a ação se desenvolve a partir de rasgos no que está socialmente predeterminado, criando uma desestabilização na compreensão lógica do acontecimento, produzindo nos espectadores sensações e reações diversas e inusitadas.

Após algumas experimentações na cidade, escolhi espaços localizados na região central de Manaus com bastante circulação de pedestres. A Avenida Manaus Moderna entre a Escadaria dos Remédios, que dá acesso ao rio Negro para embarque e desembarque de passageiros, e a Feira da Manaus Moderna, um grande mercado de verduras, frutas, peixes e produtos regionais é uma área de trânsito de pessoas de todos os tipos, desde turistas a

feirantes, imigrantes, carregadores, barqueiros, consumidores, sendo interessante ressaltar que apesar da heterogeneidade este é um lugar predominantemente masculino. Foi nesse espaço bastante popular que a performance “Linhas” aconteceu com maior mobilização dos espectadores.

O primeiro fragmento da ação começou com movimentos lentos e precisos que se desenvolveram para gestos bruscos e vigorosos, de acordo com a interação das pessoas a ação foi se potencializando. Reagia aos gritos e insultos, nesse momento percebi alguns celulares em punho, estava sendo filmada e fotografada, ouvia interjeições e falas diversas: “Oh!”, “Enlouqueceu”, “Isso é droga”, “Ela não está chapada não, é outra coisa”, “Só pode ser por causa de homem”, “Gostosa”, “Ela não é daqui não”, “Sai da terra dela pra endoidecer aqui”, “Coitada, tão bonita”, “Doida”, “Tá comendo linha”, “Filha da puta”, “Agora vai se enforcar”, “Eita porra, vai caralho”, “Eh rapaz”, “Ai meu Deus”. Algumas pessoas riem, dão gargalhadas, outras permanecem sérias, a expressão mais comum era de que não

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compreendiam o que estava acontecendo, tinha também aqueles que demonstravam receio, que olhavam de longe, mas aguardavam curiosos para ver o desfecho.

Imagens: Guigo – Suçuarana Filmes (Av. Manaus Moderna. Manaus – AM)

No fragmento seguinte, me sentei e assim permaneci no meio do calçadão, desembolando a linha, desfazendo os nós. Muitos transeuntes passavam por mim sem parar, outros passavam e mandavam eu levantar: “Passa barata e rato nesse chão, levanta daí”, mas muitas pessoas continuaram em volta observando, algumas iam embora e voltavam para continuar acompanhando. Apesar do estranhamento causado no fragmento inicial em que os espectadores tentam dar nome e significado ao que está acontecendo, acredito que é este o momento de ruptura da performance, de desterritorialização, quando acontece uma maior aproximação das pessoas, que passam a assistir mais de perto o procedimento de desenredar a linha e desfazer cada nó. A despeito do mal-estar provocado, é quando surge a sensação de empatia, de solidariedade, instante em que a ação promove o pensamento, o reconhecimento do diferente, a alteridade. Momento também que me percebo apaziguar, que me conecto com o lugar e com as pessoas.

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Imagens: Guigo – Suçuarana Filmes (Av. Manaus Moderna. Manaus – AM)

Desta maneira, me envolvo na ação de tal forma, que não percebo o tempo passar, com serenidade e paciência permaneço com meu intento. Um senhor idoso é o primeiro que se aproxima para falar comigo, me pergunta se preciso de ajuda, mas ao esticar o braço em sua direção com um punhado de linhas na mão, ele volta atrás e diz: “Se ajudar a senhora, vão pensar que sou doido também”.

Imagens: Guigo – Suçuarana Filmes (Av. Manaus Moderna. Manaus – AM)

Algumas pessoas estão tão envolvidas na execução desse procedimento, que permanecem do início até o fim, o que demora aproximadamente uma hora e meia. Um rapaz coloca uma garrafa de água ao meu lado e fala: “Sem água nós num ‘veve’, quando tiver sede vai ter que beber”. Uma mulher que vende rodos, vai e volta várias vezes, em algum momento conversa com o moço da água que não saiu dali; ela reflete: “Nós estamos no centro de Manaus, de tudo aparece, pode aparecer até coruja sem olho, coruja com pé. Tudo

No documento Corpo em devir Entre a floresta e a cidade (páginas 114-131)