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2.1 DIFERENTES VISÕES E COMPONENTES DA COMPREENSÃO LEITORA

2.1.4 Visão complexa: múltiplos componentes

Vários estudos buscaram investigar outros fatores relacionados à leitura, como velocidade e vocabulário. Joshi e Aaron (2000) testaram a possibilidade de adicionar à fórmula de Gough e Tunmer (1986) a velocidade de leitura (R= D x C + S) como modo de contemplar o nível de fluência. Esse é um fator em adição à decodificação porque parte da hipótese de que a leitura fluente consiste no reconhecimento de palavras à primeira vista, o que implica, conforme os autores, na decodificação de todas as letras de forma simultânea. A tarefa utilizada para verificar a velocidade foi a nomeação de 40 letras do alfabeto por quarenta crianças do 3º ano. Um índice foi calculado por meio da divisão do número total de palavras pelo tempo de nomeação. A adição desse fator à fórmula aumentou em 10% seu potencial de previsão do desempenho em leitura. Os autores denominaram sua proposta de

Modelo Composicional (Componnntial Modnl) e sugerem que o fator velocidade pode ter maior impacto após o 3º ano escolar, o que ainda precisa ser estudado.

Na pesquisa realizada por Muter e colegas (2004), os resultados sugeriram previsores diferentes para o reconhecimento de palavras e para a compreensão. Em um estudo longitudinal, eles analisaram noventa crianças ao longo dos dois primeiros anos de aprendizagem da leitura. Foram testadas suas habilidades fonológicas, morfológicas, gramaticais, conhecimento de vocabulário e letras, reconhecimento de palavras e compreensão leitora. No modelo de reconhecimento de palavras, três foram os fatores precursores: a habilidade prévia no reconhecimento de palavras, o conhecimento de letras e a habilidade fonológica, capazes de prever 88% da variação. No modelo de compreensão leitora, os fatores precursores foram: reconhecimento de palavra, vocabulário e consciência gramatical, respondendo por 86% da variação, sendo os dois últimos significativos mesmo quando o primeiro foi controlado. Os resultados sugerem que a compreensão em leitura vai se tornando mais dependente de fatores semânticos e sintáticos à medida que o reconhecimento de palavras torna-se automático. O trabalho dos autores mostra a importância desses dois fatores para a compreensão leitora que no modelo simples de Gough e Tunmer (1986) passam despercebidos. Nation e colegas (2010) descobriram que LDC mostram fragilidades na língua oral antes mesmo de aprender a ler e essa fragilidade não está associada a habilidades fonológicas, e sim, a habilidades de uso da língua como vocabulário, processamento de sentenças, expressão e compreensão auditiva.

Protopapas e colaboradores (2007) propõem que o vocabulário tem o papel de mediador na relação entre a compreensão e a leitura de palavras, em consonância com a hipótese da qualidade lexical (PERFETTI; HART, 2002), que detalharemos na seção 2.2.1. A partir dessa hipótese, eles testaram crianças de 2º, 3º e 4º ano em vocabulário receptivo e expressivo, acurácia e fluência na leitura de palavra e não palavra, compreensão, acurácia ortográfica e nomeação de letras. Vários modelos foram testados estatisticamente para verificar se a habilidade lexical funciona como mediadora da compreensão. O vocabulário mostrou-se um constante fator de influência ao longo dos três anos escolares, apresentando forte relação com a fluência e a acurácia, exercendo um efeito direto sobre a compreensão conforme vemos na Figura 1. Outros modelos testaram a ligação direta entre compreensão, fluência e acurácia; no entanto, o modelo ilustrado foi o que produziu melhores resultados. Os valores de ligação entre os componentes variam conforme o ano escolar, o 2º e o 3º ano, por exemplo, apresentam valores maiores para a acurácia e a fluência, já o 4º ano, ilustrado na Figura 1, apresenta valor maior para o vocabulário.

Legenda: WD = word accurac5; PD = pseudoword accurac5; SP = spelling accurac5; W1 = word fluenc5; W2 = rapid automatized naming of letters; PW = pseudoword fluenc5; PP = Peabod5 Picture vocabular5; WI = WISC III; C1-C6 = numeração dos seis textos que compuseram a tarefa de compreensão leitora.

Fonte: Protopapas et al. (2007, p. 185).

O modelo dos autores é inovador porque nos faz pensar na relação entre vocabulário e leitura sob uma perspectiva diferente. Por meio da visão simples da leitura, supomos que o vocabulário é contemplado na medida de compreensão auditiva; no entanto, este modelo sugere que o vocabulário exerça influência sobre ambos os componentes da leitura, sobre a compreensão e também sobre a decodificação. Na verdade, a contribuição da decodificação para a compreensão pode ser explicada pelo vocabulário: “porque o vocabulário é mais fortemente correlacionado com a compreensão do que a decodificação, nós poderíamos então dizer que o vocabulário domina a decodificação no cálculo da variação em compreensão em leitura”11(PROTOPAPAS et al., 2007, p. 190). Este modelo, portanto, atribui ao vocabulário

um papel único e fundamental para a compreensão leitora e aponta para a possibilidade de que os dois componentes, decodificação e compreensão auditiva, não apresentem relação tão dissociada, como sugere a visão simples da leitura. À medida que o leitor desenvolve sua habilidade de leitura de palavra, diminui a demanda dos aspectos fonológicos e ortográficos, ao mesmo tempo que aumenta a demanda sobre o aspecto semântico e sobre outros fatores como os metacognitivos. Cabe, ainda, lembrar que medidas de vocabulário escrito também

11 “Because vocabular5 is more strongl5 correlated with comprehension than is decoding, we ma5 thus sa5 that vocabular5 dominates decoding in accounting for variance in reading comprehension,”

Figura 1- Modelo estrutural de predição da compreensão leitora a partir do conhecimento de vocabulário, acurácia e fluência em leitura para o quarto ano escolar

contemplam a decodificação, uma vez que para acessar o significado é preciso antes reconhecer sua forma fonológica e ortográfica.

Na pesquisa de Ouellette (2006) o vocabulário receptivo mostrou associação com a decodificação enquanto a profundidade de vocabulário associou-se à compreensão. Em trabalho posterior, Ouellette e Beers (2010) buscaram esclarecer a relação entre decodificação, reconhecimento de palavras irregulares, compreensão auditiva, vocabulário oral e compreensão leitora. Eles argumentam que na visão simples da leitura não há clareza sobre o que seja o componente decodificação, que parece ser usado para designar o reconhecimento de palavras em geral, nem o componente compreensão auditiva, que pode ser definido como conhecimento linguístico ou conhecimento da língua oral, ficando, portanto, obscura a natureza desses dois construtos. A investigação com sessenta e seis crianças do 1º e cinquenta e seis do 6º ano escolar apontou para a existência de diferentes padrões de relação. No 1º ano, a compreensão leitora apareceu mais relacionada à habilidade fonológica, decodificação e reconhecimento de palavra irregular. Já no 6º, apesar de a habilidade fonológica e o reconhecimento de palavra continuarem mostrando forte correlação, a decodificação não foi significativa, e a extensão do vocabulário contou como fator adicional, explicando 15,3% da variação em compreensão leitora, enquanto a compreensão auditiva explicou apenas 5,8%. Esse resultado se explica devido à complexificação cognitiva das tarefas de leitura ao longo dos anos escolares.

Os autores concluíram que a visão simples da leitura deve ser usada como visão geral, pois uma visão não tão simples é necessária para explicar as relações por eles observadas, considerando três importantes resultados. Primeiro, o componente decodificação parece abranger tanto a decodificação serial quanto o reconhecimento de palavras irregulares. Segundo, o vocabulário mostra relação com a leitura mesmo quando a compreensão auditiva é adicionada anteriormente ao modelo de regressão. Terceiro, a influência da decodificação diminui e a do vocabulário aumenta em relação à leitura. O vocabulário parece adquirir maior força na sua relação com a compreensão leitora ao longo dos anos escolares. Uma possível explicação para isso pode ser a quantidade de palavras que as crianças adquirem a partir do seu contato com a língua escrita (NAGY et al., 1987) e que são muitas vezes utilizadas apenas nessa modalidade.

Uma tentativa mais ousada de identificação dos componentes das habilidades foi realizada por Vellutino e colegas (2007). Eles apresentaram o Modelo de Habilidades Convergentes do Desenvolvimento da Leitura (Convnrgnnt Skills Modnl of Rnading Dnvnlopmnnt), que busca contemplar dez fatores com relações diretas e indiretas. Como se

pode observar na Figura 2, esse modelo é muito mais complexo do que os demais anteriormente apresentados. As duas principais relações continuam sendo as propostas na visão simples da leitura: identificação de palavra independente de contexto e compreensão linguística; no entanto, o que se vê é uma expansão desses dois componentes, na tentativa de explorar suas habilidades constituintes: decodificação fonológica, ortografia, conhecimento semântico, conhecimento sintático, consciência fonológica, análise visual, codificação visual e codificação fonológica. O modelo é desenvolvimental porque nele o coeficiente de relação entre os fatores varia conforme a idade: os coeficientes acima são relativos a leitores jovens de 2º e 3º ano e os coeficientes dispostos abaixo são de leitores mais velhos de 6º e 7º ano (ver Figura 2). Ambos são hipotéticos. Os autores sugerem que as habilidades fonológicas e visuais estão entre as habilidades cognitivas mais básicas relacionadas ao aprendizado da leitura.

Fonte: Vellutino et al. (2007, p. 6).

Vemos nesse modelo que o conhecimento semântico aparece diretamente ligado à compreensão linguística, mas não à compreensão leitora, com a qual se conecta indiretamente através da habilidade ortográfica e da identificação de palavra. O que antes foi chamado de

extensão e profundidade de vocabulário aparece aqui distribuído em vários aspectos. Figura 2- Modelo de habilidades convergentes do desenvolvimento da leitura

A validade do modelo foi testada com crianças de 2º e 3º ano, bem como de 6º e 7º ano escolar. O modelo mostrou-se adequado no que tange à ligação entre os componentes e à variação de pesos conforme as diferenças de idade. A maioria dos coeficientes provou-se significativa. Os resultados estão de acordo com a visão simples da leitura, mostrando independência dos componentes identificação de palavra e compreensão linguística e inversão na importância deles ao longo do desenvolvimento da leitura. No entanto, apontam para outro importante fator, o conhecimento semântico, que se mostrou significativo não só no 6º e 7º ano, mas também no estágio inicial da leitura. O conhecimento sintático, ao contrário das expectativas, não foi significativo em nenhum grupo, o que é atribuído pelos pesquisadores a limitações na sua forma de avaliação. As habilidades do nível da palavra exibiram coeficientes menores do que os previstos nos leitores mais velhos. A codificação fonológica e a identificação de palavra exibiram relação indireta sendo possivelmente mediada por outros fatores como consciência fonológica, ortografia e decodificação fonológica. Na tentativa de redução das diferenças entre os valores previstos e os averiguados nos resultados, os pesquisadores produziram modelos derivados; todavia, o modelo original foi o que produziu melhor adequação estatística, apesar das limitações.

Além de fatores linguísticos, há estudos que investigam o efeito de fatores cognitivos e sociais sobre a leitura. Cutting e Scarborough (2012) propõem expandir o modelo simples da leitura subdividindo a compreensão em diversos componentes como demonstra a Figura 3.

Figura 3 - Modelo simples da leitura expandido

Diferentemente dos demais modelos citados anteriormente esse é hipotético e necessita ainda ser investigado. O modelo ilustra claramente quais componentes a compreensão de texto auditivo e escrito compartilham e quais são os específicos de cada uma delas. Nessa proposta também são elencados alguns componentes cognitivos como as funções executivas. Os autores defendem que o modelo simples da leitura é falho enquanto guia para a localização das dificuldades de compreensão leitora porque considera a compreensão como habilidade indivisível. Todavia, a proposta de subdivisão em componentes pode facilitar o diagnóstico e a intervenção das dificuldades de leitura.

Outro modelo relevante é o DIME (Dirnct and Infnrnncial Mndiation) de Cromle5 e Azevedo (2007) que incorpora às variáveis linguísticas, vocabulário e leitura de palavras, três variáveis cognitivas: conhecimento prévio, inferência e estratégias. A pesquisa com 175 estudantes de Ensino Médio (9º ano) mostrou a adequação do modelo, capaz de explicar até 66% da variação em compreensão. Todas as variáveis, exceto as estratégias, apresentaram efeito significativo direto sobre a compreensão leitora. O uso de estratégias mostrou efeito significativo somente quando mediado pela inferência. A variável de maior efeito sobre a compreensão foi o vocabulário, que exibiu tanto relação direta quanto indireta mediada pela inferência; a segunda de maior efeito foi o conhecimento prévio. A investigação revelou ainda que os LDC tiveram desempenho abaixo da média nos cinco componentes. A partir desses resultados, os autores sugerem que intervenções tenham como foco o vocabulário e o conhecimento prévio. Em concordância com os outros modelos descritos, mais uma vez o vocabulário aparece como importante fator para o desempenho em compreensão leitora.

Um estudo com leitores brasileiros pesquisou a influência de fatores tanto sociais quanto cognitivos sobre a leitura. Corso (2012) examinou a relação entre compreensão em leitura e cinco fatores: leitura de palavra, inteligência, funções executivas, memória de trabalho e nível socioeconômico. Para a construção do modelo foi realizada uma pesquisa experimental com 110 estudantes de 4ª, 5ª e 6ª séries do Ensino Fundamental. Memória de trabalho e funções executivas foram testadas como um único fator e como dois fatores separados nos modelos criados. Os resultados apontaram para maior adequação de um único fator. No modelo mais adequado, as funções executivas aparecem como mediadoras da relação entre nível socioeconômico e compreensão leitora, bem como da relação entre nível socioeconômico e inteligência. A pesquisa de Corso (2012) aponta para a importância de se incluir em modelos de compreensão leitora funções cognitivas superiores e componentes sociais.

Os estudos que aqui citamos apontam para a relevância de diversos fatores na compreensão leitora. Da visão mais simples à mais complexa, vemos importantes contribuições e limitações, sendo que ainda estamos longe de um acordo sobre quais sejam os componentes da compreensão leitora. Esta seção buscou apresentar o panorama das principais perspectivas de conceituação da leitura e seus componentes. Na próxima seção, construiremos a perspectiva por meio da qual analisaremos a compreensão em leitura nesta tese.

Uma importante lacuna nos estudos citados é a desatenção para com as características próprias da modalidade escrita. Parece-nos que, após dominar o código escrito, o processo de decodificação, o maior desafio dos leitores é dominar a língua escrita. Perfetti (1985) aponta para o problema da descontextualização, ou seja, a ausência de contexto situacional que guie a compreensão linguística. O uso da língua oral é altamente dependente do contexto em que ocorre a interação. O fato de conhecermos nosso interlocutor nos provê um grande número de informações que ajudam a prever e interpretar o sinal linguístico. Na escrita, raramente sabemos a identidade do escritor e não temos a possibilidade de questioná-lo, de observar seus gestos, movimentos, expressões, tom de voz e demais manifestações pragmáticas, o que deve ser suprido por habilidades de compreensão como a inferência.

Além do problema da descontextualização, entendemos que outro grande desafio ao leitor aprendiz é a língua escrita em sua estrutura e especificidade léxico-semântica. Mais do que na leitura, no exercício da escrita a diferença entre as duas modalidades se torna mais visível. Ao observar os estudantes durante o processo de escrita de textos, vemos o quanto é difícil para eles entender que não escrevemos da forma como falamos: não só a seleção das palavras é diferente, mas a forma como são dispostas. E como se não bastasse, temos que adequar esses usos aos diversos gêneros textuais, sendo alguns mais próximos e outros mais distantes da modalidade escrita (MARCUSCHI, 2001). A transição do texto narrativo para o expositivo na escola é um exemplo dessas diferenças. O narrativo é mais semelhante à fala, mesmo considerando seu vocabulário mais denso, pois estamos diariamente contando histórias, fatos e acontecimentos. Já o expositivo possui uma estruturação pouco natural, a qual dificilmente utilizamos na fala cotidiana. Enfim, percebemos que, de maneira geral, os fatores referentes à modalidade linguística e ao texto recebem pouca atenção das pesquisas citadas que buscaram identificar os aspectos que interferem na compreensão leitora. Cabe lembrar que o aprendizado da leitura requer o ensino da correspondência grafema-fonema, bem como da modalidade escrita da língua e seus gêneros. Estudos multidisciplinares com a colaboração de áreas como psicologia cognitiva, psicolinguística e linguística textual poderiam explorar as diferenças entre a compreensão da língua oral e escrita, trazendo, assim,

importantes contribuições para a construção dos modelos de compreensão leitora. Detalhamos a seguir o modelo adotado nesta tese.