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Competência: imprecisão conceitual e uso massificado do termo No Brasil, o conceito predominante na atualidade é um misto que abarca

2.1. Leitura e Letramento

2.1.10. Competência: imprecisão conceitual e uso massificado do termo No Brasil, o conceito predominante na atualidade é um misto que abarca

significados da tradição francesa, passando pela concepção de Perrenoud e pelas influências da teoria da eficiência social. Nos documentos oficiais as bases epistemológicas bastante diferenciadas aparecem alicerçando uma concepção difusa do termo. Entretanto, a grande força das orientações oficiais sobre a organização da educação, os mais diversos segmentos e diferentes sistemas de ensino, quer sejam públicos ou privados, acabam por reforçar a presença e a difusão do termo entre os educadores, embasando a organização de currículos e a produção de materiais didáticos68. Consequentemente, a forma como a noção de competência é entendida e empregada na educação revelam uma série de imprecisões conceituais e contradições no uso do termo. Como já vimos, são diversos e, por vezes, conflitantes os conceitos de competência surgidos em outros campos e utilizados na educação. Bernstein(1998) chega mesmo a questionar como um conceito que surge no campo intelectual, e cujos autores tenham pouca ou nenhuma relação inicial com a educação, chegou a desempenhar uma função tão fundamental na teoria e na prática educativas (p. 72 apud Dias 2002, p. 50). O próprio

68 Dias (2002, p. 48) afirma que o conceito vem sendo defendido, e até mesmo absorvido pelo vocabulário educacional, sem a consideração das muitas críticas que vêm sendo dirigidas ao seu emprego.

108 Bernstein (1998 apud Dias, 2002, p. 55) denomina de paleta pedagógica a essa mescla de conceitos, com origens e formas distintas, que resultam em novo modelo. Para Dias (2002) a paleta pedagógica é a consequência de uma conjugação de discursos, divergentes entre si, e pode ser resultante da representação e dos embates de diferentes setores da sociedade, nem sempre de forma nítida. No modelo oriundo desta disputa de forças é possível visualizar uma variedade de orientações que, em alguns aspectos, não convergiriam a um mesmo propósito.

Costa (2005) ao fazer um estudo sobre o processo de construção de uma proposta curricular orientada para o desenvolvimento de competências no ensino Noturno na cidade de Betim - região metropolitana de Belo Horizonte - constatou entre os professores que participaram da confecção da proposta grande imprecisão na definição de competência e, por vezes, contradição entre os diversos conceitos por eles elaborados. Nos discursos de alguns professores a conceituação aparece com um sentido vago e genérico, sendo até mesmo comparada com disciplinas, matérias ou fases que devem ser desenvolvidas no aluno. A falta de clareza de muitos para diferenciar habilidades e competências, por exemplo, é corroborada no depoimento abaixo.

A questão da competência e da habilidade69 confunde muito a

cabeça da gente, até hoje eu não tenho muita clareza e não sinto muita diferença. Eu não percebo muita diferença entre o que é competência e habilidade, você desenvolver determinadas competências no aluno para mim é a mesma coisa de estar desenvolvendo habilidades. Eu não vejo muita separação no que o pessoal tenta enfiar na cabeça da gente, eu não consigo ver muito bem isso não. Rita, professora de Inglês. (p. 58).

69 Para Moretto (2005), habilidade está associada ao “saber fazer” algo específico, ou seja, está relacionada a uma ação física ou mental que indica que houve a aquisição de uma capacidade. Deste modo, identificar, relacionar, correlacionar, aplicar, analisar, avaliar, manipular com destreza são verbos que podem indicar alguma habilidade de uma pessoa em determinado campo. Para o Inep as competências são definidas como as modalidades estruturais da inteligência, ou melhor, ações e operações que utilizamos para estabelecer relações com e entre objetos, situações, fenômenos e pessoas que desejamos conhecer. As habilidades, por sua vez, decorrem das competências adquiridas e referem-se ao plano imediato do “saber fazer”. Por meio das ações e operações, as habilidades aperfeiçoam-se e articulam-se, possibilitando nova reorganização das competências. http://www.enem.inep.gov.br/index.php?option=com_content&task=view&id=25&Itemid=55 acessado em 31/05/2008.

109 O estudo de Costa demonstrou que as noções de competência apresentadas pelos professores pesquisados abarcam diversos pressupostos que abrigam elementos subjetivos e objetivos das mais diversas ordens e naturezas. Seria um “guarda-chuva” heterogêneo, formado por um repertório

de recursos composto por conhecimentos, capacidades cognitivas, capacidades relacionais e afetivas (p. 60). Neste contexto, a autora chama

atenção para o fato de que a competência, sendo uma grande categoria que pode abrigar os mais variados “ingredientes” do comportamento individual, camufla uma dúvida conceitual. Esta indefinição do conceito ou da noção de competência acaba assumindo a conotação mais conveniente aos seus usuários de acordo com as necessidades impostas pelo contexto. Paradoxalmente, esta imprecisão conceitual, sobretudo entre os professores de Ensino básico, tem sido responsável pela grande utilização do termo competência.

Por outro lado, apesar das concepções difusas e, por vezes, acríticas de competência, existe, muitas das vezes, uma associação entre educação e mercado produtivo, valorizando apenas os saberes com utilidade imediata no cotidiano. Esta instrumentalização do saber valoriza um ensino sem questionamentos das formas como a sociedade se organiza política, econômica e socialmente e acaba responsabilizando exclusivamente os indivíduos pelo virtual fracasso no seu processo de inserção social. Como afirma Lopes (2001) as competências são definidas como necessárias a cada indivíduo e, se elas não são assimiladas, o fracasso, o desemprego e a exclusão ficam mais relacionados com uma atitude do indivíduo que foi incapaz de adquirir as competências exigidas pelo mercado. Além disso, como afirma Araujo (2001), existe um tratamento utilitário que define a forma de pensar os conteúdos de ensino numa lógica do savoir-faire. Nesse sentido, como afirma Lyotard (2002), há uma valorização do sujeito prático que investe no aumento de sua eficácia e não mais naquele que investe na atualização de seus conhecimentos.

Em suma, o embasamento teórico sobre o processo ensino- aprendizagem da coleção Projeto Araribá: História, apontado nas referências bibliográficas, nos faz crer que os autores alicerçaram-se em documentos oficiais sobre o ensino brasileiro. Neste contexto, a proposta de trabalho

110 consequentemente refletirá concepções diversificadas e de bases epistemológicas diferenciadas. Em determinados momentos quando se afirma que, através da leitura, os estudantes podem interagir com o mundo de forma crítica e autônoma (Guia e Recursos Didáticos, p. 13) ou através dos objetivos gerais do ensino de História, questionar a realidade atual, identificando problemas e apresentando soluções (Guia de Recurso, p. 11), os autores acabam por desvincular-se de concepções que priorizam a formação para adaptação do indivíduo numa sociedade produtiva. Em outras circunstâncias, enfatiza-se de forma cabal o planejamento detalhado e o aproveitamento do tempo, aproximando-se das teorias da eficiência social70 e ainda mantém-se uma concepção linear e descontextualizada do modelo de competência, conforme visto anteriormente, ao desenvolverem uma proposta que se ancora na organização disciplinar.

Perante este quadro de organização curricular predominantemente disciplinar na educação brasileira, acreditamos que seria mais adequada a perspectiva de desenvolver estratégias para a compreensão leitora e o letramento no ensino de História. Como veremos no próximo item, a compreensão leitora e a perspectiva do letramento não é incompatível como o modelo disciplinar. Ao contrário, a partir das bases epistemológicas de cada disciplina é que se busca levar os sujeitos a desenvolver, durante o processo de ensino-aprendizagem, conhecimentos cognitivos e metacognitivos apropriados para a compreensão leitora e o desenvolvimento de uma Estrutura Histórica Utilizável para a interação com os contextos socioculturais onde os conhecimentos históricos são e/ou precisam ser mobilizados.

70 Cada livro de Ciências, Geografia, Português e História tem 8 unidades. A idéia é que cada unidade seja desenvolvida em um mês letivo, com um tempo previsto para a revisão e avaliação do conteúdo (Guia de Recursos, p. 3).

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Capítulo 3