• Nenhum resultado encontrado

2.2 DA PALAVRA À COMPREENSÃO DO TEXTO

2.2.1 Leitura de palavras

Não nascemos com o cérebro pronto para ler, afirma Dehaene (2012). O sistema visual humano não está preparado para o reconhecimento de letras. Conforme a hipótese da reciclagem neuronal, os neurônios da região responsável pelo reconhecimento de faces são reciclados, assumindo uma tarefa diferente da sua original e se especializando no reconhecimento de letras. Para isso, os neurônios da região occípito temporal esquerda precisam aprender a dissimetrizar e a reconhecer a diferença de posição dos traços dispostos à esquerda e à direita. Segundo o autor, só assim será possível reconhecer letras como p e q, b e d, pares formados por traços idênticos que se distinguem apenas na sua disposição lateral. Dehaene (2012) explica que os traços que compõem as letras: horizontal, vertical e ângulo, têm sua origem em protoletras, que seriam como um alfabeto primitivo em nosso cérebro em que estocamos padrões de formas recorrentes na natureza.

Apesar de reconhecermos letras de forma isolada, seu reconhecimento dentro de uma palavra é mais rápido e facilitado. Reicher (1969) descobriu, em seu clássico experimento, que as letras são identificadas mais rapidamente quando estão combinadas formando palavras do que quando estão isoladas ou dentro de não palavras. Esse efeito, chamado de efeito de superioridade da palavra, desmistifica a visão de que a unidade mínima de reconhecimento da palavra, em leitores proficientes, seja a letra. A partir desse estudo, novos modelos foram propostos considerando o efeito do contexto, como o Modelo de Ativação Interativa de McClelland e Rumelhart (1981), ilustrado na Figura 5, que tenta simular e explicar como ocorre o reconhecimento de letras levando em conta esse efeito.

Fonte: McClelland e Rumelhart (1981, p. 380).

De acordo com o modelo, primeiramente, percebemos os traços que compõem as letras. Em seguida, identificamos as letras correspondentes e então as palavras. No entanto, muitas vezes o cérebro não precisa realizar esse processo passo a passo. Conforme a quantidade de informação disponível, ele é capaz de antecipar a palavra sem que seja necessário processar cada traço e letra. Isso ocorre principalmente com palavras que possuem poucos vizinhos ortográficos, isto é, que têm ortografia semelhante. Dessa forma, é provável que o reconhecimento de ‘água’ seja mais rápido do que de ‘bala’ (fala, cala, gala, mala, pala, rala, sala, tala). Isso ocorre porque cada unidade componente dos três níveis de informação: traços, letras e palavra, é representada por um nó na rede ligada por meio de conexões excitatórias ou inibitórias com seus vizinhos. A ativação de um nó se espalha e provoca a ativação ou inibição de nós dos demais níveis, de forma que o processamento ocorre em ambas as direções, ascendente (bottom-up) e descendente (top-down), de forma paralela e simultânea, permitindo, assim, que o nível lexical influencie o processo em níveis inferiores desde o estágio inicial.

Estudos sobre o movimento dos olhos comprovam que, de fato, durante a leitura não focamos cada letra ou palavra. Nossos olhos são capazes de perceber sete a nove letras por

sacadas14. As palavras que recebem fixação são geralmente de conteúdo: substantivos, verbos

e adjetivos; as demais, como artigos e preposições, são menos importantes, sendo rapidamente processadas. Just e Carpenter (1980) estimaram que em torno de 80% das palavras de conteúdo recebem fixação. O tempo de fixação varia conforme a extensão, frequência e compreensão da palavra no contexto, portanto, evidencia o esforço cognitivo empreendido no processamento léxico-semântico. O registro dos movimentos de retorno é uma ferramenta útil para a pesquisa dos processos envolvidos na leitura, pois pode indicar dificuldade ou facilidade não só no reconhecimento da forma, mas também na construção do significado.

O conhecimento da ortografia das palavras e a experiência acumulada na prática da leitura tornam o processo de reconhecimento progressivamente mais rápido, sendo a percepção guiada pelo conhecimento que temos das palavras, não só de seus traços ortográficos, mas também semânticos e sintáticos. Além do contexto lexical, níveis superiores de informação exercem um considerável efeito. O modelo textual e situacional, como veremos adiante, bem como o objetivo da leitura, são exemplos de informações superiores que podem exercer influência no reconhecimento de palavras. Podemos observá-los atuando quando, por exemplo, vemos palavras que não estão no texto, ou porque fazem mais sentido do que a original, ou porque são semelhantes.

Segundo a hipótese da qualidade lexical (PERFETTI; HART, 2002), a eficiência na identificação de palavras depende da qualidade da representação lexical composta por três aspectos linguísticos: ortográfico, fonológico e semântico. A representação semântica reúne tanto a informação conceitual quanto a sintática. A qualidade da representação, ilustrada na Figura 6, é definida não só pela extensão com que cada constituinte é detalhado (ortográfica e fonologicamente) e diferenciado (semântica e sintaticamente), mas também pela concatenação das ligações entre os constituintes. Perfetti (1992) entende que a informação fonológica é sempre ativada no acesso lexical e que os demais aspectos podem se ativar reciprocamente. Sendo assim, a leitura automática e eficiente só é alcançada com um conhecimento lexical consolidado e interconectado. A qualidade da representação lexical se desenvolve seguindo dois princípios: precisão e redundância. A precisão consiste em representações completas que são autossuficientes no reconhecimento da palavra. A redundância ocorre quando os níveis fonológicos e ortográficos se sobrepõem fornecendo informações idênticas que automatizam o acesso lexical. Mais recentemente, Perfetti (2007) acrescenta o princípio da flexibilidade considerando que juntamente com o aspecto semântico está representado o conhecimento do

14 Movimentos oculares realizados durante a leitura. Podem ser de três tipos: progressivos, regressivos ou de fixação (KLEIN; BULLA, 2010).

uso da palavra, o significado com seus traços pragmáticos. A flexibilidade é um princípio de qualidade fundamental para que ocorra a integração entre a palavra e o texto.

Fonte: Perfetti e Hart (2001b, p.70).

A forma como esses três aspectos lexicais interagem durante o reconhecimento de palavras é ainda controversa. Na tentativa de explorar a questão, têm se desenvolvido basicamente dois tipos de modelo, os de rota única e os de rota dupla. No primeiro há apenas uma rota de reconhecimento de palavras em que todos os níveis de informação participam. No segundo, há dois possíveis caminhos, com ou sem mediação fonológica.

No modelo de Coltheart e colegas (1993), os aspectos fonológicos e ortográficos exercem diferentes funções, originando duas rotas de leitura distintas. Na rota indireta, o reconhecimento da palavra ocorre através do acesso à informação fonológica. Já na rota direta ocorre o acesso direto à informação semântica, sem a mediação fonológica. A primeira é utilizada principalmente para a leitura de palavras desconhecidas e pseudopalavras. A segunda, para a maioria das palavras conhecidas e irregulares. De acordo com esse modelo,

portanto, a automatização da decodificação permite o reconhecimento de palavras sem que haja a necessidade de acesso à informação fonológica, como podemos verificar na Figura 7.

Fonte: Coltheart et al. (1993, p. 596).

Tal estrutura é capaz de simular o comportamento de leitores disléxicos. Na dislexia de superfície a rota lexical apresenta problemas, enquanto a rota fonológica funciona bem. Nesse caso, o leitor é capaz de ler palavras regulares e pseudopalavras, mas apresenta dificuldades na leitura de palavras irregulares. Na dislexia profunda ocorre o inverso. A rota fonológica possui problemas, enquanto a lexical apresenta bom funcionamento. Assim, o leitor consegue ler palavras irregulares e familiares, mas não lê palavras desconhecidas e pseudopalavras.

O modelo de Harm e Seidenberg (2004), derivado do Reconhecimento de Palavra e Nomeação (SEIDENBERG; MCCLELLAND, 1989), executa uma única rota em que todos os

níveis de informação trabalham cooperativamente, diferenciando-se dos demais por buscar simular a leitura compreensiva, ou seja, não tem o objetivo de simular o reconhecimento de palavra ou a leitura em voz alta, tarefas que podem ser realizadas com ou sem texto. Os pesquisadores o descrevem como sendo o “primeiro modelo em larga escala a abordar como o significado é computado em um sistema no qual tanto a rota visual (ortográfica-semântica) quanto a fonológica mediada (ortográfica-fonológica-semântica) estão disponíveis.”15

(HARM; SEIDENBERG, 2004, p. 663). Segundo Landi (2012), o modelo pode ser considerado como uma implementação computacional da hipótese da qualidade lexical que antes descrevemos. Na Figura 8, podemos ver a semelhança.

Figura 8 - Modelo triângulo de Seidenberg e McClelland (1989) implementado para a leitura compreensiva com cooperação entre informação ortográfica e fonológica

Fonte: Harm e Seidenberg (2004, p. 663).

Vemos os três níveis de representação da palavra interligados e sendo influenciados pelo contexto. O sistema é homogêneo na sua estrutura, constituído de representação distribuída e ativação propagada. Em outras palavras, a ativação em um nível espalha-se, provocando a ativação dos demais, o que resulta em uma única rota de leitura. Assim, segundo esse modelo, a leitura de palavras envolve o processamento de três tipos de informação: fonológica, ortográfica e semântica, podendo também ser influenciada por fatores

15 “First large-scale model to address how meaning is computed in a s5stem in which both visual (orth–sem) and phonologicall5 mediated (orth–phon– sem) pathwa5s are available.”

contextuais provenientes de restrições sintáticas, semânticas e pragmáticas. Os componentes ortográfico e fonológico não são independentes, logo, trabalham em cooperação. As simulações desenvolvidas pelos pesquisadores seguiram as etapas da aquisição da linguagem, tendo sido primeiro implementada a conexão fonológica-semântica, para depois ser introduzida a ortográfica.

Ao invés de postular a ativação da forma e depois a busca e seleção de seu significado em uma memória como o léxico mental, que forneceria o mapeamento da forma e do significado, esse modelo propõe que o léxico esteja distribuído na rede de conexões desses três componentes, portanto, não há acesso e seleção lexical de forma sequencial, em etapas. A própria palavra é a unidade, o elemento integrador, e o léxico por sua vez não é um estoque passivo, mas a própria rede de interfaces.

A hipótese da qualidade lexical semelhantemente pressupõe que haja uma constante interação entre os três níveis de informação, ocorrendo acesso fonológico mesmo após a automatização da decodificação. Perfetti e colegas (2005b, p. 46) entendem a identificação de palavras como “a recuperação de um objeto fonológico e seus componentes não fonológicos associados”16. Assim, a informação fonológica é concebida como parte constituinte da

identidade da palavra e por isso é ativada mesmo na leitura silenciosa. Os pesquisadores propõem o princípio fonológico universal que reconhece a importância fonológica a todos os sistemas de escrita, embora em graus diferentes.

O acesso à informação semântica também é um tópico debatido, embora pouco explorado pela maioria dos modelos computacionais de reconhecimento de palavra. Algumas pesquisas como a de Gernsbacher (1984) mostram que a familiaridade é o fator de maior influência no reconhecimento de palavras e não o semântico, enquanto outras pesquisas como a de Kellas et al. (1988) encontraram interferências semânticas no reconhecimento. Balota e colegas (1991) fazem uma revisão de estudos sobre a temática e concluem que mesmo no reconhecimento de palavras isoladas, ocorre interação semântica. Além disso, pontuam problemas metodológicos em várias investigações que mostraram o contrário. Segundo os estudiosos, os principais indícios dessa interferência são encontrados em investigações com palavras concretas versus abstratas e com palavras ambíguas. Palavras concretas tendem a ser reconhecidas mais rapidamente que palavras ambíguas. O número de significados de uma palavra é previsor da velocidade de seu reconhecimento, ou seja, palavras polissêmicas tendem a ser reconhecidas de forma isolada mais rapidamente tanto em tarefas de decisão lexical quanto de pronúncia. Da mesma forma, palavras associadas semanticamente são mais

rapidamente reconhecidas do que palavras não associadas. Por fim, outro dado relevante apresentado na revisão dos autores é a existência de acesso semântico em tarefas de priming mascarado quando os estímulos são apresentados em 10 ou 15 milissegundos (ms.), de forma que os participantes não os identificam conscientemente, o que prova que a informação semântica é acessada em um estágio anterior até mesmo ao da identificação lexical.

Pesquisas com neuroimagem também postulam a existência de interação entre os três níveis de representação. A Figura 9, proposta por Landi (2012), mostra três prováveis sistemas corticais envolvidos na leitura de palavras.

Figura 9 - Esquema da função hipotética de sistemas corticais na leitura de palavras

Fonte: Landi (2012, p. 25).

Os três sistemas apresentados correspondem à hipótese da qualidade lexical. O sistema ventral é responsável pela identificação da forma da palavra, o sistema dorsal faz o mapeamento ortográfico-fonológico-semântico e o sistema anterior é necessário para a pronúncia da palavra, podendo também ser ativado por subvocalização.

O processo da leitura demanda mais do que apenas identificar a forma ortográfica das palavras: é preciso também acessar seus sons e significados. Sendo assim, o aprendizado da leitura consiste inicialmente na decodificação das letras em seus sons correspondentes, o que

se dá pelo ensino explícito da correspondência entre fonema e grafema (MORAIS, 1996; DEHAENE et al. 2015), que permite o mapeamento da forma fonológica de uma palavra em sua forma ortográfica a partir da qual se tem acesso ao significado. É possível observar as mudanças que ocorrem no cérebro com o aprendizado da leitura. Brem e colegas (2010) descobriram que, antes da alfabetização, o cérebro trata as letras da mesma forma que os demais ícones, mas após o treinamento na correspondência fonema-grafema o cérebro começa a responder de forma mais rápida e diferenciada às letras, sendo a região occípito temporal esquerda a área recrutada para essa tarefa. Com a prática, a tarefa antes cansativa de decodificar letras em sons torna-se automática, demandando progressivamente menos esforço cognitivo. A automatização reflete-se claramente no comportamento e no cérebro do leitor, beneficiando-se enormemente do contexto como explicamos a seguir.