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Corpo em devir Entre a floresta e a cidade

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Academic year: 2021

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC - SP

Mariana Pelizer de Albuquerque

Corpo em devir

Entre a floresta e a cidade

Doutorado em Psicologia Clínica

São Paulo

2017

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC – SP

Mariana Pelizer de Albuquerque

Corpo em devir

Entre a floresta e a cidade

Doutorado em Psicologia Clínica

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutora em Psicologia Clínica sob a orientação da Professora Doutora Suely Belinha Rolnik.

São Paulo

2017

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Banca Examinadora _____________________________________ _____________________________________ _____________________________________ _____________________________________ _____________________________________

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Gratidão:

Tarcísio, por compartilhar a vida em sua complexidade.

João Pedro e Francisco, pela cumplicidade apesar de todas minhas faltas. Aos meus pais, Rita e André, pelo olhar amoroso.

À Suely Rolnik pela arte de agenciar desejos.

À minha família: vó Elza, tia Vanda e tio Rubens por cuidarem de mim, Ciça e Helena pelos encontros alegres, Rose pelo carinho e acolhida.

À minha bisavó Jovita (in memorian) presença vibrante dentro de mim.

Aos meus amigos amazonenses, Ênio, Consuelena e Mariana Balduíno, por abrirem seus poros para minhas angústias alienígenas e por me acompanharem nessa trajetória.

Aos integrantes do Fórum Amazonense de Saúde Mental, aos usuários e trabalhadores da Saúde Mental de Manaus, em especial à Rosângela Aufiero e Luciana Diederich.

Aos meus amigos amores Gastão e Marcelle, por me aproximarem de mim mesma.

Aos meus pacientes, especialmente àqueles em acompanhamento terapêutico, pelas intensidades experimentadas.

Aos meus alunos por tudo que compartilhamos, pelos ensinamentos, pelo afeto e pela confiança.

Ao Guigo pela sensibilidade no trabalho fotográfico.

Aos meus colegas professores e todos àqueles em Manaus que de alguma forma contribuíram com essa cartografia.

Aos colegas, professores e funcionários da PUC-SP, cada um à sua maneira, por contribuírem para que eu pudesse chegar ao final dessa jornada.

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Resumo

Corpo em devir. Entre a floresta e a cidade. Mariana Pelizer de Albuquerque Essa tese nasce de um profundo mal-estar produzido pela experiência de me instalar e passar a viver na cidade de Manaus, o que me forçou a pensar para combater a paralisia que tomou conta de meu corpo. A escrita segue o fluxo de um corpo poético, crítico e potente que se transmuta em um corpo aterrorizado, congelado na apatia, na dor do fim do mundo, na dor de um povo; processo apresentado através da investigação cartográfica, na qual o rigor diz respeito à capacidade que esta tem de dizer o indizível para que se torne sensível. O trabalho se desenvolve tendo como escopo elucidar a subjetividade manauara, resultante dos traumas do alto grau de violência do regime colonial-capitalista na região, mas também da resistência da força da floresta, do intenso clima tropical e do saber ancestral indígena que insiste em manter-se vivo. O texto se desdobra em uma busca por meios de me deslocar da paralisia e de reapropriar-me da pulsão vital sequestrada. A performance-arte surge então como um dispositivo clínico e performativo que transmuta um corpo paralisado em um corpo vivo, dilatando afetos, criando novas maquinarias, potencializando os encontros com a cidade.

Palavras-chave:

Corpo em devir, inconsciente colonial-capitalístico, modos de subjetivação, Manaus, Floresta Amazônica.

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Abstract

Body on becoming. Between the forest and the city. Mariana Pelizer de Albuquerque This thesis emerge out of a deep uneasiness produced by the experience of moving to live and settling in the city of Manaus, which forced me to think in order to combat the paralysis that took over my body. Writing follows the flow of a poetic, critical and potent body that transmutes itself into a terrified body, frozen in apathy, in the pain of the end of the world, in the pain of a people; a process presented through cartographic method investigation, in which accuracy refers to the capability of the latter to say the unspeakable so that it becomes sensory. The work is developed with the purpose of elucidating manauara's subjectivity, resulting from the traumas of the high degree of violence of the colonial-capitalist regime in the region, but also from the resistance of the forest's force, the intense tropical climate and the indigenous ancestral knowledge that insists on staying alive. The text unfolds in a quest for ways to displace myself from paralysis and to re-appropriate the seized vital drive. Performance-art then emerges as a clinical and performative device that transmutes a paralyzed body into a living body, dilating affections, creating new machineries, potentiating encounters with the city.

Key-words

Body on becoming, colonial-capitalistic unconscious, modes of subjectification, Manaus, Amazon Forest.

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SUMÁRIO

Esboço de uma trajetória. 10

Introdução em três atos. 12

1º Ato – Salomé 12 2º Ato – Pelo Direito de Endoidecer 15 3º Ato – Mergulho no Real 19

Capítulo 1 - Corpo-Caos 28

1.1. Apatia 29 1.2. Como tocar um coração selvagem? 31 1.3. Fim do Mundo 36 1.4. Terra Preta 49 1.5. Pindorama 50

Capítulo 2 - Corpo-Cimento 60

2.1. Formação social da Amazônia 61 2.2. Nas bordas do capitalismo 75 2.3. Modos de subjetivação manauara 86

Capítulo 3 - Corpo-Árvore 96

3.1. O corpo e a cidade 97 3.2. Performance arte / Performatividade 105

Capítulo 4 - Corpo em Devir 113

4.1. Entre muros 114 4.2. Linhas 118 4.3. Arremate 129

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Esboço de uma trajetória.

Esta pesquisa nasce de um profundo mal-estar produzido pela experiência de me instalar e passar a viver na cidade de Manaus. Mal-estar que me forçou a pensar para combater a paralisia que tomou conta de meu corpo, tornando-se assim o motor de minha tese.

O processo de escrita participou desta travessia, com toda a dificuldade que este tipo de travessia implica, uma dificuldade própria da investigação cartográfica, na qual o rigor não diz respeito à forma nela mesma, mas na capacidade que esta tem de dizer o indizível para que se torne sensível, promovendo um processo de subjetivação que dribla aquilo que o interrompe e paralisa.

O movimento inicial consistiu na busca por palavras e imagens que dissessem deste mal-estar. Na “Introdução em três atos” trago o desenho de um corpo poético, crítico e potente que se transmuta em um corpo estarrecido, a partir de atravessamentos que acontecem com a trajetória geográfica do sudeste ao norte do Brasil: do Portal do Cerrado para a Floresta Amazônica, da Floresta Amazônica para a metrópole de Manaus. Ainda no capítulo 1, “Corpo-Caos”, a escrita segue o fluxo de um corpo aterrorizado, congelado na apatia, na dor do fim do mundo, na dor de um povo.

O trabalho se desenvolve tendo como escopo elucidar a subjetividade manauara, resultante dos traumas do alto grau de violência do regime colonial-capitalista na região, mas também da resistência da força da floresta, do intenso clima tropical e do saber ancestral indígena que insiste em manter-se vivo. Elucidar as distintas políticas de subjetivação face a estes traumas e seu paradoxo com a força da floresta: de uma passividade resignada às diversas formas de resistência, algumas mais visíveis e outras mais veladas.

O texto se desdobra em uma busca por meios de me deslocar da paralisia e de reapropriar-me da pulsão vital sequestrada. O primeiro destes meios foi um longo percurso histórico que precisei traçar para situar o contexto em que se produziu e continua se produzindo este mal-estar na subjetividade manauara, que captei por seus efeitos em meu próprio corpo que, por um longo período, ficou inteiramente contaminado. Este percurso é anunciado já em “Pindorama” no capítulo 1, mas se desenvolve no capítulo 2, especialmente em “Formação Social da Amazônia”.

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Ainda no capítulo 2, “Corpo-Cimento”, discuto os paradoxos e contradições presentes em Manaus, capital ilhada em meio a floresta, isolada do centro-sul do Brasil. Além de apresentar uma reflexão a partir do esforço de desvelar os modos de subjetivação manauara e as políticas de sua produção, ancorada na compreensão de Foucault, Guattari e Rolnik.

Em “Corpo-Árvore”, capítulo 3, sigo discorrendo sobre minha experimentação da cidade, enquanto um território de produção de subjetividade ocupada por abundantes densidades que vão se inscrevendo em meu corpo. A performance-arte surge como um dispositivo clínico e performativo que transmuta um corpo paralisado em um corpo vivo, dilatando afetos, criando novas maquinarias, potencializando os encontros com a cidade.

Por fim, no último capítulo, “Corpo em Devir”, apresento as performances realizadas em Manaus como um processo de conciliação com a cidade, com as pessoas e comigo mesma.

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INTRODUÇÃO EM TRÊS ATOS

1º ATO - Salomé

Não, eu não nasci assim. Assim eu fui me tornando no botar dos ovos.

É impressionante o poder da vida de nos transformar em algo que nem imaginamos. Nos relacionando com as pessoas ganhamos nomes, características e personalidades que nunca pensamos em ser.

O fato é que de repente para mim não havia mais cuidado, não havia mais respeito, como algo temido e odiado, eu não mais me sentia uma pessoa. Como se minha existência agredisse as pessoas, sem perceber como e porque, eu fui sendo colocada num lugar estranho e solitário, onde eu pagava por erros que eu nunca soube quais eram.

Mas eu não me conformei com o desdém assim fácil. Eu insisti em pelo menos entender, se não o porquê, mas o que eu era para as pessoas. E assim fiz uma promessa de que a cada xingamento, julgamento, fofoca, desrespeito e maus-tratos, eu me transformaria fisicamente, materializando as características implícitas nas falas das pessoas. Seria a materialização de uma ordem social. O nascimento de algo bizarro, que mostrasse pra todo mundo o poder de suas falas e julgamentos.

Foi assim que, paulatinamente, foram nascendo em mim penugens, depois penas. A pele dos meus pés foi se modificando, se tornando áspera e amarelada. Meu cabelo foi caindo, cedendo lugar para uma pequena crista vermelha, que foi crescendo e se avolumando. E minha boca foi, aos poucos, se transformando em um bico pontudo e duro. Hoje sou uma galinha. Uma galinha digna e feliz. Com algumas dificuldades para me expressar, pois não é fácil escrever com asas. Mas digna e feliz porque não aceitei ser transformada em algo de maneira silenciada. Se o efeito do social sobre nós é inevitável, o silêncio é opcional.

E foi assim que as pessoas passaram a conviver com titicas, cacarejos, ovos e bicadas, arcando com as consequências daquilo que produziram.

Gabriela Martins Silva1

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Sou Salomé, não o tempo todo, as vezes me canso de cacarejar e só quero me aninhar em um colo amigo. Salomé é o desassossego, são as bicadas incessantes que sinto por dentro, que algo tem para ser dito, para ser mostrado, para ser vivido, experimentado. Venho brigando com Salomé há alguns anos, relutando, dizendo não. Mas me sinto vencida por ela e cá estou a escrever com asas.

Não, eu não cindi com meu lado obscuro, não me afastei como se ele não existisse e não adoeci da cegueira da proximidade; vez ou outra me deixo contaminar por ele. Bravamente vivo o incômodo, é ele que me move, que me comove. Eu o visito e revisito, num ir e vir entre o espanto e a ternura. Num fluxo-refluxo, ato e desato o nó na garganta.

Neste instante, sinto meu corpo pesado por carregar tudo que deve ser dito, está tudo aqui, costurado, amarrado, atado, escondido sob as penas que ganhei pelo caminho. E agora, movida pela necessidade de me expressar, sinto cada uma das minhas células latejar, sinto dor e não passa.

A escrita, loucura em letras, o corpo no papel, sistematização do grito. Grito silenciado, ouvido por poucos.

Ouço o grito da violência, soluços calados, os relatos, descrições dos detalhes, a injustiça, o peso do social. É fácil naturalizar o sofrimento. As vozes são muitas, mas os discursos são sempre os mesmos, as mesmas palavras. É tênue o fio que separa o choque da paralisia. Tenho medo do estático, tenho medo de perder a habilidade de me chocar. As vozes que carrego em mim tornaram-se uma multidão em coro, não posso silenciá-las e não quero me congelar na repetição. Algumas vezes preciso tapar os ouvidos para me manter em movimento.

Visibilidade às pequenas violências, devolver ao mundo o desconforto, dar voz aos incômodos. Existir, atravessada por um mundo ao contrário, por relações às avessas, de valores enviesados, liberdade opressora. E minha voz? Diluiu-se no coro?!

Difícil falar sobre as violências, sutis ou brutais, elas estão em mim, elas estão em todos. Palavras presas, as que se desprendem saem mudas. Escuta(dor)!

Engole o choro menina! Engulo!

Corpo pranto – expressa a dor, o medo, o prazer, a loucura, quer você queira, quer não. Ele sabe dizer o peso das palavras contidas, das violências vividas, da submissão. Desafetos, afetos, caos, desejo. Corpo expressão, corpo arte, corpo vida.

A vida inteira habita este instante. O que foi e o que há de ser no agora. Paro, o vazio pesa. Então me movimento.

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Há dez anos escuto relatos de violência. Transitei pelo SOS Mulher Família de Uberlândia, ONG voltada para a prevenção e atendimento da violência de gênero e intrafamiliar; na Saúde Mental trabalhei no Centro de Atenção Psicossocial - CAPS e ainda atuei na Política de Prevenção à Criminalidade da Secretaria de Defesa Social do Estado de Minas Gerais. Nestes espaços institucionais, os relatos de violência são recorrentes.

A violência está em todos os setores da sociedade, na educação, na saúde, no trânsito, nas relações interpessoais, na imposição midiática, na necessidade de consumo, na economia, na política, na cultura, nas artes. Em vários formatos de dominação e sujeição, violências das mais sutis às mais brutais. Ouvi muitos tipos de violências, violências veladas, conluios familiares, relações violentas, espancamentos, coações, extorsões, abusos de mulheres, filhas e mães, passando pela dor do delírio psicótico e perseguições paranoicas, até violências institucionais, abuso policial e a violência dita marginal, guerra entre traficantes e o crime organizado.

Em alguns momentos, percebia em mim uma tendência à racionalização, à naturalização e porque não dizer banalização da violência. Com o tempo, com a repetição, indícios vão surgindo e te convencendo de que a vida é mesmo assim, todos somos vítimas, todos somos perpetradores de algum tipo de violência. A paralisia que se instalava frente aos discursos e descrição de atos violentos, me rasgava, rompia com minha habilidade terapêutica, me causava extremo estranhamento e mal-estar.

Além disso, não concebia a estrutura institucional como acolhedora, em alguns casos, parecia violar direitos e reeditar as violências já vividas. Experimentei o trabalho da psicologia clínica e social em espaços institucionais sem recursos, sem reconhecimento, sem uma rede de serviços e relações interdisciplinares que suportassem a complexidade das demandas e casos atendidos. Trabalho solitário, falso respaldo institucional, cara a cara com angústias, olhares de socorro, apatia, desesperança. Sempre estive de passagem por estas instituições, de alguma forma, também me via violentada.

Inevitavelmente, passei a captar das subjetividades que cruzaram meu percurso profissional, as violências em meu próprio corpo. Comecei a vislumbrar as violências que me atravessam, a identificá-las, notar os estigmas que me cabem e pensar o meu lugar no espaço social. Constrangimentos por ser mulher, psicóloga, mãe, solteira, jovem demais, um tanto preta, um tanto índia, arteira, artista, constrangimentos por desejar. As sensações ganharam nome e um mundo castrador, disciplinador e normativo tornou-se ainda mais evidente.

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2º ATO – Pelo Direito de Endoidecer

Espelho d’água. O pequeno barco atravessando os galhos, as copas visíveis acima da água negra revelando a floresta submersa. No igapó, o longo tronco de árvores centenárias se funde com seu próprio reflexo, formando uma árvore sem raízes. Tronco, uma copa acima da cabeça e outra copa flutuando na trilha cor de guaraná.

Uma imensidão de rio... muita água! Água demais para quem acabou de chegar do cerrado.

Na Amazônia, metade do ano a cheia inunda as florestas; na outra metade, os largos rios se transformam em um labirinto de estreitos canais. As casas de palafitas, ora têm sua estrutura a mostra, ora têm o rio na soleira da porta.

O barco vai se adentrando na floresta, o som vivo, o ar úmido grudado na pele, a imagem à disposição dos olhos é extasiante, surreal, algo que só um pintor ensandecido poderia imaginar. “Não há nada mais surreal que a realidade”.2

Após afastar um galho, o barco desliza para dentro de um lago, de tão grande, não se avista as margens. O barco para. Somos apenas barco, lago, floresta. O ar parado, a água parada, quietude.

O mergulho foi inevitável, sugada pela água escura, o barulho do corpo na água. Silêncio. Não se vê um palmo a frente do nariz. Mergulho profundo. Frio. Sensação de peso e desintegração, de força e fusão. Não saber, desconhecido, muita água abaixo dos pés, muita vida por todo lado. Desorientação. Coragem. Pavor. Retorno à superfície e a proteção do barco.

Me misturo ao lugar, confusão. Desejo forte de ficar, contemplar, de ser. Contágio, absurdo, fascínio. Flerte com a loucura.

Barco em movimento, vento no rosto molhado, olhos úmidos, uma lembrança viva me acomete...

Sentada próxima à janela do ônibus, mais uma vez atravesso o cerrado, três horas de viagem entre a cidade que moro e a que dou aulas em uma faculdade.

A vida: ciclos semanais estrada-aulas, casa-trabalho, estudo-filhos, CAPS-pacientes, a Saúde Mental... satisfação-frustração. Relações esquizo. Vórtice.

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No caminho, a paisagem familiar, grama seca pela falta de chuvas, cheiro do mato dourado, as árvores retorcidas, o tronco expressivo do Ipê Amarelo contrasta com seus cachos de flores. Árvore florescendo em meio à seca, deleite para os olhos.

“Por ser de lá do sertão, lá do cerrado, lá do interior do mato, da caatinga e do roçado”3

O tempo se multiplica e três horas de estrada, parecem dez, cansaço. Enquanto observo as árvores que bailam e se contorcem para mim, lembro de meus ávidos-pacientes, penso em nossos últimos encontros, nas falas, nas oficinas, nas sensações que me promovem. Vórtice.

“Eu quase não falo, eu quase não tenho amigos”

Tangível-intangível, adjetivo que um paciente usava para explicar seus delírios. Concreto, real, corpóreo, material, manifesto / Imaterial, incorpóreo, intocável, abstrato, etéreo. Reflito sobre a imensidão dessa expressão, penso que tudo quanto é nome deveria ser assim, conter o ser e o não ser, dar espaço para todos os modos de existência.

Romper com os encontros homogeneizados, numa estrutura violentamente instituída, ampliar os sentidos, acolher a dor, passear pelas narrativas fantásticas, potencializar a vida. Mal-estar, aquela sensação de que tudo muda para permanecer como está, dispositivos propostos pela Reforma Psiquiátrica e o manicômio que nos habita – muro, gesso, camisa de força subjetiva. Sempre a mesma busca por um lugar onde possa circular a diferença.

Pela janela, o cerrado, árido e vivo, tanto quanto os usuários dos serviços de Saúde Mental. Corpos rígidos, trêmulos, máquinas enferrujadas pela medicação, mas vivas em suas produções delirantes, desejantes, singulares.

Corpo-paciente-impaciente, arvorecer, localizo em uma árvore que passa o corpo de meu paciente tangível-intangível. Sua figura corpo-árvore. Músculos-casca, finos braços-galhos, copa-cabeça nas nuvens.

Nasce assim um passatempo, localizar no caminho, cada um dos pacientes corpo-árvore. Após alguns anos de estrada já sabia de cor onde cada um deles estava, após qual curva um deles iria aparecer.

Escleromorfismo oligotrófico: estrutura endurecida por receber pouca nutrição. Na seca, o alto grau de acidez do solo diminui a disponibilidade de nutrientes, prejudicando o crescimento e favorecendo o endurecimento das plantas. Na época das chuvas, a acidez do solo diminui, absorvendo menos metal tóxico, a planta cresce na vertical. Esse ciclo de

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chuva-seca, crescimento e endurecimento, dá forma a estrutura tortuosa das árvores e arbustos.

Subvertendo as disciplinas, na busca pela compreensão do aspecto das árvores do cerrado, encontro um nome na botânica para o que parece acometer esses ávidos-pacientes. Corpo-arbusto, mundo ácido, tóxicos nutrientes. Aparatos de captura do movimento, movimentos possíveis, tortuosidade.

A loucura parece desenterrar as raízes da nossa existência. Denuncia lógicas que nos esforçamos para manter invisíveis, escancara o funcionamento e a dinâmica das nossas relações, o avesso das instituições, a matéria-prima com a qual construímos nossa sociedade. Avidez pela escuta, avidez pelo tempo e pelo espaço. Tudo pulsa, pensamentos e sensações se ampliam, transcendem o corpo. Olhos que enxergam de fora para dentro, secura de espaço, secura de movimentos, nó, sufocamento!

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18 Imagem: Mariana Pelizer (Julho de 2014 - Parque Nacional de Anavilhanas. Novo Airão - AM.)

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3º ATO – Mergulho no Real

Mando notícias da capital da Amazônia4: cheguei em Manaus no dia 08 de dezembro, feriado de Nossa Senhora da Conceição - Oxum - rainha das águas doces, padroeira da capital e do estado do Amazonas. Vi a procissão passar e a santa sendo carrega da pelos fiéis. O sino da igreja de São Sebastião tocou por longos minutos. Foi bonito. Senti-me abençoada.

Experimentar as intensidades da floresta e a imensidão das águas me impulsionaram para esse lugar, mas as contradições da metrópole ilhada em meio a selva, me apresentaram um outro modo de vida.

A exploração material e imaterial acomete a Amazônia a despeito das raízes e hábitos de um povo e do cuidado à maior floresta tropical e maior reserva de água doce do mundo. Nas bordas do progresso e de um ideal de civilização, o desenvolvimento desordenado da cidade e a carência social transformam a rotina em caos, prédios futuristas convivem com esgotos a céu aberto que um dia já foram igarapés.

A desordem e as grandes contradições sociais têm origem no primeiro surto de urbanização da capital, no início do século XX, com o apogeu da borracha. O governo investiu no aterro de igarapés, construção de ruas, pontes e prédios públicos, saneamento e iluminação, transformação que visava atender a elite extrativista e os moradores recém-chegados da Europa. A população que já residia na região, além de ser a primeira força de trabalho para a execução desse plano de modernização, foi excluída e desalojada para áreas periféricas.

Por trás de uma proposta totalizante de planejamento urbano, que tinha como objetivo principal sanear e modernizar a cidade, o poder público, aliado ao setor privado, dirigiu todo um projeto de reforma urbana de acordo com a solicitação da acumulação capitalista, sem estender aos setores populares os mesmos benefícios do “progresso”... ao contrário, para os setores populares, o que se aplicou foi uma política de controle e disciplinamento do espaço.5

4 Manaus é a capital do estado do Amazonas, equivocadamente algumas pessoas acreditam que a cidade é a

capital da Amazônia. No início desse texto não há nenhum equívoco, penso que Manaus pode mesmo ser considerada a capital da Amazônia, ilhada em meio a floresta, próxima do que resta de mais intocado pelo ser humano, permanece distante do restante do Brasil.

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Muitos são os processos de colonização da capital. Em 1957, foi criada a Zona Franca de Manaus como um porto livre, dez anos depois, em 1967, o Governo Federal ampliou a legislação e reformulou o modelo, estabelecendo incentivos fiscais para implantação de um pólo industrial, comercial e agropecuário na Amazônia.

A partir da implementação da Zona Franca, novo processo migratório aconteceu na região e com ele, um crescimento populacional desproporcional à estrutura da cidade.

Houve de fato uma grande urbanização, industrialização, progresso do setor de serviços, ao passo que aumentou a demanda por esses serviços, bem como por infra-estrutura urbana. Houve um grande avanço, mas que está longe de contemplar toda a população. Existe uma pequena parcela dos habitantes que concentra grande parte da renda e a maior parte que permanece na pobreza. Uma parte significante da população tem um rendimento baixíssimo, uma infra-estrutura urbana não satisfatória, principalmente no que tange ao esgotamento sanitário, além de péssimas condições de moradia.6

Mais uma vez, o projeto de desenvolvimento da capital visa atender as necessidades dos grandes investidores e daqueles que chegam na cidade como mão-de-obra qualificada, que detém o conhecimento e dominam tecnologias essenciais para o crescimento econômico. O que vemos é a ocupação das margens do Rio Negro por indústrias, que se localizam nesses espaços para escoamento fluvial de sua produção. As pessoas, que antes tiravam seu sustento e passavam suas vidas em conexão com o rio, agora sobrevivem à rotatividade de subempregos.

Grandes áreas nos entornos da cidade têm suas árvores derrubadas ou são focos de queimadas, para abrir espaço para novos condomínios Alphaville, para atender os altos padrões de vida de uma pequena parcela da população.

O desenvolvimento na região de Manaus, voltado para o acúmulo de capital, desconectado das culturas tradicionais e de costas para a preservação ambiental, massifica; não leva em conta as reais demandas da população, que é expropriada de seus saberes e tem seu modo de vida desqualificado.

Sentimos uma forte negação da presença indígena na cidade, parece que hábitos reproduzidos pela população manauara, sabidamente presentes no modo de vida do índio

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são percebidos apenas como herança cultural, algo que ficou no passado, e não como atualização de fazeres de várias etnias indígenas que habitam a urbes.

A conservação da razão, a padronização do desejo, a necessidade de fazer parte da norma, aceleram o processo de despersonalização desses indivíduos, tanto indígenas quanto caboclos, que para fugir do preconceito da vida na cidade, tentam se adequar ao que será aceito. Avaliar o esquecimento das origens, pensar sua história, dar voz a essa forma de existência parece um árduo exercício. Um povo que rejeita suas raízes, mas também não se identifica com a cultura colonizadora, apesar de valorizá-la. Que não é mais índio e muito menos é considerado branco.

Essa desconexão entre a rotina na capital e a força viva da floresta que a contorna, causa uma profunda estranheza. Diferente de outras metrópoles, onde a produção de uma subjetividade capitalística já se instalou, onde a marca da colonização se atenuou com o passar das gerações e a vida urbana é projetada de olho nos ponteiros do relógio. Aqui, presenciamos o embate entre a velocidade pela qual a Amazônia vai sendo silenciada e o seu movimento de resistência.

Resistência percebida no ciclo das águas. Na cheia, o volume de água dos rios facilita o trânsito dos barcos. Já na seca, os rios baixam e grandes bancos de areia se formam, dificultando e algumas vezes impossibilitando a passagem de embarcações, não é raro que apenas pequenas canoas consigam fazer os trajetos. A vazante do rio altera a rotina dos comerciantes que utiliza o barco como meio de transporte, além de interferir no escoamento da produção industrial; ocasionalmente grandes navios, inclusive petroleiros, passam dias ancorados aguardando o volume de água subir para seguir viagem.

As chuvas torrenciais também oferecem problemas para a dinâmica comercial da cidade, além do transtorno no trânsito que fica comprometido em função de alagamentos, deslizamentos e desabamentos de barrancos. Frequentemente o abastecimento de água e energia e o acesso à internet ficam interrompidos, o que prejudica o comércio que muitas vezes fecham as portas. As altas temperaturas e alto índice de umidade também diminuem o ritmo da vida na capital.

Esse descompasso entre o clima, o ciclo das águas e a cultura capitalista deixa evidente o confronto entre a cartografia cultural vigente e as intensidades da Natureza/Terra/Gaia/Cosmos.

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Algumas vezes o ritmo acelerado imposto pelo acúmulo de capital, por esse modo de existência que podemos chamar de “colonial-capitalístico” 7, sofre uma pausa. Na contramão dos relógios de ponto, do trânsito caótico, do consumo desenfreado, é preciso esperar. É preciso respeitar a força dos rios, o movimento da floresta.

A sensação é que a estratégia para anestesiar o saber do corpo, a decifração das forças, dos perceptos e afectos, não está tão mecanizada, tão imperceptível. Numa região diariamente colonizada (e aqui não se trata apenas da manutenção do inconsciente colonial), onde permanece viva a ferida do extermínio de seu povo e de sua cultura, parece exigir uma forma mais brutal de implantação e sustentação dos ditames do Capitalismo Mundial Integrado8.

A cobiça internacional pela Amazônia justifica-se não só pelo interesse na maior reserva de biodiversidade do planeta, além de um quinto de toda a água potável.9 No estado do Amazonas, sabe-se da existência de jazidas minerais de cassiterita, nióbio, bauxita, urânio, caulim, ouro e ferro. Dessas jazidas, as reservas de nióbio10 apresentaram o maior

valor de riquezas, com grande parte localizada na mina do Pitinga, na cidade de Presidente Figueiredo, a 117 quilômetros ao norte de Manaus.

É possível fantasiar que neste exato instante, representantes de grandes corporações multinacionais estão deliberando sobre o futuro dessas riquezas. Abstraindo um pouco mais, pode-se imaginar que grandes negócios estão sendo firmados a despeito de qualquer preocupação ecológica, sustentável ou de preservação ambiental.

A avidez do capital se instala em um lugar extremamente pulsante, onde a própria vida humana, animisticamente, indigenamente se encontra integrada. O desenvolvimento econômico em Manaus depende de um absoluto emparedamento de toda memória viva da floresta, do bloqueio de toda experiência extra-pessoal.

Entrar em contato com essa potência singularizante, pluriversal, pode tolhir a execução de assombrosos projetos de exploração da região e o acúmulo de valores incontáveis. Para abater a subjetividade parece necessária a força de um rolo compressor ou a destreza de uma

7 Termo proposto por Suely Rolnik para designar o regime inconsciente que nos orienta na contemporaneidade.

Em ROLNIK, 2016.

8 Termo proposto por Guattari para ressaltar a dimensão econômica e colonizadora do capitalismo. Em

GUATTARI, F. e ROLNIK, 2007.

9 IBGE, 2004.

10 O Nióbio é um dos minerais mais visados na atualidade, além de ser um elemento raro, é essencial na

produção de uma liga de aço mais leve, mais resistente à corrosão e a temperaturas extremas, utilizada na produção de eletrônicos, automóveis, turbinas de avião, gasodutos, na indústria aeroespacial, bélica e nuclear.

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motosserra. Nada pode germinar, todas as possibilidades de experimentar um corpo vivo devem ser abortadas.

Em Manaus, experimentamos o choque da potência viva e do poder do capital, o encontro de intensidades densas que parece deixar a mostra o avesso das relações estabelecidas na cidade. Encontro que expõe a costura (ou sua falta) no tecido social, que descortina um mal-estar disfarçado pela rotina. Impressão de acesso à casa das máquinas da vida quotidiana, à lógica de funcionamento de toda essa engrenagem. Mergulho no real.

Existir no equívoco, entre os atravessamentos de um mundo vibrante e o seu massacre, parece produzir uma forma de subjetividade muito específica, cabocla, pseudo-indígena, pseudo-colonizada, porque não pensar em uma subjetividade pseudo-brasileira.

O Brasil demorou a chegar na Amazônia. Foi com o objetivo de integrar a Amazônia ao Brasil que através de uma política pública nacional, a Zona Franca de Manaus foi criada. Em 1967, ao criar a ZFM, o governo militar tinha como lema: integrar para não entregar! Ou seja, era imperioso intensificar a presença brasileira na Amazônia cobiçada pelos mais amplos e diversificados interesses internacionais. A implantação de indústrias em Manaus era o principal objetivo da concessão de incentivos fiscais federais (IR, IPI e II e outros tributos) e estaduais (isenção do ICMS, tanto no Amazonas como nos Estados de origem de bens e mercadorias enviadas para a ZFM, bem como nos Estados de destino dos bens ali produzidos). Outro objetivo seria o barateamento da aquisição de bens duráveis de consumo, como televisor e geladeira, pela população da Amazônia Ocidental. Afinal, o objetivo era intensificar a presença brasileira naquela região de fronteira, quer seja com novas indústrias, quer seja com população atraída de outras regiões do País.11

Longe de considerar o modo de vida do amazônida, seus hábitos, singularidades e formas de subsistência, a política autoritária brasileira implanta um sistema industrial, de produção e consumo de bens que destrói brutalmente a capacidade dessas civilizações continuarem elaborando suas invenções culturais. Segundo Oliveira essa ruptura leva a uma verdadeira regressão:

... a regressão foi estigmatizada como atraso, incapacidade, a-historicidade (populações sem tempo), pelo fato de que os avanços culturais dos conquistadores por sua vez, não foram assimilados

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pelos vencidos, devido precisamente aquela ruptura. As diferenças axiológicas tornaram possível aos conquistadores transformarem as invenções culturais dos conquistados em “objetos” – a lógica da modernização e da exploração da força de trabalho, a ética do trabalho, enfim – enquanto impediam que os conquistados, por sua vez transformassem as elaborações culturais dos conquistadores em “objetos”. A diferença radical estava entre o mundo da mercadoria emergente, e o mundo da não mercadoria. 12

Um povo que não assimila a cultura do colonizador, mas sobrevive aos seus ditames; que não incorpora o modo de ser capitalista e inventa uma resistência sutil, que confunde o explorador, uma resistência em forma de leseira, de uma credulidade absoluta.13

Cheguei em Manaus há dois anos, logo fui atravessada por uma estranheza, afectos múltiplos, confusão, um novo modo de existir. Me sentia afetada por uma aspereza, uma certa hostilidade nas relações, pela agressividade cotidiana, pela dificuldade de me expressar e ser ouvida. Minha escolha de estar na cidade era questionada, me perguntavam o que vim fazer aqui.

Entendi que implícito nesta pergunta, existia uma desconfiança, ou quem sabe a constatação de que sou mais um explorador, que veio desbravar a Amazônia, retirar dela o que precisa e ir embora como tantos fizeram e fazem. Alguém que veio ensinar, difundir um pensamento, colonizar.

Como me manter viva, como driblar o inconsciente colonial, se me colocam exatamente no lugar do colonizador, do explorador? Sendo atravessada por afectos que foram fermentados durante séculos de desrespeito, opressão e violência?

Todos os incômodos, confrontos e situações experimentadas na vida urbana convergem para um único objetivo: encontrar dispositivos que possibilitem o pensamento e a enunciação do desejo sem despertar tantas forças reativas.

Buscar compreender a vida manauara, experimentar esse modo de existência foi o corte que deu corpo ao deslocamento, possibilidade de ser atravessada por forças mortíferas sem sucumbir ao adoecimento, à dissolução do pensamento.

Para me manter viva, para continuar funcionando sem me encapsular diante da realidade encontrada, fui permitindo encontros produtivos que ampliaram a possibilidade de novas conexões, potencializaram o desejo de cartografar a subjetividade manauara e os atravessamentos em meu corpo. Sendo assim, procuro decifrar a construção da realidade de

12 OLIVEIRA, 2009, p. 89. 13 SOUZA, 2009, p. 121.

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um povo que passou por vários traumas ao longo de sua história, o último deles há exatos 50 anos.

Que tipo de subjetividade se produz frente à uma cartografia cultural autoritária e violenta, quando se trata de indivíduos que carregam em sua ascendência direta a cultura tradicional indígena, a cultura cabocla, do saber do corpo e da experiência extra-pessoal? Como identificar as forças corrosivas e prejudiciais do inconsciente colonial-capitalístico? Quais são as alternativas que surgem para driblá-lo? Quais são as linhas de fuga possíveis? Qual a política de desejo predominante?

Como um cartógrafo brecheiro, me coloco a mapear a subjetividade constituída em um capitalismo nas bordas, permeada por suas urbanidades e florestalidades. Deixo-me afetar por aquilo que encontro, me transformo num corpo em devir.

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27 Imagem: Mariana Pelizer. (Janeiro de 2016 - Rio Amazonas. Manaus - AM.)

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CAPÍTULO 1. CORPO CAOS

A questão do desejo não é o “o que isso quer dizer?”, mas como isso

funciona. Como funcionam as máquinas desejantes, as suas, as

minhas, que falhas fazem parte do seu uso, como passam de um corpo a outro, como se agarram ao corpo sem órgãos, como confrontam seu regime com o das máquinas sociais? Funcionam como dócil engrenagem bem lubrificada ou se preparam, ao contrário, como uma máquina infernal? Que conexões, que disjunções, que conjunções, que uso fazem das sínteses? Isso nada representa, mas produz; isso nada quer dizer, mas funciona”.14

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1.1. Apatia

O despertador tocou às 6:00 horas da manhã. Salomé abriu os olhos com dificuldade. Seus olhos ardiam. Ao sair de casa, se emaranhou na neblina de fumaça, não sabia o que acontecia. Mas o cheiro era inconfundível, incêndio.

Espanto ao se dar conta, que toda a cidade, estava coberta pela fumaça. A caminho do trabalho, ligou o rádio do carro, entre uma notícia e outra, ouviu que vários focos de queimada destruíam a floresta nos entornos da capital.

O despertador tocou às 6:00 horas da manhã. Salomé abriu os olhos com dificuldade. Seus olhos ardiam. Ao sair de casa, se emaranhou na neblina de fumaça...

Revolta ao se dar conta, que toda a cidade, continuava coberta pela fumaça. A caminho do trabalho, ligou o rádio do carro, entre uma notícia e outra, ouviu que a umidade do ar nunca esteve tão baixa na região, o que justificava a permanência dos focos de queimada.

O despertador tocou às 6:00 horas da manhã. Salomé abriu os olhos com dificuldade. Seus olhos ardiam. Ao sair de casa, se emaranhou na neblina de fumaça...

Um nó na garganta se formou ao se dar conta que toda a cidade continuava coberta pela fumaça. A caminho do trabalho, ligou o rádio do carro, entre uma notícia e outra, ouviu que os bombeiros não tinham recursos suficientes para combater as chamas, o que justificava a permanência dos focos de queimada.

O despertador tocou às 6:00 horas da manhã. Salomé abriu os olhos com dificuldade. Seus olhos ardiam. Ao sair de casa, se emaranhou na neblina de fumaça...

Segurou o choro ao se dar conta que toda a cidade continuava coberta pela fumaça. A caminho do trabalho, ligou o rádio do carro, entre uma notícia e outra, não ouviu nenhuma informação sobre os focos de queimada, nem sobre a impossibilidade de apagá-los.

O despertador tocou às 6:00 horas da manhã. Salomé abriu os olhos com dificuldade. Seus olhos ardiam. Ao sair de casa, se emaranhou na neblina de fumaça...

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Chorou ao se dar conta que toda a cidade continuava coberta pela fumaça. A caminho do trabalho, não ligou o rádio do carro.

A fumaça entrava pelos poros, o gosto defumado pregado na língua. Inalava o descaso, o desrespeito, a falta de amor. Devastadora repetição.

Imagem: Mariana Pelizer (Outubro de 2015 – Bairro Praça 14 de Janeiro – Manaus.)

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1.2. Como tocar um coração selvagem?

Como me manter viva sendo atravessada por afectos que foram fermentados durante séculos de desrespeito, opressão e violência?

Passei o primeiro ano medindo os passos, escolhendo as palavras, me expressando com muito cuidado. Tomada por um sentimento de impotência, observei que todos os sustos, todos os confrontos e choques experimentados até então, passaram a produzir um corpo esvaziado, estratificado.

Uma carapaça foi tomando conta de minha pele e fibras musculares, percebia o enrijecimento. Como efeito de todos os sustos contidos, uma onda de vibração passou a percorrer todas as células, notava a presença de meus órgãos – extremidades trêmulas, garganta, estômago e intestinos frouxos, pulmão comprimido, coração fora do ritmo.

Sobressaltos, espasmos e a sensação de que não havia mais tempo, não havia um lugar. Um corpo vibrátil vibrando em descompasso.

Experimentar em meu próprio corpo os efeitos de um arranjo reativo. Me perceber territorializada no plano das formas vigentes de psicopatologia, aberta aos atravessamentos desta construção social, de seus códigos e representações.

Atenta ao arranjo sintoma-doença-psicofármacos-consumo, tentei me descolar do sentimento de medo e exercitar um olhar de fora. Oscilação entre um organismo aterrorizado e a busca por saídas mais fecundas e potentes. Um Corpo sem Órgãos15 povoado por intensidades, cambaleando entre as superfícies que o estratificam e o plano que o libera.

Corpo sem Órgãos é um conceito criado por Artaud16 e retomado por Deleuze e Guatarri para tratar de um corpo que é pura potência, intensivo, vivo, um conjunto de sensações que resultam da capacidade de ser afetado, experimentar, desejar. Um corpo distinto daquele comandado pelos órgãos que tem um propósito funcional, uma organização produtiva, onde o desejo é adestrado e a vida só faz sentido se tiver uma finalidade, um significado.

15 DELEUZE e GUATTARI, 2012a, p. 27.

16 Antonin Artaud (1896 - 1948) foi um poeta, ator, escritor, dramaturgo, roteirista e diretor de teatro francês

ligado fortemente ao surrealismo, criador do Teatro da Crueldade, foi tido como louco e internado diversas vezes em vários manicômios franceses.

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Deleuze e Guattari propõem que para se atingir um Corpo sem Órgãos é preciso delicadeza, pois como nos encontramos em uma formação social, é necessário ver primeiramente como ela é estratificada para nós, em nós e no lugar onde estamos.

Eis então o que seria necessário fazer: instalar-se sobre um estrato, experimentar as oportunidades que ele nos oferece, buscar aí um lugar favorável, eventuais movimentos de desterritorialização, linhas de fuga possíveis, vivenciá-las, assegurar aqui e ali conjunções de fluxos, experimentar segmento por segmento dos contínuos de intensidades, ter sempre um pequeno pedaço de uma nova terra.17

Sendo assim é necessário certo comedimento ao experimentar novas realidades, ao se abrir para as afetações do mundo, ser cuidadoso ao se deslocar de um território a outro, ao se desterritorializar.

Rolnik ao discorrer sobre a prática do cartógrafo, enfatiza que a regra de ouro para pensar com o corpo vibrátil seria uma regra de prudência, avaliar constantemente o quanto as defesas que estão sendo usadas servem ou não para proteger a vida. Compreender que há um limite de tolerância para o quanto se suporta a desorientação e a reorientação dos afetos, um limiar de desterritorialização.18

E ainda pondera que a potência clínica estaria em abrir o corpo para as forças da alteridade do mundo, não esquecendo da prudência que deve nos orientar na modulação desta abertura. Ou seja, reconhecer um pouco mais a crueldade da vida e se assustar um pouco menos com o assombro e a vertigem em que a vida nos lança a cada vez que ela põe um mundo a perder.19

Suspeito que me faltou prudência, foram tantas rupturas ao longo da vida e a cada uma delas, tantos movimentos, deslocamentos e desejo de mundo, que possivelmente eu não tenha percebido a fragilidade em que me encontrava, a falta de terra embaixo dos pés.

Desterritorializada, ávida por novas conexões, tentando criar um mundo possível, me lancei em todos os encontros. Nômade no caos de uma cidade desconhecida, através do trabalho de Acompanhamento Terapêutico, fui contagiada por experiências psicóticas, me deparei com a recorrência de delírios de fuga da capital, me vi trancada com um jovem rapaz em surto em seu cárcere privado; além dos relatos de violência sexual e outras mazelas

17 DELEUZE E GUATARRI, 2012a, p. 27. 18 ROLNIK, 2011, p. 68-69.

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vividas por meus alunos e alunas do curso de Psicologia. Não coloquei limites ao acolher, dediquei meu corpo, minha energia e afetos para dar um refúgio para a dor que me era apresentada.

Um corpo aberto para as intensidades da Floresta Amazônica, para uma potência viva e extasiante, deixando passar também as forças mortíferas, avassaladoras inscritas na vida de um povo e na história desse lugar.

Deleuze dedicado à leitura de Espinosa, pergunta: O que pode um corpo? “O que o corpo pode é a natureza e os limites do seu poder de ser afetado”. Somos afetados por forças ativas e passivas, as forças ativas é nossa potência de compreender, de conhecer, já as forças passivas impedem ou diminuem nossa potência de agir.20

Espinosa21 discorre sobre a potência de agir e a potência de sofrer, segundo ele, a potência de agir seria esse poder de ser afetado, e por outro lado, a potência de sofrer seria a limitação das forças ativas.

Sofremos por uma coisa exterior, distinta de nós mesmos; temos portanto nós mesmos uma força de sofrer e uma força de agir distintas. Mas nossa força de sofrer é apenas a imperfeição, a finitude ou a limitação de nossa própria força de agir. Nossa força de sofrer não afirma nada, porque não exprime absolutamente nada: ela “envolve” apenas nossa impotência, ou seja, a limitação de nossa potência de agir. Na verdade, nossa potência de sofrer é nossa impotência, nossa servidão, isto é, o grau mais baixo de nossa potência de agir.22

Preocupado com a complexidade da noção espinosista de “ordem da Natureza”, Deleuze chega à conceituação da ordem dos encontros, através da qual expõe uma ordem de conveniências e outra de desconveniências. Os corpos existentes se encontram podendo apresentar relações que se compõem (ordem de conveniência) ou relações que não se compõem, onde um dos corpos seja determinado a destruir a relação do outro (ordem de desconveniência).

A partir dessa lei, entendemos que se encontro um corpo cuja relação convêm com a minha natureza, será possível um encontro útil. É possível identificar um bom encontro

20 DELEUZE, G. 1968, p. 147.

21 É importante entender que o pensamento de Espinosa sobre a potência, os afetos e a alegria foram concebidos

no contexto da Europa pós inquisição, onde as potências da natureza (a potência do vivo) haviam sido eliminadas; diferente da experiência da Amazônia contemporânea, onde apesar da dilapidação da natureza, o vivo ainda persiste gerando possibilidade de criação.

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quando percebemos que alguma coisa nos afeta de alegria, esse sentimento aumenta nossa potência de agir, ele vai nos determinar a desejar, a imaginar, a fazer tudo aquilo que está em nosso poder para conservar essa mesma alegria e o objeto que a proporciona.

Ao passo que, se esse corpo não convém com a minha natureza, ele produz em mim uma afecção passiva que é, ela mesma, má ou contrária à minha natureza. Surge então um sentimento de tristeza, que se define pela diminuição da minha potência de agir. Ainda assim, frente aos maus encontros nos esforçamos para vencer, para fazer com que as partes do corpo que nos afeta de tristeza tenham uma nova relação que se concilie com a nossa.

Sendo assim, nos localizamos frente aos atravessamentos das forças ativas e passivas, um combate entre a potência de vida e as forças normatizadoras da cartografia vigente, permeada de bons e maus encontros. É a prudência que baliza os atravessamentos potentes daqueles que nos leva ao adoecimento, à impotência. Um cuidado que define o limite entre a possibilidade de pensar e a interrupção do pensamento.

Vigilante a esse limiar, me abro para o acolhimento do inesperado, me implico na investigação de processos de produção de subjetividade, avaliando os efeitos da experiência para daí retirar os desvios necessários para o processo de criação.

Lanço mão do método cartográfico, que como define Kastrup e Barros23, entende as configurações subjetivas não apenas como resultantes de um processo histórico que lhes molda estrato, mas que portam em si mesmas processualidade, guardando a potência do movimento.

A cartografia enquanto método, cria seus próprios movimentos, seus próprios desvios, trata de um caminho que deve ser experimentado e percorrido para então estabelecer suas metas. Ela é um mapa do presente que tem como escopo trajetos e devires.

Segundo Deleuze24, os mapas se superpõem de tal maneira que cada um encontra no seguinte um remanejamento, trata-se de uma avaliação dos deslocamentos, o que está em questão é detectar uma trajetória que sirva como indicador de novos universos de referência. A cartografia é um método transversal porque funciona na desestabilização daqueles eixos cartesianos (vertical/horizontal), onde as formas se apresentam previamente categorizadas. Assim, a operação de transversalização consiste na captação dos movimentos constituintes das formas e não do já constituído do/no produto. O

23 KASTRUP e BARROS, 2014, p. 77. 24 DELEUZE, 2011, p. 86.

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método vai se fazendo no acompanhamento dos movimentos das subjetividades e dos territórios.25

Rolnik coloca que o cartógrafo é, antes de tudo, um antropófago, mergulhado nas intensidades de seu tempo, deve estar atento às linguagens que encontra, devorando as que lhe parecerem elementos possíveis para a composição das cartografias que se fazem necessárias. 26

Um trabalho de investigação pautado no método cartográfico é como uma viagem, no caminho: paisagens inéditas, climas e culturas, encontro com novas subjetividades e suas diferentes capacidades de afetar e serem afetadas, no trajeto poderá acontecer percalços os quais causará desvios, as escolhas serão feitas frente às possibilidades, o destino será aquele alcançado.

Não existe vazio, tudo é habitado, nós somos, cada um de nós, o local de passagem e articulação de uma quantidade de afetos, de linhagens, de histórias, de significações, de fluxos materiais que nos excedem. O mundo não nos rodeia, ele nos atravessa. O que nós habitamos nos habita. O que nos cerca nos constitui. Nós não pertencemos. Nós estamos agora e sempre disseminados por tudo aquilo a que nos ligamos. A questão não é dar forma ao vazio a partir do qual finalmente conseguiríamos agarrar tudo aquilo que nos escapa, mas de aprender a habitar melhor este que lá está... Entrever um mundo povoado não de coisas, mas de forças, não de sujeitos, mas de potências, não de corpos, mas de elos.27

25 KASTRUP e BARROS, 2014, p. 77. 26 ROLNIK, 2011, P. 23.

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1.3. Fim do Mundo

Por toda terra que passo me espanta tudo que vejo

A morte tece seu fio de vida feita ao avesso

O olhar que prende anda solto

O olhar que solta anda preso Mas quando eu chego eu me enredo

Nas tramas do teu desejo

O mundo todo marcado à ferro, fogo e desprezo

A vida é o fio do tempo, a morte o fim do novelo

O olhar que assusta anda morto

O olhar que avisa anda aceso

Mas quando eu chego eu me perco

Nas tranças do teu segredo A cera da vela queimando, o homem fazendo seu preço

A morte que a vida anda armando, a vida que a morte anda tendo

O olhar mais fraco anda afoito

O olhar mais forte, indefeso

Mas quando eu chego eu me enrosco

Nas cordas do seu cabelo

Ê Minas, ê Minas, é hora de partir, eu vou Vou-me embora pra bem longe...28

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Quarenta dias de fumaça e a sensação de solidão ao se indignar. Poucos falavam sobre o assunto. Além dos efeitos da fumaça em seu corpo, uma sem-gracisse tomou conta de sua vida. Salomé nunca tinha experimentado o cheiro da morte e agora ele estava impregnado em seus pulmões, colado em suas células. Um estado de apatia a abateu. Vislumbrava o fim. Esta experiência elucidou um mal-estar que já se fazia presente, uma angústia de morte, sensação de fim de mundo que se desdobrou em vários fins de vários mundos. Além da floresta em chamas e a possibilidade real do fim dos recursos naturais e da biodiversidade do planeta, uma tristeza ecoou a dor do extermínio do povo que aqui viveu e da sobrevivência cotidiana de uma gente morta-viva, reverberou em mim as minhas várias vidas, as minhas várias mortes.

Desterritorializar, desatar um território, experimentar a vida sentada a beira do abismo: sentir o frio na barriga, dar gargalhadas do absurdo, gangorrar as pernas soltas no nada, algumas vezes apenas contemplar, outras vezes deslizar, flutuar no contrassenso, deixar-se levar pela vertigem, se reconhecer no estranhamento.

Desterritorialização, fim de um mundo, fim de um plano, fim de um território. Movimento necessário operado pelas linhas de fuga, abertura para criação de novos mundos, expansão de territórios, fluxos rizomáticos. A vida se dá nesse vai e vem, em movimentos de desterritorialização e reterritorialização.

A Terra não é um elemento entre outros, ela reúne todos os elementos num mesmo abraço, mas se serve de um ou de outro para desterritorializar o território. Os movimentos de desterritorialização não são separáveis dos territórios que se abrem sobre um alhures, e os processos de reterritorialização não são separáveis da Terra que restitui territórios, são dois componentes, o território e a Terra, com suas zonas de indiscernibilidade, a desterritorialização (da Terra) e a reterritorialização da Terra ao território.29

Acometida por uma mudança brusca, por desenlaces, frente a um novo modo de existir esvaziado, a uma subjetividade endurecida, contaminada por uma vida estéril, precisei de um tempo de gestação para decifrar as forças que me atravessavam sem sucumbir à vontade de conservar um território enrijecido, seguro, mas esgotado. Aos poucos fui trocando de pele, à imagem de uma sucuri que para continuar crescendo, desliza para fora de sua pele, deixando materializada uma cobra esvaziada, mas vazando para fora, ampliando territórios, costurando um novo corpo.

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Sustentando o mal-estar, aturando um certo esvaecimento, encarando a falta de chão, habitando um deserto ilhado em meio a Floresta Amazônica, migrante, contagiada por um despovoamento, pela solidão de não pertencer, pude então reconhecer colada em mim a dor do fim do mundo de um povo, arrastado, migrado, minguado, despertencido, desterrado, de um povo que aqui viveu e ainda vive.

Parece que o deslocamento geográfico, deixar uma terra para habitar outra, deportar afetos, expatriar perceptos, me trouxe para o fim do mundo. Olhar de frente para esse tempo, embrenhar na obscuridade do agora, permanecer no vórtice parece ser a única saída não totalitária.

Sensação de que vivia dias felizes, conquistas contundentes acontecendo, de olho na multiplicidade, na diferença, na alteridade. Abertura do pensamento, possibilidades múltiplas de existência, respeito a uma vida singular. E agora, ser engolida pelo retrocesso. Não sei se era eu que ainda não conseguia enxergar na escuridão, mas o fato é que agora estou vendo.

Uma avalanche de desrespeito e direitos essenciais sendo colocados em risco. Os interesses do capital levado ao seu extremo, uma pseudodemocracia, depreciação das conquistas sociais e trabalhistas, crenças manipuladas, as pessoas servindo de marionete à interesses abstrusos, a intolerância e a violência consolidando uma sociedade do medo, o biopoder em tempos virtuais, produção de uma subjetividade zumbi. Talvez seja mesmo o fim do mundo, o fim dos tempos, o fim de um sistema, o fim da humanidade.

Resistir, confiar que todo território instaurado carrega consigo seu próprio fim e que esse recuo para um território de dominação, essa reterritorialização conservadora, um dia também entrará em colapso. Experimentar a potência investida no caos, buscar exercitar a vida, dar corpo sensível às forças, dar passagem para o que pede criação, decifrar o que me atravessa.

Operando no desconhecido, me dei conta que para viver nesse tempo, nesse espaço, preciso dar voz às forças remotas que me interpelam, experiências passadas, de um povo, de um território que agora me afetam, compreender o fim de um tempo e a origem dessa existência.

Giorgio Agabem30 coloca que a distância, e ao mesmo tempo, a proximidade que define a contemporaneidade tem o seu fundamento nessa proximidade com a origem, que

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em nenhum ponto pulsa com mais força que no presente. Ao me dar conta do agora, me distancio para conseguir enxergar o que se passa e começo a perceber as lacunas do presente, o não-vivido.

Sendo assim, além de dar nome aos incômodos, me vejo cartografando o fim do mundo, fim do mundo que para mim começou sob uma nuvem de fumaça.

Estes são apenas alguns dos vários apontamentos que o Painel Internacional sobre Mudanças Climáticas (IPCC)31 fez no Quinto Relatório sobre Mudanças Climáticas Globais publicado em 2013 e 2014. O IPCC foi instituído em 1988 pela World Meteorological

31 IPCC é a sigla em inglês para Intergovernmental Panel on Climate Change. O relatório na íntegra pode ser

acessado em www.ipcc.ch.

1. O aquecimento do sistema climático é inequívoco e muitas das mudanças observadas, desde os anos 1950, não têm precedentes, ao longo de décadas a milênios. A atmosfera e o oceano se aqueceram, as quantidades de neve e gelo têm diminuído, o nível do mar subiu e as concentrações de gases de efeito estufa aumentaram.

2. Cada uma das três últimas décadas tem sido sucessivamente mais quente na superfície da Terra do que qualquer década anterior desde 1850. No hemisfério Norte, é provável que o período de 1983-2012 foi o período de 30 anos mais quentes nos últimos 1400 anos.

3. A influência humana sobre o sistema climático é clara. Ela fica evidente a partir das crescentes concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera, a forçante radiativa positiva, o aquecimento observado e a compreensão do sistema climático.

4. A influência humana foi detectada no aquecimento da atmosfera e do oceano, em mudanças no ciclo hidrológico global, em reduções em neve e gelo, na média global o aumento do nível do mar, e em mudanças em alguns eventos climáticos extremos.

5. Emissões cumulativas de CO2 em grande parte determinam o aquecimento superficial médio global até o final do século 21 e além. A maioria dos aspectos das alterações climáticas vai persistir por muitos séculos, mesmo que as emissões de CO2 cessem completamente. Isso representa um comprometimento multissecular substancial das mudanças climáticas criado pelas emissões passadas, presentes e futuras de CO2.

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Organization (WMO) e pelas Nações Unidas e tem como principal objetivo reunir e divulgar informações científicas atualizadas sobre as mudanças climáticas e seus impactos no planeta, sugerindo maneiras de combater seus efeitos e riscos, auxiliando na formulação de políticas públicas.

O relatório em questão traz a constatação de que o clima do planeta vem sendo alterado pela ação do homem. Estamos no Antropoceno, termo difundido por Paul Crutzen (Prêmio Nobel de Química de 1995) para nomear uma nova época geológica, período em que a humanidade tem papel central na geologia e na ecologia. Apesar de haver divergências sobre a criação de uma nova idade geológica, não há dúvidas que o homem se transformou em agente geológico. Alguns pesquisadores atribuem essa transformação, o começo do Antropoceno à Revolução Industrial, coincidindo com a criação da máquina à vapor no final do século XVIII, com o início do aumento de concentração de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera, com a expansão demográfica (1 bilhão de habitantes) e expansão do uso de combustíveis fósseis. Outras pesquisas datam o início do Antropoceno por volta do ano de 1945, pós Segunda Guerra Mundial, com o surgimento da era nuclear e sua marca radioativa sobre a Terra, com a abundância e o barateamento do petróleo, o aumento do consumo de massa e o aumento exponencial da população, hoje somos mais de 7 bilhões de habitantes. Essa fase, do qual fazemos parte, vem sendo conhecida como “a grande aceleração”.32

Segundo Nobre, pesquisador do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), os últimos 50 anos testemunharam uma dramática degradação do capital natural da Terra: a cada hora, 9 mil pessoas se somam à população mundial; 4 milhões de toneladas de CO2 são emitidos; 1500 hectares de florestas são derrubadas; atividades humanas adicionam 1,7 milhões de quilogramas de nitrogênio reativo às florestas, campos agrícolas e corpos d´água; 3 espécies são extintas (1000 vezes mais do que os processos naturais).33

A “grande aceleração” deve ser destacada pela enorme expansão quantitativa da produção e do consumo e consequente mudança qualitativa da presença humana na Terra.34 O homem acelerou os processos de acumulação de capital, consequentemente acelerou a deterioração dos recursos naturais do planeta e com isso, acelerou o tempo. Parece que a forma como experimentamos o andamento do tempo, a sensação de falta de tempo, de correr

32 Dados compilados das seguintes referências: PÁDUA, J. A. 2015, p. 60-65. SANTAELLA, L. 2015, p.

46-59. ARTAXO, P. 2014, p. 13-24.

33 NOBRE, 2010.

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atrás da hora, deixou de ser apenas uma impressão psicológica, a passagem do tempo foi alterada, estamos vivendo em um mundo em que tudo se transforma em alta velocidade.

Não se trata apenas, portanto, de uma “crise” no tempo e no espaço, mas de uma corrosão feroz do tempo e do espaço. Esse fenômeno de um colapso generalizado das escalas espaciais e temporais (o interesse contemporâneo pelos fractais não nos parece acidental) anuncia o surgimento de uma continuidade ou convergência crítica entre os ritmos da natureza e da cultura, sinal de uma iminente “mudança de fase” na experiência histórica humana. ... Assim, o tempo histórico parece a ponto de voltar a entrar em ressonância com o tempo meteorológico ou “ecológico” – mas agora não mais nos termos arcaicos dos ritmos sazonais, e sim, nos da disrupção dos ciclos e na irrupção de cataclismos. O espaço psicológico se vai tornando coextensivo ao espaço ecológico – mas agora não mais como controle mágico do ambiente, e sim como “pânico frio” suscitado pela enorme distância entre conhecimento científico e impotência política, isto é, entre nossa capacidade (científica) de imaginar o fim do mundo e nossa incapacidade (política) de imaginar o fim do capitalismo.35

Experiência sufocante frente ao tempo comprimido, patologias da velocidade, o improvável fim de um sistema, a contínua corrida por uma economia superdesenvolvida, a constatação do fim do mundo. Um modo de vida colapsado, conveniente cegueira que ignora as previsões mortíferas, na ânsia de continuar consumindo, aspirando conquistas neoliberais. Hipnose coletiva, reprodução de hábitos que só favorece uma ínfima minoria em escala mundial, comunicação de massas fabricando um consenso suicida, tiro no próprio pé. A depreciação da vida sendo esfregada nas fuças de cada um.

Guattari em “Caosmose” já anunciava que o mundo não muda mais de dez em dez anos, mas de ano em ano. Segundo ele, com uma velocidade de desterritorialização cada vez maior, nossos órgãos sensoriais, nossas funções orgânicas, nossos fantasmas, nossos reflexos etológicos se encontram maquinicamente ligados em um mundo técnico-científico que está realmente engajado em um crescimento louco. Guattari alerta: é urgente voltar a uma concepção animista do mundo.36

Viveiro de Castro em entrevista para Eliane Brum37 coloca que somos todos drones, como os soldados americanos que de longe apertam um botão e matam inocentes no

35 VIVEIROS DE CASTRO, E. e DANOWSKI, D. 2014, p. 30-31. 36 GUATTARI, F. 2012, p. 140-141.

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Paquistão, vivemos uma dissociação mental. Cada vez mais não sabemos exatamente o que estamos fazendo. Segundo ele, o índio que vai para o mato e tem que flechar o inimigo, tem que arcar com as consequências psicológicas, morais, simbólicas do seu ato. Em nossa sociedade, não lidamos com os efeitos da morte em massa dos bichos que comemos, nós os encontramos embalados no supermercado, sem cara de bicho. Cada vez mais, estamos distantes dos efeitos de nossas próprias ações.

Viveiros de Castro também aposta em uma forma animista de compreender o mundo. Ele aponta que os indígenas podem nos ensinar a repensar a relação com o mundo material pois acreditam que não se faz nada impunemente na Terra, todos os atos têm implicações na natureza. São eles que podem nos ensinar a viver melhor em um mundo pior, podem nos ensinar a viver com pouco e a ser tecnologicamente polivalente e flexível, em vez de depender de megamáquinas de produção de energia e de consumo de energia como nós.

Davi Kopenawa, xamã e porta-voz Yanomami, nomeia nossa sociedade, os brancos, de “povo da mercadoria”. Ele explica que as mercadorias, os objetos, podem durar muito além do que vivemos, por isso seu povo não tem o hábito de juntá-las, nunca deixam de dá-las a alguém que as pede, pois se não as dessem, continuariam existindo após nossa morte, causando tristeza aos que sobrevivem. Ele diz: “Já que somos mortais, achamos feio agarrar-se demais aos objetos que podemos vir a ter. Não queremos morrer grudados a eles por avareza”. E aponta que os brancos têm seu pensamento concentrado em seus objetos o tempo todo, não param de fabricar, matam um aos outros por dinheiro, não pensam que estão estragando a terra e o céu e que nunca vão poder recriar outros.38

Nós nascemos na mata, crescemos nela e nela nos tornamos xamãs. Ao contrário dos brancos, cuidamos dela, como nossos maiores antes de nós, porque sem ela não poderíamos viver. Por isso o espírito da fome sempre esteve longe dela. Queremos que nossos filhos e netos possam também se alimentar da floresta. Desmatamos pouco, só para abrir nossas roças. Nelas plantamos mandioca, macaxeira, bananeiras, cará, batata-doce, cana-de-açúcar, mamoeiros e pupunheiras. Depois, passado algum tempo, deixamos que cresça de novo. Então um matagal emaranhado invade nossas antigas roças e, depois, as árvores vão aos poucos crescendo de novo. Se plantarmos sempre no mesmo lugar, as plantas não dão mais. Ficam quentes demais, como a terra desmatada que perdeu seu perfume de floresta. Ficam mirradas e ressecadas. Logo nada mais brota. Por isso nossos

Referências

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