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2 A VIOLÊNCIA CONTRA A CRIANÇA

2.1 Compreendendo o abuso sexual infantil intrafamiliar

Nas diversas conceituações sobre abuso sexual infantil, três aspectos em comum estão presentes: a impossibilidade do consentimento da criança que, pela própria fase do desenvolvimento, não tem condições de decidir ou de compreender a natureza do ato; a finalidade de obter estimulação sexual para o adulto; o abuso do poder do adulto sobre a criança, cujo ato nem sempre é facilmente identificável por provas físicas (PADILHA; GOMIDE, 2004).

A imprecisão dos dados estatísticos é um problema mencionado por quase unanimidade dos autores que pesquisam o tema no Brasil, entre eles Pfeiffer e Salvagni (2005) e Aded et al. (2006). Para Duarte (2008, p. 26), “[...] uma em cada quatro mulheres brasileiras sofre algum tipo de violência sexual antes dos 18 anos, em 90% dos casos praticada por pais, padrastos e irmãos”. Habigzang et al. (2005) mencionam que em 57,4% dos casos o abusador é o pai e em 37,2% o padrasto ou pai adotivo da vítima.

A idade das vítimas no início dos abusos concentrou-se dos 05 aos 10 anos (36,2%), seguida da faixa dos 10 a 12 anos (19,1%), com 10,6% dos casos atingindo crianças entre 02 e 05 anos (HABIGZANG et al., 2005). Essas autoras assinalaram que a maioria das crianças frequentava o Ensino Fundamental no começo das situações abusivas.

Inoue e Ristum (2008), analisando casos de violência sexual identificados em escolas da cidade de Salvador/BA, mencionam que a maioria das vítimas (77,27%) era menor de 12 anos, e as idades de maior incidência eram 05 anos (27,72%) e 09 anos (18,18%).

O ASII faz vítimas de ambos os sexos, e crianças com necessidades especiais, físicas ou mentais, são mais vulneráveis, pelo maior grau de dependência e de dificuldade para se protegerem ou buscarem ajuda (DUARTE, 2008; PFEIFFER; SALVAGNI, 2005).

Alguns indícios sugerem a possibilidade de abuso sexual, como os sinais físicos: dores ao urinar ou evacuar; dificuldade para sentar e andar; manchas roxas pelo corpo, principalmente coxa e pescoço; doenças sexualmente transmissíveis; sangramento. Além desses, existem também os sinais emocionais: inquietação; isolamento; comportamento sexualizado precoce ou exacerbado; resistência em realizar exames médicos; fugas de casa ou resistência em retornar; agressividade; mudanças repentinas de comportamento; comportamento regredido; dificuldades no sono, na aprendizagem; transtornos alimentares; sentimento intenso de insegurança, medo, culpa; dificuldades no relacionamento com adultos (ADED et al., 2006; PEDROSA et al., 2002)

As repercussões podem atingir diversas áreas e períodos do desenvolvimento; algumas perduram ao longo da vida, e dependem, entre outros fatores: do grau de violência sofrida; da idade da criança no início dos atos abusivos; da duração, frequência e tipo do abuso; do vínculo com a pessoa que cometeu a violência; da diferença de idade entre a pessoa que cometeu o abuso e a idade da criança; da capacidade de resiliência da criança, o apoio afetivo e social durante e após a revelação; acompanhamento posterior; presença de outras figuras parentais protetoras, de acordo com autores como Ferreira e Azambuja (2011), Bassols et al. (2011) e Furniss (2002). Para esses autores, o ASII pode ter efeitos devastadores, mas algumas crianças, embora possam evidenciar sofrimento e confusão, não apresentam sequelas prolongadas.

O ASII pode propiciar o surgimento de quadros como ansiedade, depressão, ideação suicida, transtorno do estresse pós-traumático e outras manifestações psicopatológicas; além de queixas somáticas, agressividade, abuso de álcool e outras drogas, prejuízo cognitivo e no desempenho escolar (BASSOLS et al., 2011). Faleiros (2000, p. 10) esclarece que a violência sexual:

 deturpa as relações socioafetivas e culturais entre adultos e crianças/adolescentes ao transformá-las em relações genitalizadas, erotizadas, comerciais, violentas e criminosas;

 confunde nas crianças e adolescentes violentados, a representação social dos papéis dos adultos, descaracterizando as representações sociais de pai, irmão, avô, tio, professor, religioso, profissional, empregador, quando violentadores sexuais, o que implica a perda da legitimidade e da autoridade do adulto e de seus papéis e funções sociais;

 inverte a natureza das relações adulto/criança e adolescente definidas socialmente, tornando-as desumanas em lugar de humanas; desprotetoras em lugar de protetoras; agressivas em lugar de afetivas; [...] desestruturadoras em lugar de socializadoras;

 confunde os limites geracionais.

Os abusos de longa duração geralmente se desenvolvem de forma repetitiva, insidiosa e a criança inicialmente pode não identificar como violência. O abusador, de modo sedutor, transmite à criança a ideia de que é algo comum no relacionamento ou acontece porque ela é especial. Diante das abordagens gradualmente mais abusivas, a criança pode experimentar sentimentos de confusão e insegurança que às vezes perduram por muito tempo, dependendo do seu amadurecimento e do canal de diálogo e apoio estabelecido com outras figuras parentais. Com o tempo, o abusador utiliza outras estratégias, invertendo os papéis, impondo à vítima a culpa pela situação do abuso, diminuindo a autoestima da criança e a crença de que seu relato seja acreditado. Além disso, o abusador frequentemente usa ameaças, veladas ou diretas, dirigidas a ela ou a outras pessoas da família, exigindo-lhe silêncio (PFEIFFER; SALVAGNI, 2005).

Furniss (2002) assinala que no ASII, ao procurar carinho, a criança encontra sexo e pode não saber diferenciar. Em algumas situações, se os demais cuidadores são emocionalmente distantes, a criança pode perceber o abuso de forma distorcida. As pessoas que abusam

[...] não apenas ameaçam a vida e a integridade. Eles são, no momento, os provedores pervertidos de vida, manutenção e cuidados externos, e inclusive de atenção emocional positiva. Esse elemento é crucial para a compreensão dos vínculos e lealdades possivelmente bizarros entre vítima e perpetrador [...] (FURNISS, 2002, p. 31).

Entendemos que não há uma uniformidade nas ocorrências do ASII e os vínculos formados podem ser de difícil compreensão pelos profissionais que lidam com crianças em situação de abuso. Pode haver casos com predomínio de medo por parte da vítima, outros de ódio e outros ainda de profunda ambivalência da criança em relação ao autor da violência. A criança é enredada na teia perversa criada pelo abusador e, por vezes, ao lado das vivências de

desespero e desamparo, podem também ser despertadas sensações fisiológicas de prazer que confundem a criança. Como afirma Furniss (2002, p. 32),

As sensações físicas do abuso e contexto interacional criado pela pessoa que abusa conduzem a uma experiência dupla, totalmente conflitante e contraditória em termos fisiológicos, perceptuais e emocionais. O intenso contato de pele e a estimulação do corpo durante o ato sexual criam um estado de extrema estimulação física e fisiológica na criança [...]. A estimulação física pode provocar sensações corporais de dor e excitação. Os altos níveis de ansiedade podem ser ainda mais aumentados pelo desamparo e incapacidade da criança de deixar a cena.

O abuso pode durar anos e dificilmente é interrompido sem a interferência de atores externos à família. Quando a criança consegue relatar a situação abusiva, não é raro que a mãe não acredite ou culpabilize a criança, sem denunciar o abusador pelo medo das consequências, entre elas a exposição, a ruptura dos vínculos, bem como ficar sem o provedor econômico da família (SANTOS et al., 2006). Furniss (2002) refere que muitas mães ou outros familiares negam, ou podem verbalmente admitir, mas continuam com a crença de que não aconteceu, enquanto outros não acreditam mesmo quando o abusador confessa. Por outro lado, existem mães e outros familiares que conseguem funcionar como figuras de proteção, dando apoio e suporte emocional à criança. Por isso, o ASII não diz respeito apenas ao par abusador-criança, mas a todo o contexto relacional da família.

De acordo com Duarte (2008), estima-se que no Brasil, em relação à violência sexual, para cada caso denunciado, 20 não chegam ao conhecimento das autoridades. Pfeiffer e Salvagni (2005) confirmam o “muro de silêncio” que circunda o fenômeno e, nos casos que vitimam meninos, a subnotificação é ainda maior, porque as famílias temem comprometer a imagem heterossexual do garoto, se o assunto tornar-se público.

A subnotificação é um problema importante e tem como causas: a falta de preparo dos profissionais, principalmente da saúde e educação; a banalização dos efeitos para as vítimas; o pouco conhecimento das leis; a articulação insuficiente com outras instituições de proteção dos direitos da criança; a não identificação do abuso; a descrença nas ações do Estado na resolução da questão; as questões culturais que dificultam a percepção de que familiares podem ser os causadores e a compactuação com o segredo, de forma consciente ou não (ADED et al. 2006; DUARTE, 2008; PFEIFFER; SALVAGNI, 2005). O Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual (BRASIL, 2006, p. 16) salienta que o abuso e a exploração sexual infantil

[...] alimentam-se do medo das vítimas de denunciar as agressões, nutrem-se da omissão ou da falência pública para lidar com a questão e ganham força na silenciosa cumplicidade social. Acompanhados por receio ou tabu, os temas carecem da mobilização de todos os setores da sociedade para serem enfrentados.

Cohen e Gobbetti (2000) alertam que, diante do abuso, é a vivência emocional da criança que deve ser enfatizada, e não os atos concretos ou a visibilidade de marcas físicas. Como o ASII geralmente não deixa evidências físicas, a comprovação mesmo com exames do Instituto Médico Legal muitas vezes não apresenta provas conclusivas. Em muitos casos, o abusador não recorre ao ato sexual com penetração (PFEIFFER; SALVAGNI, 2005).

Pelas dificuldades de identificação e manejo do ASII, autores como Furniss (2002), abordam a relevância de uma formação adequada dos profissionais de diferentes categorias, observando que o trabalho requer atuação interdisciplinar e articulada com outros setores da rede de proteção à criança, incluindo também a escola.

Esse tema, junto às demais situações de violência infantil e o espaço ocupado pela criança na sociedade atual propiciaram uma sensibilização crescente, fazendo com que fossem discutidas formas de enfrentamento à situação, como abordaremos no tópico a seguir.