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O capitalismo nas bordas

No documento Corpo em devir Entre a floresta e a cidade (páginas 75-86)

CAPÍTULO 2. CORPO-CIMENTO.

2.2. O capitalismo nas bordas

Doaram nossa água encanada pra frança comandar Pagaram toda a dívida externa com a flora amazônica Compraram laptops para os nossos waimiris conectar Trocaram o teatro amazonas pela lei da informática Agora a gente só come farinha Quando falta "ferrinhé", se não tiver gatorade Aí quem sabe eu beba um guaraná Não comemos mais jaraqui, porque já temos bigmac Chega dessas coisas do Amazonas, quero o que vem lá de fora

Chega dessa pouca vergonha De esquecer nossa cultura, patrimônio secular Vamos acabar com essa frescura De querer outra cultura, e quem quiser Que vá morar noutro lugar

Tão vendendo o boi bumbá pra ornamentar o Planalto Central A Ponta Negra virou parque pago pra inglês fotografar Não queremos mais essa feiçura de caboclo manaó Eu quero ver o lindo tietê e a favela do borel Pra variar Chega...

Revitalizaram nosso Centro Numa feira linear pra passear Mais cuidado com os índios da Eduardo Ribeiro E as onças da Matriz, pelo amor de Deus não vá pra lá Lotearam nosso belo rio barrento Pra guiné e bagdá Tem tracajá, tem jacaré, tem tambaqui E quem quiser pode pegar Chega...111

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Habitar uma cidade, habitar uma metrópole, inundada em representações de diversas ordens, em relações de poder, utopias, consensos, linguagens, territórios compartilhados, linhas de forças. O que há de distinto nas relações e modos de vida em Manaus? O que a transforma em uma metrópole tão singular?

Como foi colocado até então, Manaus é uma cidade marcada pela exploração, pela colonização e marginalização de seu povo; os projetos extrativistas, as iniciativas capitalistas e a forte influência estrangeira esfacelaram os modos de vida originais, de modo que as necessidades da população nunca foram prioridade política.

Mas penso que o que transforma Manaus em uma metrópole tão particular é que nela o capitalismo se estabelece na borda. Borda é beira, é extremidade, contorno, área que circunscreve ou limita algo. A borda contém o dentro e o fora, o cheio e o vazio, o que é e o que não é. Talvez ela seja o lugar mais próximo do avesso, do arremate ou do desate do nó. É na borda que o cotidiano se desfaz, que o absurdo se faz visível. Borda é fronteira.

É por estar na borda que o sistema capitalista, apesar de se instalar de forma tão avassaladora na capital, permanece como uma superfície extrínseca à biosfera. Biosfera aqui entendida como o corpo vivo do cosmos, como o campo de forças em processo contínuo de transfiguração, da qual o corpo humano faz parte como apenas um de seus elementos; diferente da ideia binária de cultura e natureza, própria de nossa civilização antropo-falo- ego-logocêntrica, que pressupõe a natureza como algo dado de uma vez por todas e a cultura como algo dela separada. A floresta Amazônica em sua concretude e imanência assegura uma terrestridade intrínseca, ela germina e prolifera incessantemente a despeito das urgências do capital.

Manaus apresenta todas as contradições de qualquer cidade grande, mas é singular por ter crescido vertiginosamente em meio à floresta, permanecendo assim até hoje. A capital continua isolada, sem ligação por terra com o centro-sul do Brasil; tem como característica a expansão comercial e econômica, mas segue intrincada pela marca dos saberes caboclos e pelo tempo da natureza.

Em função desta particularidade, muitos são os contrassensos vividos na cidade. Ainda hoje, a implantação da Zona Franca segue como um dos grandes paradoxos, a instalação de um pólo industrial e a expansão do capitalismo em contraposição com os modos de produção artesanais e costumes integrados ao meio ambiente.

Uma das contradições mais relevantes ligada à existência da Zona Franca envolve o desmatamento e a destruição da floresta. Um discurso político que ouvimos com certa

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frequência é a afirmação de que a Zona Franca, por ter seu pólo industrial concentrado na capital e gerar tantos postos de trabalho, preserva a floresta no restante do estado do Amazonas. Essa afirmação é pautada em uma pesquisa encomendada pela própria Superintendência da Zona Franca de Manaus (SUFRAMA) para o Instituto Piatam sob o título de “Instrumentos econômicos para a proteção da Amazônia: a experiência do Pólo Industrial de Manaus”, divulgada em 2009. Porém tal discurso, mostra-se bastante estratégico para a manutenção da Zona Franca, além de agregar valor de mercado aos seus produtos ao levantar a bandeira da modernização ecológica e da economia verde.112

Segundo Brianezi, a economia verde seria um caminho para o desenvolvimento sustentável pela via do mercado. No âmbito do Programa das Nações para o Meio Ambiente (PNUMA) ela foi concebida como aquela que resulta em melhoria do bem-estar humano e da igualdade social, ao mesmo tempo em que reduz significativamente os riscos ambientais e a escassez ecológica. Dito isso, fica evidente que a invisibilidade dos povos e comunidades tradicionais no discurso que vincula a Zona Franca à conservação da floresta, é característica não apenas do ideal preservacionista da natureza selvagem, mas também da modernização ecológica que é uma abordagem ambiental tecnocrática, centrada no uso de instrumentos de mercado e que tem como palavras-chave: gestão e inovação.113

Tendo como evidência o papel de liderança do setor privado empresarial, esse discurso não abre espaço para crítica ou debate, pois é vendido por seus interlocutores como uma verdade e soa como ameaça: se acabarem com a Zona Franca, estarão acabando com a floresta.

Diante deste quadro, estudiosos e ambientalistas apresentam argumentos se opondo à propaganda ecológica em prol da Zona Franca, colocam que a pesquisa que a favorece corrobora com a conclusão de que a Zona Franca é sustentável, distorcendo o uso deste termo. Sustentabilidade não se reduz à questão do desmatamento, mas é entendida como ações que visam suprir as necessidades atuais dos seres humanos, sem comprometer o futuro das próximas gerações. Segundo Brianezi, “não dá para ignorar, por exemplo, que um quarto dos moradores de Manaus não têm acesso à água encanada, mesmo morando na maior bacia hidrográfica do planeta”. 114

112 BRIANEZI, T. 2013, p. 91. 113 BRIANEZI, T. 2013, p. 116-117. 114 REDAÇÃO. USP. 2013.

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Enquanto a pesquisa do Piatam foi amplamente divulgada, outro estudo feito pela Suframa, desta vez em parceria com a Agência de Cooperação Internacional do Japão (JICA), que avaliava a gestão de resíduos industriais no Polo de Manaus, teve pouca repercussão. Este levantamento apontou diversos problemas, entre eles a destinação de resíduos tóxicos no aterro municipal (não licenciado) e a falta de tratamento de efluentes por muitas empresas. Uma lei municipal de Manaus obriga que qualquer empresa com mais de 40 funcionários tenha tratamento próprio de esgoto, mas não é o que acontece. Em 2009, mesmo com média de 264 trabalhadores por empresa, menos de 55% delas tratava os efluentes que gerava, segundo pesquisa da JICA.115

Outra crítica a pesquisa do Piatam é que um importante indicador não é levado em consideração, a existência ou não de estradas é um fator de extrema relevância ao se pensar o desmatamento em uma região. O Projeto Zona Franca fez parte de um conjunto de ações estruturantes para a região que envolviam a abertura de uma rede viária e complexa de transporte, com foco especial para a abertura de rodovias. Vários trechos de estrada nunca foram finalizados, mas a integração regional através de rodovias se mostrou catastrófica. Os segmentos finalizados da grande malha prevista representados pelos eixos nunca finalizados integralmente da Transamazônica, BR-163, BR-319, BR-174 entre outras, simplesmente foram responsáveis pela maior taxa de desmatamento vivenciada na Amazônia ao longo das últimas décadas e que ainda persiste. Provavelmente o cenário de conservação da floresta no Amazonas não seria o mesmo caso o projeto desenvolvimentista para região tivesse alcançado seu intento.116

Uma discussão que permanece em pauta é a reconstrução e a repavimentação da BR- 319, que já foram planejadas e adiadas repetidamente. A rodovia que unia Manaus e Porto Velho (RO) está intransitável desde 1988, esta teria o propósito de facilitar o transporte da produção das fábricas da Zona Franca de Manaus para São Paulo. A falta de ligação terrestre representa uma barreira significante à migração para a Amazônia central e do norte, evitando o crescimento da pecuária na região e o avanço da fronteira agrícola em direção à floresta o que é chamado de “Arco do Desmatamento”. 117

O discurso relativo à reconstrução da rodovia sistematicamente superestima os benefícios da rodovia e subestima seus impactos,

115 REDAÇÃO. USP. 2013. 116 DURIGAN, C. 2014.

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particularmente o efeito de facilitar migração do “Arco de Desmatamento” da parte sul da região amazônica para novas e mais distantes fronteiras ao norte. Para atenuar estes impactos potenciais seria necessária uma série de mudanças fundamentais antes de pavimentar a rodovia. Estas mudanças incluem o zoneamento ecológico-econômico, a criação de reservas, e o aumento de governança em várias formas, inclusive programas de licenciamento e controle do desmatamento. Tal iniciativa, também, requer mudanças mais fundamentais, especialmente o abandono da tradição existente há muito no Brasil de conceder a posse da terra a posseiros que invadem terras públicas.118

Diante do cenário atual, não acredito que as mudanças fundamentais mencionadas acima serão implementadas antes da pavimentação da rodovia. Um dos agravantes da abertura de estradas é a migração de pessoas que se apossam de terras ilegalmente e o consequente aumento da violência. Recentemente foi sancionada a Medida Provisória (MP) 759/2016, conhecida como MP da Grilagem, que prevê a regularização fundiária de áreas urbanas e rurais e também altera a legislação da reforma agrária. A Medida Provisória amplia a data limite de ocupação de terra, anistiando quem invadiu terras públicas após a aprovação da Lei 11.952 de 2009,119 aumenta o tamanho da área de 1500 para 2500 hectares e cobra

valores irrisórios para a regularização da terra. A MP abre caminho ao agravamento do desmatamento e dos conflitos de terra, principalmente na Amazônia, já que ela ainda retira exigências ambientais que existiam para a regularização fundiária. Além disso, reforça a dívida histórica fundiária com os povos indígenas e populações tradicionais cujos territórios não foram reconhecidos até o momento, mesmo que tenham prioridade legal para essa regularização. 120

Outro ponto questionável no discurso ecológico em benefício da Zona Franca diz respeito às consequências que o aumento populacional da cidade causou ao meio ambiente, migração fortemente estimulada pela oferta de postos de trabalho no pólo industrial. Com a implementação da Zona Franca como ela é conhecida hoje, tivemos uma expansão demográfica desordenada, a partir de um modelo de desenvolvimento urbano excludente, onde a estruturação de arranjos urbanos é marcada por um mosaico de paisagens que revelam a segregação sócio-espacial. Além disso, quando uma cidade cresce sem planejamento, a

118 FEARNSIDE, P. M. e GRAÇA, P. M. L.A. 2005, p.1.

119 Lei dispõe sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União,

no âmbito da Amazônia Legal.

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relação homem-natureza vai se transformando, subjugando esta última à condição de mera fornecedora de recursos, degradando-a.121

A trajetória de evolução da urbanização em Manaus nos últimos 20 anos tem sido o grande desafio no processo de crescimento x preservação ambiental. O avanço desordenado da cidade principalmente em direção as zonas leste e norte, provocaram perdas ao meio ambiente sem precedentes, como a destruição de nascentes; a ameaça de extinção de espécies animais nativas como o Sauim de Manaus; maior vulnerabilidade a problemas de erosão, alagamento e aumento de temperatura ocasionada pelo desaparecimento de espécies vegetais que tem como função proteger o solo das agressões do Sol e da chuva, etc. O que restou na zona urbana da cidade foram fragmentos florestais (abrangendo diversidade de tipos de vegetação que ocorre na área urbana desde uma capoeira em estágio inicial e/ou avançado, até fragmentos de floresta nativa), que se localizam espalhados e em sua grande maioria sem utilidade para as comunidades que os cercam.122

Apesar do grande incentivo para migração, não houve planejamento urbano que suportasse o crescimento populacional, além disso o desenvolvimento econômico sempre esteve voltado para o acúmulo de capital e não para um modelo sustentável que abrangesse todo o Amazonas, tendo como efeito o significativo êxodo do interior do estado para a capital e o abandono da vida cabocla e ribeirinha para a sobrevivência nos bolsões de pobreza em Manaus. Furtado alerta que se tivéssemos um modelo de desenvolvimento modernizador com princípios coerentes à diversidade sociocultural e ambiental da Amazônia, não estaríamos presenciando sinais de destruição da vida humana e biológica.123

Esta realidade precisa ser mudada a partir de um modelo desenvolvimentista sim, mas [...] que tenha como critérios básicos, fatores que considerem não apenas a “substância” dos ecossistemas e a “função” deles, mas leve em conta o homem em sua diversidade sociocultural e adaptativa; que os valores da sociedade cabocla sejam considerados, a fim de que os benefícios da modernização sejam socializados por todos e não apenas por alguns setores. Essa socialização se daria por troca de ideias, apresentação de propostas das lideranças dos vários segmentos (pescadores, agricultores, coletores, extratores, etc.) que conhecem, vivenciam o viver na Amazônia. Mas isto não tem sido feito sistematicamente.124

121 NOGUEIRA, A. C. F., SANSON, F. e PESSOA, K. 2007, p. 5428. 122NOGUEIRA, A. C. F., SANSON, F. e PESSOA, K. 2007, p. 5431. 123 FURTADO, L. G. 2009, p.65.

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A vida em Manaus reflete o conflito de interesses entre a mobilização política e privada para o desenvolvimento econômico, em defesa do pólo industrial; a preocupação de ambientalistas em preservar o equilíbrio ecológico e a vida das comunidades tradicionais; além de uma pressão mundial já que a região amazônica, ao conservar a maior reserva de recursos naturais do planeta, ocupa uma posição geopoliticamente estratégica. Becker chama atenção para uma ideologia ecológica ou politização da natureza, em que a preservação tem o sentido de reserva de valor, de realização futura para a energia, a ciência e a tecnologia. Desta forma, a questão ambiental torna-se um novo parâmetro da geopolítica mundial, um elemento de pressão sobre os países periféricos e semiperiféricos que detêm o grande capital- natureza.125

A diferença entre os projetos para a Amazônia, e o eixo em torno do qual se definem os projetos parecem ser a questão da modernização e do valor atribuído à natureza. Há um projeto internacional preservacionista para a Amazônia, seja da consciência ecológica, seja da ideologia ecológica. Esse projeto preservacionista vem através de propostas de conversão da dívida por natureza e de desenvolvimento sustentável que propõe um certo tipo de controle do uso do território. Existe também um projeto desenvolvimentista de elites regionais, um novo empresariado, uma elite modernizada que não quer a abertura total da economia para não perder os seus privilégios, mantendo os direitos de propriedade, e que, portanto, representa fortalecimento do Estado-Nação. Nesse mesmo sentido existem também projetos de pequenos produtores cuja meta é a conquista do direito da propriedade e da cidadania, reivindicações ainda em relação à fronteira, ao acesso à terra e há reivindicações ainda em relação do Estado-Nação. Combinados com alianças extraterritoriais internacionais existem também os seringueiros e as populações indígenas para quem a natureza tem um significado completamente diferente, o valor de uso de sua sobrevivência, para sua reprodução. Há, pois, um conflito de valores em relação à natureza e aos projetos de modernização.126

Considerando o conflito de valores mencionado acima, vale a pena explorar a discussão sobre a classificação dos recursos naturais enquanto capital-natureza, outro contrassenso que aparece na coexistência do capitalismo e da preservação ambiental. A biodiversidade da floresta Amazônica é uma das grandes questões em jogo, desconhecemos sua potencialidade, há muito ainda a ser estudado, porém muitas espécies de plantas e

125 BECKER, B. K. 2009, p. 105. 126 BECKER, B. K. 2009, p. 106.

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animais estão sendo extintas pela cobiça imediatista, mesmo antes de se tornarem conhecidas. A necessidade de legitimar a preservação produziu justificativas pautadas nas vantagens materiais para o bem-estar das pessoas, e como é intrínseco ao capitalismo o movimento de captura que se apropria de qualquer coisa que possa gerar lucros, naturalmente surgiu a demanda de tentar avaliar a riqueza da biodiversidade tropical.

Falar em “capita natural” pressupõe, portanto, uma operação que converte algo que tem valor qualitativo – e como tal é único e incomensurável – em algo cujo valor é quantitativo. Nesse sentido o caso da floresta amazônica poderia fornecer aos economistas uma excelente oportunidade para se verificar se a riqueza ambiental pode tornar-se capital, e como a biodiversidade pode ser integrada ao mercado.127

Frente a dilapidação da biodiversidade pelo desenvolvimento predatório que se estabeleceu na região, vem sendo levantado o argumento de outro tipo de desenvolvimento mais adequado aos novos padrões do capitalismo, estabelecendo uma relação mais positiva entre os valores ambientais e econômicos, especialistas propõem que o incremento da biotecnologia e da engenharia ecológica é uma tendência que conduzirá a uma mudança de paradigma tecnológico. Porém, como coloca Santos, a biotecnologia parece expressar um novo tipo de predação, uma maneira sofisticada e perversa de destruição, submetendo a biodiversidade à lei do mercado.128

[...] embora talvez seja mesmo impossível avaliar a riqueza da biodiversidade brasileira no seu todo, e até mesmo a riqueza de cada uma de suas muitas espécies, é possível pulverizá-la em fragmentos microscópios, apropriar-se de algumas dessas unidades mínimas e conferir-lhes um valor econômico que pode render milhões no mercado mundial. [...] A biotecnologia vem sendo um modo especial de destacar a biodiversidade dela mesma e transformá-la em “capital artificial”! A biotecnologia é o dispositivo através do qual a própria vida é extraída das diversas formas de vida como res nullius e incorporada como matéria-prima num processo industrial que está criando o mais promissor dos mercados: o biomercado.129

127 SANTOS, L. G. 2009, p.135. 128 SANTOS, L. G. 2009, p.137. 129 SANTOS, L. G. 2009, p.138.

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Santos ainda chama a atenção ao fato de que em todos os setores em que a produção moderna envolve plantas e animais, a busca da produtividade conduz à uniformidade e às monoculturas, sendo assim, a biotecnologia é, essencialmente, uma tecnologia promotora de uniformidade de plantas e animais.

No sistema capitalista, como acontece com a cultura, a biodiversidade de uma floresta também pode ser padronizada, e indo além, pode ser patenteada, tornando-se produto exclusivo de uma empresa de alimentos ou de uma marca de medicamentos. Aqui, onde o capitalismo se estabelece nas bordas, os absurdos do mundo contemporâneo vão se desvelando, discursos de conservação da floresta e dos modos de vida tradicionais são vozes dissonantes ao pensamento dominante, parecem uma ameaça ao desenvolvimento econômico da região, e assim sendo, são fagocitados pela lógica do capital e transformados em ideologias preservacionistas mutantes.

Por outro lado, percebo que na cidade isolada, abraçada pela biodiversidade da floresta, existe uma trama manauara de resistência, que reagiu ao longo de sua história e segue sutilmente caboclizando as relações entre capital e biosfera.

Acredito que um dos indícios dessa marca cabocla aparece nas relações de trabalho e na forma que a população encontra de suprir o seu sustento. Manaus, apesar de seu vultoso pólo industrial, apresenta apenas 26% de sua população com vínculo em trabalhos formais, segundo o indicador “Estatísticas do Cadastro Central de Empresas” do IBGE de 2015130; a

grande maioria da população provê sua subsistência a partir de trabalhos informais. A economia informal é aquela em que impostos não são pagos, que não é regulada pelo Estado. O trabalho informal é uma realidade que chama atenção em todas as regiões de Manaus, vendedores ambulantes nos faróis oferecendo os mais diversos produtos, barraquinhas vendendo alimentos a cada esquina, comércios organizados na garagem de casa ou em uma portinha clandestina vendendo artigos regionais. Apesar deste cenário ser comum em muitas cidades, em Manaus a informalidade não surge apenas com o aumento do desemprego ou como uma estratégia de sobrevivência ao sistema capitalista, mas parece ser anterior a esse modelo, a informalidade decorre de um modo de existência própria da vida cabocla.

Entendo que o trabalho informal é inerente à relação do homem com a natureza, da manutenção da vida tendo como alicerce o rio, a várzea, a floresta. Sendo assim, o

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extrativismo, a pesca, a produção agrícola em modestas propriedades ou serviços de transporte fluviais em pequenas embarcações são atividades presentes principalmente nos bairros mais periféricos e nos entornos de Manaus, nas comunidades ribeirinhas e municípios da região metropolitana.

Cleary defende que a economia informal é a chave da compreensão da história moderna da Amazônia, que a grande incidência da economia informal indica que a Amazônia não está avançando para o capitalismo, mas recuando dele. Na Amazônia teríamos ilhas de capitalismo no mar da economia informal. Segundo o autor, parecia que o capitalismo ia ser dominante na região e que a integração física da economia da Amazônia

No documento Corpo em devir Entre a floresta e a cidade (páginas 75-86)