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4.1 O pensamento multirreferencial como abordagem teórica

A teoria que orientará o percurso desta pesquisa será a abordagem multirrefe- rencial, respeitando a complexidade do objeto de estudo deste projeto de pesquisa – a formação de jovens e adultos (as) e as políticas de permanência estudantil na Educação Básica, objeto que requer uma análise plural, a partir de uma escuta dos diferentes segmentos da EJA, e em diálogo com referenciais teóricos que são articu- lados a fim de permitir uma maior compreensão do fenômeno.

Macedo (1998) considera que Ardoino reconhece a impossibilidade de se pensar o conhecimento como algo acabado, completo; desse modo, o fenômeno a ser investigado convoca uma análise que não fragmente a realidade ao decompô-la artificialmente. É o que se propõe fazer a abordagem multirreferencial.

Ana Urpia (2014), destaca que a noção de multirreferencialidade foi desenvol- vida por Jacques Ardoino desde os anos 50/60 do século XX, na França. Coulon (1995), considera que a multirreferencialidade se constitui na conjuga- ção/interlocução de várias perspectivas, com o intuito de superar “[...] o limite das disciplinas monorreferenciais a fim de ter acesso a uma inteligibilidade mais perfeita dos fenômenos estudados [...]” (COULON, 1995, p. 54).

Martins (2004) afirma que a multirreferencialidade pode ser considerada como uma (entre várias) resposta às críticas que são dirigidas aos modelos científicos concebidos a partir do racionalismo cartesiano e do positivismo comteano

Ardoino (1986) considera que a multirreferencialidade constitui uma perspec- tiva de compreensão da realidade mediante a observação, investigação, escuta, descrição por espectros e sistemas de referências diferentes, mas, acima de tudo, irredutíveis uns aos outros e explicitados por linguagens diferentes.

Ardoino (1986) argumenta que a análise multirreferencial das situações, das práticas, dos fenômenos, se propõe a uma leitura plural, sob diferentes ângulos, e em função de sistemas de referência distintos (psicológico, sociológico, antropológi- co), os quais não podem reduzir-se uns aos outros. Para Ardoino (1986), as relações sociais nos convocam para uma outra análise hermenêutica e que não se mutile a realidade que se quer interpretar/compreender/explicitar.

[...] a análise multirreferencial das situações das práticas dos fenômenos e dos fatos educativos se propõe explicitamente uma leitura plural de tais ob- jetos, sob diferentes ângulos e em função de sistemas de referência distin- tos, os quais não podem reduzir-se uns aos outros. Muito mais que uma po- sição metodológica, trata-se de uma decisão epistemológica.

Desse modo, Ardoino (1995) ressalta que a multirreferencialidade como uma abordagem investigativa pressupõe mais que uma proposição metodológica, diz respeito a uma opção epistemológica. Propõe mais que uma justaposição de olhares disciplinares, mas a capacidade de levar em consideração a perspectiva dos diver- sos atores sociais envolvidos no fenômeno sob análise, bem como de articular dife- rentes, porém não incongruentes perspectivas teóricas. O conhecimento produzido por esta postura seria um conhecimento “[...] 'tecido' (bricolado): ele se estabelece a partir da convergência, ou melhor, da convivência, do diálogo, trans, pluri, interdisci- plinarmente.” (MARTINS, 1988, p. 23 apud URPIA, 2014, p. 45).

SegundoUrpia (2014), a abordagem multirreferencial de Ardoino (1986, 1998, 2000) envolve três espectros: a multirreferencilidade de compreensão, no domínio da aproximação clínica, a partir do que se desenvolvem as demais, a saber: multirre- ferencialidade interpretativa, exercida igualmente no interior das perspectivas e prá- ticas dos (as) atores (atrizes), visando certo tratamento desse material; e a multirre- ferencialidade explicativa ou de explicitação, mais pluri ou interdisciplinar e orientada para a produção do saber, desenvolvida mediante a heterogeneidade das multirrefe- rencialidades compreensivas e interpretativas de uma parte, ligadas à escuta, e à multirreferencialidade explicativa, organizada com base em referenciais, irredutíveis uns aos outros, contudo articulados a fim oferecer uma leitura plural, sob diferentes ângulos, e em função de sistemas de referência distintos.

Para início de conversa, Macedo (2015) nos convida a compreender o signifi- cado da palavra compreensão, que vem do latim praetenere, “nesse sentido, com- preender é apreender em conjunto, é (re)criar relações, englobar, integrar, unir; combinar; conjugar; (re)criar entendimentos e, com isso, qualificar a atitude atentiva e de discernimento do que nos rodeia e de nós mesmos, para aprender o que entre- laça elementos (MACEDO, 2015, p. 92).

Algumas pessoas, ao se referirem à Educação de Jovens e Adultos, costu- mam afirmar que “a EJA é problemática”. Considero uma simplificação tal afirmação;

prefiro ponderar que atuar na EJA é um campo complexo. Nesse sentido, parto da concepção de complexidade assumida por Morin (1982, p. 221), segundo o qual,

a complexidade é uma noção cuja primeira definição não pode deixar de ser negativa: a complexidade é aquilo que não é simples. O objeto simples é o [...] que pode ser concebido como uma unidade elementar indecomponível. A noção simples é a que permite conceber este objeto de forma clara e distinta, como uma entidade isolável do seu ambiente. [...] A causalidade simples é a que pode isolar a causa e o efeito e prever o efeito da causa segundo um es- trito determinismo. O simples exclui o complicado, o incerto, o ambíguo, o contraditório. Os fenômenos simples correspondem a uma teoria simples. To- davia, pode-se aplicar a teoria simples a fenômenos complicados, ambíguos, incertos. Faz-se então simplificação. O problema da complexidade é o que é levantado por fenômenos não redutíveis aos esquemas simples do observa- dor. É certo, pois, supor que a complexidade se manifestará primeiro, para este observador, sob forma de obscuridade, de incerteza, de ambiguidade e até de paradoxo ou de contradição.

É interessante atentar que ao mesmo tempo que Morin afirma que a comple- xidade é a negação da simplicidade, afirma que ela também não se reduz à compli- cação. Para Morin (2011, p. 69),

não se pode compreender nenhuma realidade de modo unidimensional. A consciência da multidimensionalidade nos conduz à ideia de que toda visão unidimensional, toda visão especializada, parcelada, é pobre. É preciso que ela seja ligada a outras dimensões; daí a crença de que se pode identificar a complexidade com a completude.

Esse mesmo autor afirma ainda que “[...] estamos condenados ao pensamen- to incerto, a um pensamento trespassado de furos, a um pensamento que não tem nenhum fundamento absoluto de certeza.” (MORIN, 2011, p. 69).

Nas palavras de Macedo (2015, p. 91),

O encontro com os saberes da experiência se realiza quando acolhemos a experiência compreensivamente. Só acolhendo compreensivamente a expe- riência acessamos os saberes da experiência e realizamos (objetivamos) nossa experiência compreensiva, aí está a objetivação pretendida por uma pesquisa da/com a experiência, prática que a etnopesquisa se esmera em realizar como um processo de objetivação de sua caminhada heurística.

Partindo de uma linha de investigação inspirada na etnografia, adotada nesse projeto de pesquisa, compreende-se a análise do corpus de conhecimentos (MA- CEDO, 2010, p. 136) produzido durante todo o processo de investigação como um movimento constante do início ao fim, que se densifica, formando um conjunto de conhecimentos.

Para Macedo (2012, p. 92), “[...] o saber criado emerge de uma recontextuali- zação, de um entre-nós, de um entre-dois, da intercrítica compósita, híbrida, constru- ída pelo etnopesquisador, fazendo esforços para evitar conclusões integrativas e assimilacionistas.” Acreditamos, a partir dessa perspectiva formativa da pesquisa, que o (a) ator (atriz) social não é anulado (a) pelo (a) pesquisador (a), mas é produ- zido nesse encontro, diálogos compreensivos que potencializam tanto o (a) partici- pante da pesquisa quanto o (a) pesquisador (a).

Creio que analisar a complexidade do campo da EJA requer uma leitura do fenômeno a partir de diferentes perspectivas, a partir da compreensão de diferentes sistemas de referência. Inspirada nessa perspectiva, intento nesse capítulo compre- ender os relatos do campo a partir de uma postura de reflexividade, requerido pelo objeto de estudo, a partir de vários referenciais. Assim, a escuta aos (às) estudantes da Educação de jovens e Adultos de duas escolas públicas estaduais se constituí- ram em momentos importantes da pesquisa, bem como a escuta dos (as) profissio- nais dessas escolas, através dos diálogos formativos.