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O abuso sexual infantil intrafamiliar e os sentidos compartilhados pelos professores em Recife

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

CURSO DE MESTRADO

PATRÍCIA MONTEIRO RIBEIRO

O abuso sexual infantil intrafamiliar e os sentidos compartilhados

pelos professores em Recife

RECIFE 2012

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Patrícia Monteiro Ribeiro

O abuso sexual infantil intrafamiliar e os sentidos compartilhados

pelos professores em Recife

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Psicologia do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Psicologia.

Orientadora: Profª Drª Fátima Maria Leite Cruz

RECIFE 2012

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Catalogação na fonte

Bibliotecária Divonete Tenório Ferraz |Gominho.CRB4 - 985

R484a Ribeiro, Patrícia Monteiro.

O abuso sexual infantil intrafamiliar e os sentidos compartilhados pelos professores em Recife / Patrícia Monteiro Ribeiro. – Recife: O autor, 2012. 149 f. ; 30cm.

Orientador : Profa. Dra. Fátima Maria Leite Cruz

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Pernambuco, CFCH. Programa de Pós-Graduação em Psicologia, 2012.

Inclui bibliografia, apêndices e anexos.

1. Psicologia. 2. Violência sexual contra crianças. 3. Professores de educação infantil. 4. Representações sociais. I. Cruz, Fátima Maria Leite (Orientador). II. Titulo.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

CURSO DE MESTRADO

O abuso sexual infantil intrafamiliar e os sentidos compartilhados pelos

professores em Recife

Comissão Examinadora:

Profª. Drª. Fátima Maria Leite Cruz 1° Examinador/Presidente

Profª. Drª. Laeda Bezerra Machado 2° Examinador

Profª. Drª. Maria Isabel Patrício de Carvalho Pedrosa 3° Examinador

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AGRADECIMENTOS

A minha grande e querida família, meu maior tesouro, meu chão e minhas asas.

Ao meu esposo Tony, também incluído acima, que mesmo não sendo sua seara, me incentivou e compreendeu minhas impossibilidades durante esse percurso.

A minha orientadora, Fátima Cruz, pelas orientações imprescindíveis, minha admiração. Aos amigos e colegas do CAPS que concordaram com minha ausência temporária e me estimularam para essa atividade acadêmica.

Aos amigos e colegas do TJPE que de diferentes formas me incentivaram nesse período em que precisei conciliar mestrado e trabalho.

Em particular, meu agradecimento pelo apoio e colaboração de Eliene, Maria de Jesus, Gabriela, Cereu, Daniele, Ana, Aeldja, Carol, André, Verônica, Moema, Sueli e Fernanda. Agradeço também a Alessandra/CRIAR, Luiza da Escola que Protege e Fernanda Carvalho pela disponibilidade de compartilhar materiais importantes para a dissertação.

A Ravyna pelas leituras do material quando eu não conseguia mais “enxergar”.

Aos mestrandos da Turma 5. Especialmente Carina, sua generosidade e companheirismo me enriqueceram muito. Obrigada! Também Isabela e Silvana, pela amizade e trocas acadêmicas! A PPV (impecável representante de turma) e Flávio (nosso “mestre de cerimônias” mais irreverente). E, claro, Selma, feliz encontro, grande amiga de alma espanhola. Muito bom ter a companhia de vocês nessa estrada!!

Às mestrandas da turma anterior, hoje mestras, Fernanda, Amanda e Dayane. A todos os queridos amigos de quem trago comigo a certeza da torcida.

À Profª Jaileila, pela forma cativante de ensinar e ser. À Profª Fátima Santos e aos demais professores do Mestrado, meu reconhecimento pelas contribuições fundamentais.

À Coordenação, na pessoa da Profª Isabel Pedrosa, pela atenção com que sempre nos atendeu. A João, Secretário do Programa, gentileza e competência em pessoa.

Às professoras Isabel e Laêda por aceitarem participar dessa construção, contribuindo na Banca de Qualificação do Projeto e de Defesa da Dissertação.

Ao Prof. Franklin, do Centro de Educação, pela disponibilidade em discutir as dúvidas de como utilizar os dados fornecidos pela GPCA.

Aos funcionários da GPCA e da Secretaria de Educação, Esporte e Lazer do Recife. Às diretoras, vice-diretoras e coordenadoras pedagógicas das escolas visitadas.

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Se podes olhar, vê.

Se podes ver, repara.

(Ensaio sobre a Cegueira

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RESUMO

Esta pesquisa investigou os sentidos construídos e compartilhados do abuso sexual infantil intrafamiliar (ASII) pelos docentes da rede de ensino municipal da cidade do Recife. Essa violência é cometida contra crianças por familiares que se aproveitam dos vínculos de parentesco, confiança ou responsabilidade para a obtenção de práticas sexuais. Elegemos como campo de estudo a escola por ser um dos contextos fundamentais do desenvolvimento infantil. Questionamos: o que pensam, sentem e fazem os docentes acerca do ASII? Os sujeitos foram 57 professores dos anos iniciais da Educação Básica. Adotamos como referencial teórico-metodológico a Teoria das Representações Sociais, que entende a realidade como construção sócio-histórica, na qual o sujeito tem um papel ativo, reelaborando-a a partir de sua inscrição no mundo em que vive, de suas experiências, das relações estabelecidas, das crenças e sentimentos que seu grupo de pertença compartilha. A pesquisa teve uma abordagem qualitativa e plurimetodológica, com o uso de questionários de associação livre, hierarquização e entrevistas semiestruturadas. A análise foi progressiva, com etapas sucessivas e interligadas, objetivando aprofundar e refinar os dados, utilizando a Análise de Conteúdo de Bardin. Os resultados indicaram que os sentidos compartilhados pelos docentes foram associados: à afetividade negativada diante do impacto que o tema trouxe aos professores, identificando-se que estes se perceberam impotentes, despreparados e em sofrimento na sua atuação diante do ASII; a um sentido de culpabilização, com a busca dos responsáveis pela violência atribuída ao descaso e promiscuidade das famílias pobres que não protegem a criança e que se afastam do modelo de família estável e/ou nuclear ainda idealizado; e à explicação do ASII como doença ou distúrbio mental e aos traumas decorrentes dessa forma de violência.

Palavras-chave: Abuso sexual infantil intrafamiliar; Professores; Educação; Representações Sociais.

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ABSTRACT

This research studied the meanings built and shared by the teachers from Recife’s education network on Intrafamilial Child Sexual Abuse (ICSA). This violence is perpetrated against children by family members that take advantage of their parentage bond, trust or responsibility to obtain sexual activities. We elected as study field the school, this been one of the fundamental contexts in child development. We questioned: what do teachers think, feel and do about ICSA? The subjects were 57 early years of Basic Education teachers. We used as theorical-methodologic reference the Social Representation Theory, which understands reality as a social-historical construction in which the subject has an active part redesigning it from his entry in the world he lives, his experiences, the relationships he establishes, the beliefs and feelings shared by the group he belongs. The research had a qualitative and plural methodological approach, using a free association questionnaire, hierarchical ordering and semi-structured interviews. The analysis was progressive, with successive and interconnected steps, aiming to deepen and to refine the data, using the Bardin’s Content Analysis.The results indicated that the meanings shared by the teachers were associated: to negative affection toward the impact the topic brought them, being noted that they perceived themselves powerless, unprepared and suffering when facing ICSA; to a sense of guilt, with a search for the accountable for this violence accredited to the neglect and ppromiscuity proper to poor families that don’t protect children and that distinguishes themselves from the stable family model and/or nuclear family model still idealized; and to the explanation of ICSA as a mental disease or disorder and to the trauma due to this type of violence.

Key-words: Intrafamilial child sexual abuse; Teachers; Education; Social Representation.

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LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 – Faixa etária das vítimas atendidas pelo CRIAR/TJPE, Recife/ Pernambuco, de nov. 2008 – nov. 2010

48

Gráfico 2 – Tipos de crimes contra crianças e adolescentes atendidos pelo CRIAR/TJPE, Recife/ Pernambuco, nov. 2008 – nov. 2010

49

Gráfico 3 – Relação do réu/agressor com a vítima nos casos atendidos pelo CRIAR/TJPE, Recife/Pernambuco, nov. 2008 – nov. 2010

49

Gráfico 4 – Faixa etária do réu/agressor nos processos atendidos pelo CRIAR/TJPE, Recife/Pernambuco, nov. 2008 – nov. 2010

50

Gráfico 5 – Local de ocorrência dos crimes nos casos atendidos pelo CRIAR/ TJPE, Recife/Pernambuco, nov. 2008 – nov. 2010

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Relação do quantitativo de docentes dos Ciclos 1 e 2 em exercício profissional por RPA em Recife/Pernambuco, abr. 2011

87

Quadro 2 – Escolas pesquisadas por bairro e quantitativo de sujeitos 87 Quadro 3 – Categorização do perfil docente: 1ª fase da pesquisa 91 Quadro 4 – Categorização do perfil docente: 2ª fase da pesquisa 92 Quadro 5 – Campo semântico das palavras associadas ao termo indutor Abuso

Sexual Infantil Intrafamiliar

94

Quadro 6 – Agrupamento e categorização dos dados: Abuso Sexual Infantil Intrafamiliar

95

Quadro 7 – 1º Eixo do ASII – Afetividade negativada 96

Quadro 8 – 2º Eixo do ASII – Culpabilização 101

Quadro 9 – 3º Eixo do ASII – Distúrbios mentais 113

Quadro 10 – Hierarquização da 2ª fase/Entrevista: Abuso Sexual Infantil Intrafamiliar

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LISTA DE SIGLAS

ABRAPIA Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência ASII Abuso Sexual Infantil Intrafamiliar

CENDHEC Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social

COPAV Coordenação de Prevenção aos Acidentes e Violência da Secretaria de Saúde do Recife

CRIAR Centro de Referência Interprofissional na Atenção a Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência da Capital do Tribunal de Justiça de Pernambuco CONANDA Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente

DECCA Delegacia de Polícia de Prevenção e Repressão aos Crimes contra Criança e Adolescente

ECA Estatuto da Criança e do Adolescente

GPCA Gerência de Polícia da Criança e do Adolescente ONU Organização das Nações Unidas

PCNs Parâmetros Curriculares Nacionais

PNEVS-BR Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-Juvenil do Brasil PEEVS-PE Plano Estadual de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-Juvenil de

Pernambuco

PEVS-Recife Plano de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-Juvenil do Recife QAL Questionário de Associação Livre

RPA Região Político-Administrativa RS Representações Sociais

TRS Teoria das Representações Sociais UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 13

OBJETIVOS 18

1 INFÂNCIAS E FAMÍLIAS: CONSTRUTOS TEÓRICOS 19

1.1 Infâncias e famílias no Brasil 21

1.2 Crianças e famílias pobres brasileiras hoje 27

1.3 Sobre a sexualidade infantil na modernidade 31

2 A VIOLÊNCIA CONTRA A CRIANÇA 37

2.1 Compreendendo o abuso sexual infantil intrafamiliar 39 2.2 Ações para o enfrentamento da violência sexual contra a criança no Brasil 43

2.2.1 Instrumentos legais 43

2.2.2 Instrumentos políticos 44

2.3 Cenário da violência intrafamiliar no Recife com foco na violência sexual infantil

47

3 A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO CENÁRIO SOCIAL 51

3.1 As relações entre escola e família 56

3.2 Os temas da sexualidade infantil e do abuso sexual infantil

intrafamiliar e as repercussões na escola

58

4 TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS 65

4.1 A abordagem estrutural 72

4.2 A abordagem culturalista 74

5 MÉTODO 78

5.1 Universo da pesquisa 79

5.2 Procedimentos de construção dos dados 80

5.3 Instrumentos utilizados 81

5.4 Procedimentos para análise de dados 83

6 ANÁLISE DOS DADOS 85

6.1 O campo da pesquisa 85

6.1.1 Em busca de material informativo: GPCA 85

6.1.2 O contato com a Secretaria de Educação, Esporte e Lazer da Prefeitura do Recife

87 6.1.2.1 Contato com as escolas e com os gestores 87

6.1.2.2 Contato com os professores 89

6.1.3 Perfil dos sujeitos 90

6.2 Compreendendo os sentidos compartilhados do abuso sexual infantil intrafamiliar pelos professores

93

6.2.1 Afetividade Negativada 96

6.2.2 Culpabilização 100

6.2.3 Distúrbios mentais 113

(13)

6.3 Sobre a formação docente a respeito da sexualidade infantil e do abuso sexual infantil intrafamiliar

116 6.4 Como os professores compreenderam seu papel diante do abuso

sexual infantil intrafamiliar e as estratégias que adotam

119

CONSIDERAÇÕES FINAIS 125

REFERÊNCIAS 131

APÊNDICE A – Questionário do Perfil de Identificação do Sujeito 142

APÊNDICE B – Questionário de Associação Livre 143

APÊNDICE C – Roteiro da Entrevista 144

APÊNDICE D – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido 145

APÊNDICE E – Quadro Geral do Perfil de Identificação dos Sujeitos 146

ANEXO A – Cópia Carta de Anuência da Secretaria de Educação, Esporte e

Lazer da Prefeitura do Recife 148

ANEXO B – Cópia da Carta de liberação do Comitê de Ética da Universidade

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INTRODUÇÃO

Esta pesquisa buscou compreender os significados do abuso sexual infantil intrafamiliar (ASII) construídos e compartilhados pelos professores dos anos iniciais da Educação Básica1 da rede municipal do Recife. O fenômeno do ASII não é recente, porém, nas últimas décadas, tem provocado maior visibilidade na mídia e repercussões nas leis, nas políticas públicas e nos debates cotidianos. Essa prática passou a ser percebida socialmente como violência a partir de uma mudança gradual na forma de encarar a infância, vista como fase de cuidados especiais e na atualidade pela compreensão da criança como sujeito de direitos (BRASIL, 1990).

Cabe situar que o interesse da pesquisadora sobre o ASII surgiu a partir das leituras e inquietações suscitadas pelo tema e que foram aprofundadas em um curso de especialização. Em seguida, a trajetória profissional da autora propiciou experiências na esfera dos poderes Executivo e Judiciário em instituições que trabalham com a situação de enfrentamento e de tomadas de decisão relativas às violências intrafamiliares.

Dentre as diversas conceituações existentes sobre o ASII, destacamos a de Ferreira (2008), que o define como a ação de um adulto (na grande maioria dos casos) sobre uma criança, mediada por uma relação de parentesco, confiança e/ou de responsabilidade, visando à realização de práticas sexuais, as quais podem ocorrer mediante violência física, sendo mais comum, entretanto, o uso da ameaça ou sedução/persuasão por parte do abusador. Este tipo de abuso pode ser caracterizado através do ato sexual vaginal ou anal, sexo oral, carícias das partes íntimas, exibicionismo, diálogo de conteúdo sexual, dentre outros.

A escola foi escolhida como campo do estudo por ser um contexto fundamental do desenvolvimento infantil, no qual a criança dá continuidade ao seu processo de identidade e subjetivação, construindo e reconstruindo significados das experiências vividas e estabelecendo outros laços afetivos e sociais, ao mesmo tempo em que conquista a aprendizagem formal. Por isso, entendemos que a escola é um espaço de convivência que possibilita uma aproximação e um conhecimento do professor sobre a criança-aluno, suas vivências e seu cotidiano. Além disso, esse espaço caracteriza-se como instância preocupada com a formação da cidadania e qualidade de vida (BRASIL, 1997), sendo considerada uma

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importante parceira na rede de proteção aos direitos da criança (BRASIL, 2002, 2006, 2008; PERNAMBUCO, 2008; RECIFE, 2006).

Por entender que os docentes têm acesso privilegiado ao universo infantil, buscamos investigar: quais são os significados que os professores da rede municipal do Recife constroem e compartilham sobre o abuso sexual infantil intrafamiliar? O que eles pensam, sentem e fazem acerca dessa forma de violência? Esses profissionais discutem o assunto com seus pares no cotidiano? Eles sentem-se preparados para lidar com a temática? Que repercussões emocionais provocam nos docentes a aproximação dessas possíveis vivências dos seus alunos? Esse tema é abordado na formação inicial e/ou continuada do grupo docente?

Entendemos que tais questões não são simples de enfrentar, posto que o mundo moderno tem trazido múltiplas e complexas demandas para o sistema formal de ensino. A despeito das fragilidades institucionais divulgadas sobre a escola em geral, e sobre a escola pública em particular, entendemos que o ambiente escolar se configura como um dos espaços potenciais de discussão sobre ASII. Nessa perspectiva, Brino e Williams (2003), assim como Inoue e Ristum (2008), dentre outros, concebem esse espaço como o lugar ideal para detecção e intervenção do ASII, pela função social de atenção ao desenvolvimento integral infantil e por se constituir em um ambiente diferenciado da família, do qual o abusador geralmente faz parte.

A relevância da pesquisa se justifica considerando vários estudos, dentre eles os de Pfeiffer e Salvagni (2005) e Brino e Williams (2003), os quais indicam que os professores não se sentem preparados para lidar com a temática do ASII. Pfeiffer e Salvagni (2005) alertam que o grande número de ocorrências que não chegam ao conhecimento das autoridades é decorrente, além do silêncio da vítima e dos demais familiares, da falta de preparo dos profissionais sobre o assunto em questão. Brino e Williams (2003), em uma pesquisa com professoras de escolas municipais de uma cidade de São Paulo, chegam à constatação semelhante, apontando lacunas na formação de professores relativas à informação sobre o abuso sexual infantil; desconhecimento dos aspectos legais do ASII; contradições entre o dizer e o fazer, e o pouco envolvimento nos casos de denúncia, além das resistências em lidar com o tema.

Dessa forma, esta pesquisa apresenta relevância científica e social na contribuição da Psicologia com a Educação, uma vez que fomenta reflexões sobre o papel da área educacional em uma perspectiva ampliada. Assim, conhecer a realidade local pode contribuir para

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subsidiar estratégias para ações e políticas públicas referentes à educação, saúde e direitos da criança, visando lutar pela diminuição dessa forma de violência na cidade do Recife.

Os dados sobre o ASII ainda são fragmentados, mas a Organização Mundial de Saúde (OMS) a este se refere como um dos graves problemas de saúde pública, atingindo cerca de 7 a 36% das meninas e 3 a 29% dos meninos (PFEIFFER; SALVAGNI, 2005). De acordo com a OMS, aproximadamente 150 milhões de meninas e 73 milhões de meninos, no ano de 2002, sofreram violência sexual com contato físico (FRANCISCHINI; SOUZA NETO, 2007). Entre os abusadores, 80% são membros da família ou pessoas próximas do círculo familiar (FERREIRA; AZAMBUJA, 2011).

Esse registro auxilia na compreensão do enorme contingente de crianças atingidas, principalmente, quando as estimativas alertam para um índice considerável de subnotificações (casos que não chegam ao conhecimento das autoridades), havendo indicação de que apenas 10% das ocorrências são registradas (ADED et al., 2006). Oliveira (2010) comenta dados do Ministério da Saúde, relativos a 2007, que apontam que as principais vítimas do ASII são meninas de até nove anos de idade e o genitor é o agressor mais frequente.

Na Região Metropolitana do Recife, entre 2006 e 2008, a média de crimes por ano contra criança e adolescente foi de 4.631. Desses, os casos de natureza sexual corresponderam à média de 631 ocorrências por ano, equivalendo a 13,6% do total (PERNAMBUCO, 2008).

O impacto do ASII sobre as vítimas depende de diversos fatores que se relacionam às características da criança, da situação abusiva e a existência de suporte e proteção para a revelação do abuso e acompanhamento posterior. As consequências são potencialmente preocupantes e algumas acompanham a vítima até a fase adulta ou emergem nesse período, podendo afetar o desenvolvimento psicológico, social, físico e cognitivo (BRASIL, 2004; HABIGZANG et al., 2005).

Ressaltamos que as famílias nas quais ocorre o abuso comumente apresentam uma dinâmica que tende a manter a violência em segredo. Habigzang et al. (2005) afirmam que em mais de 60% dos casos de um total de 71 processos jurídicos consultados, pelo menos uma pessoa, a maioria parentes como mãe e irmãos, já sabia da situação abusiva e não a denunciou.

Quando definimos família, nos referimos à presença de “um outro” significativo para a criança que a auxilie não só na sua sobrevivência, mas também na construção de referenciais, de valores, de modelos de identificação e de trocas afetivas e sociais. Entretanto, nem sempre esses laços conseguem garantir proteção e vínculos afetivos saudáveis. Em muitos casos, podem ser tecidos vínculos ambíguos e/ou destrutivos e o ambiente familiar torna-se o palco

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mais recorrente do drama vivido pelas crianças que são alvos de negligência ou de violência física, psicológica e sexual. Dessa forma, entendemos a importância de estudos que investiguem como o ASII vem sendo abordado nos outros espaços de circulação da criança além da família.

Adotamos como referencial teórico-metodológico do estudo a Teoria das Representações Sociais (TRS), que permite compreender o pensamento social de um grupo a respeito de um objeto que comporta uma multiplicidade de interpretações, como o ASII. A TRS parte do conhecimento advindo do senso comum, decorrente das comunicações informais e práticas coletivamente engendradas, tendo as representações sociais as funções de auxiliar na compreensão da realidade e na formação da identidade e pertença grupal, além de servir como guia de conduta e como justificadora das ações (SANTOS, 2005). Esta pesquisa teve base qualitativa e plurimetodológica, utilizando questionários de associação livre, hierarquização e entrevistas semiestruturadas. A análise foi progressiva, com o objetivo de refinar os dados (CRUZ, 2006), utilizando a Análise de Conteúdo de Bardin (2009).

Os participantes do estudo foram professores da rede municipal do Recife, cujos alunos são oriundos da população em desvantagem econômica. Enfatizamos, porém, que não preconizamos nenhuma relação da pobreza com a violência, e lembramos os registros de Duarte (2008) e Pedersen e Grossi (2011) ao alertarem que a violência infantil intrafamiliar não conhece fronteiras culturais, étnicas, religiosas ou condições socioeconômicas e de escolarização.

A escolha por escolas públicas da Prefeitura do Recife como campo de estudo se deve ao fato dessas escolas integrarem uma rede de ensino que disponibilizaria aos professores políticas comuns de formação continuada e cuja proposta pedagógica aponta a preocupação com o desenvolvimento da integralidade humana. A pesquisa contou com 57 professores que atendem alunos dos anos iniciais da Educação Básica.

O presente estudo está dividido da seguinte forma: esta introdução, seguida dos objetivos da pesquisa. No primeiro capítulo, discutimos sobre as construções teóricas dos conceitos de infâncias e famílias e sobre questões relativas à sexualidade infantil. No segundo capítulo, versamos sobre a violência contra a criança, esclarecendo os instrumentos legais e políticos de enfrentamento à violência sexual, nos âmbitos nacional, estadual e municipal, assim como explicitamos o fenômeno do ASII e o cenário da violência infantil no Recife. No terceiro capítulo, tratamos sobre a educação escolar no cenário social, abordando as relações entre escola e família e como os temas da sexualidade infantil e violências intrafamiliares vêm sendo trabalhados no cotidiano escolar. No quarto capítulo, apresentamos a TRS, que serve

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como suporte teórico e metodológico da pesquisa. No quinto capítulo, discorremos sobre o método, elucidando sobre o universo da pesquisa, os instrumentos utilizados, detalhando os procedimentos de construção e análise dos dados. No sexto capítulo, apresentamos o campo da pesquisa e procedemos a análise dos dados. Em seguida, as considerações finais, as referências, os apêndices e os anexos.

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OBJETIVOS:

Geral:

 Compreender os sentidos compartilhados do abuso sexual infantil intrafamiliar, segundo os professores dos anos iniciais da Educação Básica da rede municipal da cidade de Recife.

Específicos:

 Identificar as representações sociais do ASII para os professores dos anos iniciais da Educação Básica da rede municipal da cidade de Recife;

 Analisar como os professores compreendem seu papel na mediação do ASII;

 Conhecer as estratégias dos professores para lidar na escola com os casos suspeitos ou confirmados de ASII.

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1 INFÂNCIAS E FAMÍLIAS: CONSTRUTOS TEÓRICOS

Na perspectiva ocidental, o conceito de infância é historicamente recente, fortalecendo-se nos países europeus a partir da Modernidade, na medida em que a criança, através de um lento processo, passou a ser alvo de maior atenção e valorização. Antes desse período histórico, tão logo a fase de dependência absoluta cessasse, por volta dos sete anos, a criança era encaminhada para a aprendizagem dos ofícios, sendo comum ser criada por outra família, e imediatamente envolvida no mundo adulto, participando do trabalho, do lazer, da vida cotidiana. Até a Idade Média, a família tinha como funções principais a preocupação com os bens, a prática comum do trabalho e a ajuda mútua para sobrevivência, não sendo ressaltada sua função afetiva nem a preservação da intimidade doméstica (ARIÈS, 2006).

Esse panorama mudou na Idade Moderna, quando uma série de transformações sociais e econômicas associada aos princípios morais e religiosos provocaram mudanças na forma de conceber a família e a infância, o que salienta a construção sócio-histórica dessas categorias, que expressam as marcações do tempo e do lugar nos quais emergem.

Durante o período medieval, havia uma licenciosidade sexual da qual as crianças participavam sem que isso escandalizasse a sociedade de sua época. Se tal liberdade de costumes causa certa estranheza hoje, lembremos o comentário de Ariès (2006, p. 78): “A atitude diante da sexualidade, e sem dúvida a própria sexualidade, variam de acordo com o meio, e, por conseguinte, segundo as épocas e mentalidades”. Todavia, a partir do movimento dos moralistas e educadores que ganhou força no século XVII, houve uma crescente preocupação com a preservação da inocência infantil. Toda uma literatura moral e pedagógica voltou-se para a idealização da criança vista como assexuada e sem pecado, diante da qual deveria haver uma nova postura de recato na linguagem e nos modos de se comportar.

Não só a inocência da criança passou a ser apreciada, mas uma nova concepção de ser criança emergiu, inaugurando a infância e prolongando essa fase do desenvolvimento humano. O cuidado infantil diferenciado provocou um sentimento de família pouco evidenciado até então. Ariès (2006, p. 154) comenta essa alteração na dinâmica familiar ocorrida por volta dos séculos XVI e XVII: “É significativo que nessa mesma época tenham ocorrido mudanças importantes na atitude da família para com a criança. A família transformou-se profundamente à medida que modificou suas relações internas com a criança”.

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Os pais começaram a dar importância crescente ao acompanhamento dos filhos, com demonstrações efusivas de carinho, criando-os no interior de suas casas, procurando garantir um ambiente protegido e distanciado dos considerados vícios do mundo adulto. A moralização da sociedade impôs à família algumas atribuições: educar os filhos, assegurando não apenas a conservação do nome e dos bens, mas também sua formação moral e espiritual, assim como, amá-los e colocá-los a salvo das denominadas corrupções do corpo e da alma.

Além da família, a escola foi outra instituição que delimitou a constituição da infância, especialmente nos séculos XVII e seguintes, cuidando não só da transmissão de conhecimentos, mas também da orientação moral da criança, através de disciplina e vigilância dos corpos, da hierarquia rígida e dos métodos de correção baseado em castigos físicos (ARIÈS, 2006).

No período medieval, a sociabilidade ampliada era um aspecto cultuado e a noção de privacidade não era reconhecida. A residência era também local de trabalho, por onde circulavam livremente criados, amigos e clientes (ARIÈS, 2006). Apenas a partir da Idade Moderna, a residência adquiriu um sentido de intimidade, estabelecendo-se com mais nitidez as demarcações entre as esferas pública e privada. A ascensão da burguesia, o capitalismo, a urbanização e a industrialização impulsionaram profundas mudanças nessa época. O trabalho se dissociou do cotidiano familiar e os ofícios masculinos passaram a ser exercidos fora do contexto doméstico, enquanto as mulheres se responsabilizaram por este. A organização familiar nuclear, formada por pais e filhos, se fortaleceu nessa conjuntura (MUSZKAT; MUSZKAT, 2003).

Ao longo dessas transformações, também são assinaladas questões relativas às desigualdades de gênero. Ariès (2006) comenta que até o século X, a mulher mesmo casada geria seus bens hereditários, fazendo deles livre uso, sem que houvesse interferência do cônjuge. Nos séculos seguintes, porém, promoveu-se a indivisão dos bens do casal, ficando estes sob o controle do homem. A partir do século XIV, a situação feminina tornou-se cada vez mais fragilizada: o direito de assumir os encargos do marido ausente ou louco lhe foi suprimido e no século XVI foi declarada incapaz, com todos os seus atos devendo ser legitimados pela autorização do marido ou da justiça. Os códigos morais e a legislação ratificavam essa desigualdade, fazendo com que a mulher e os filhos se submetessem a esta. A educação escolar oferecida ao homem só foi acessível à mulher dois séculos depois. Nesse sentido, no processo de construção social da infância, os meninos foram privilegiados, ao passo que as meninas continuaram a ter uma infância curta, a ter sua educação regulada mais pela prática do que pela escola e a ser confundidas com adultos em escala reduzida.

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Embora a valorização da criança, as mudanças nas relações familiares e o padrão nuclear tenham sido aspectos cada vez mais valorizados a partir da Modernidade, esse processo comportou resistências e ambiguidades de discursos e práticas. As mudanças não aconteceram da mesma forma para todas as camadas sociais, coexistindo diferentes configurações parentais e modos diversos de atenção dispensados às crianças no mesmo cenário histórico-social. As famílias ricas, por exemplo, continuaram a delegar a educação da prole a terceiros. Os pobres, por não terem patrimônio para manutenção, conservavam outros parâmetros para os cuidados dos filhos, pois a educação escolar que então se iniciava não lhe era acessível e o trabalho tinha a dimensão da sobrevivência. Dessa forma, as crianças das camadas populares permaneceram compartilhando do cotidiano adulto, e suas famílias mantiveram a composição ampliada, inclusive, como estratégia para lidar com as vicissitudes econômicas, pois todos os membros contribuíam para o sustento do grupo (ARIÈS, 2006).

Alguns pesquisadores tecem críticas ao estudo de Ariès (2006), como Soares (2001) e Arend (2007) que contestam as fontes utilizadas por aquele e a invenção da infância na modernidade. O próprio Ariès responde a algumas dessas críticas no prefácio de sua obra, porém mantém as bases de seu estudo.

Tendo nos referido brevemente ao panorama ocidental europeu, aproximaremos nosso foco à realidade brasileira para identificar como as questões da infância e da família vêm sendo debatidas a partir das especificidades socioeconômicas e etnicoculturais.

1.1 Infâncias e famílias no Brasil

No Brasil, a formação do povo incluiu os brancos de origem europeia, os índios nativos e os negros escravos, gerando um cenário cultural diversificado com implicações para a organização familiar e para as diferentes expressões de ser criança. Neder (1994) assinala que essa diversidade nem sempre é compreendida por diferentes categorias que lidam diretamente com famílias e crianças, entre elas, profissionais da área da educação, saúde e assistência social.

Os brancos chegaram ao Brasil trazendo como referência o modelo patriarcal europeu, baseado em relações desiguais de gênero, e a crença na superioridade de sua raça. A mulher branca brasileira, embora com as particularidades regionais desse país continental, era subordinada ao homem, que exercia de modo autoritário o papel de provedor e de ordenador moral a ele conferido. A influência religiosa impunha uma característica repressiva, com

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controle sexual rigoroso que atingia principalmente a mulher e a criança, estabelecendo uma educação baseada na culpa, no disciplinamento e no castigo (NEDER, 1994).

No Brasil colonial, não havia maior preocupação com a educação das crianças, quadro que só se modificou no século XIX. Antes desse período, as escolas eram poucas e não aceitavam mulheres. Famílias ricas podiam enviar os filhos homens para colégios internos ou contratar mestres para o ensino em casa e apenas eventualmente estendiam esse benefício às meninas. A reclusão das mulheres no espaço doméstico era costume no período colonial, em quartos isolados para mantê-las longe da presença de visitantes ocasionais, ou então, eram encaminhadas para conventos, onde se convencionou que sua honra estaria preservada e poderia aprender tudo o que convinha para ser uma boa esposa. Aos 13 anos, para ambos os sexos, uma pessoa era considerada adulta (DOURADO; FERNANDEZ, 1999).

As assimetrias entre o mundo masculino e feminino legitimavam e naturalizavam as construções sociais sobre o que seria pertinente aos homens e mulheres. De acordo com Dourado e Fernandez (1999), aos meninos brancos se ensinava a exercer a autoridade, principalmente para com escravos, mulheres e crianças. Era esperado que eles assumissem posteriormente o lugar do pai, assim como eram estimulados a exercer sua sexualidade, muitas vezes, seduzindo ou utilizando à força, as escravas e/ou os escravos. Por sua vez, as meninas brancas eram consideradas de inteligência inferior e ensinadas a ocultarem o brilho intelectual, sendo-lhes inculcados valores como submissão e gosto pelas prendas do lar.

A respeito dos índios no período colonial, as poucas informações disponíveis vieram principalmente de religiosos jesuítas que estiveram no Brasil com a missão de catequizar os nativos, difundindo o ideal da criança pura e assexuada. O alvo principal dos jesuítas eram as crianças, consideradas como seres ainda não maculados pelos maus costumes dos adultos. O controle dos corpos, tanto no seu vestuário como nos prazeres da carne, era vigiado e punido através da pedagogia do medo (DEL PRIORE, 1995).

Dourado e Fernandez (1999) comentam sobre as condições de vida das crianças nas aldeias indígenas do Brasil Colônia: na tribo, todos se ocupavam da educação das crianças, havendo pouco uso de castigos físicos; os meninos eram criados para serem guerreiros e as meninas, a partir dos sete anos, ocupavam o lugar destinado às mulheres adultas, assumindo tarefas mais numerosas e mais pesadas do que as desenvolvidas pelos homens, sendo consideradas prontas para casar por volta dos 15 anos. A desigualdade de gênero se fazia presente, uma vez que a índia não exercia atividades de mando. Além disso, as relações sexuais eram liberadas antes do casamento, mas, após a união, esperava-se fidelidade da índia, que ao descumpri-la podia ser castigada severamente. Por sua vez, o índio com mais de uma

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esposa era admirado e o código social impedia às mulheres que demonstrassem eventual desagrado diante da poligamia do companheiro.

Sobre a situação da criança negra no Brasil colonial, sabe-se que a preferência por escravos jovens e adultos não estimulava o tráfico infantil. Para as crianças que sobreviviam às péssimas condições dos navios-negreiros e as que nasciam em território brasileiro não havia qualquer preocupação com a manutenção dos seus vínculos familiares. As famílias eram separadas, inclusive, mães e seus filhos recém-nascidos, dando seguimento a um brutal processo de desenraizamento das referências e identidades culturais (DOURADO; FERNANDEZ, 1999). Neder (1994, p. 30) comenta que a visão da família escrava morando em senzalas foi retirada do seu contexto de origem e associada à promiscuidade sexual: “Esta é a concepção que foi cravada no imaginário social brasileiro e que está ainda muito viva”.

Até os sete anos, a criança escrava gozava uma liberdade relativa, porém, a partir dessa idade, era incumbida de atividades de cunho doméstico ou econômico, já não lhe sendo poupados os castigos corporais habituais à escravidão. Aos 14 anos, o(a) jovem escravo(a) já era utilizado(a) em trabalhos pesados. Mesmo quando crianças menores, elas não estavam livres da mentalidade que as reconheciam como inferiores, servindo de brinquedo dos filhos dos seus senhores, além de serem vítimas de diversas formas de violência (ALTMAN, 2000; COSTA, 2007).

No século XIX, quando as particularidades da infância na Europa já haviam modificado as práticas sociais, para a criança escrava no Brasil o quadro não dava mostras de mudanças significativas. Da mesma forma que a criança europeia era vista como um adulto em miniatura antes do século XVI, a criança escrava no Brasil até o final do século XIX era identificada como um escravo em redução. Mattoso (1995, p. 93) conclui:

E foi assim que numa época onde cada mãe livre sonhava poder oferecer a seu filho uma escola, em vez da aprendizagem da vida cotidiana, numa época onde começaram a prolongar a infância e os folguedos, o filho da escrava continuava tendo uma infância encolhida, de tempo estritamente mínimo. [...] Com a autonomia dos gastos e do pensamento, com a “idade da razão” não há mais criança escrava, somente escravos que são ainda muito novos. Para os seus senhores, somente sua força de trabalho os distingue do resto da escravaria adulta.

Diferentes formas de ser criança e de viver em família no Brasil colonial prosseguiram no Brasil imperial e republicano. No Brasil República, a ideia da família-padrão manteve a mulher numa relação de subordinação frente ao marido, provedor do lar, sendo ela considerada suporte deste e educadora dos filhos. No período republicano, a escolarização era estimulada para os filhos das classes mais favorecidas economicamente. A idealização da

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família conjugava influência religiosa, referência burguesa, patriarcal, monogâmica e higienizada (NEDER, 1994).

Durante o século XIX e parte do século XX, a sociedade participava de uma dupla moral sexual: repressora para as mulheres e condescendente para os homens. Entre outras restrições, o sexo para elas era permitido somente após o casamento, devendo não apenas ser, mas também parecer uma mulher fiel, o que resultava numa espiral de regulações sociais muito rígidas. Para eles, estimulava-se a prática sexual desde cedo, sendo orgulho para os pais as demonstrações de um filho viril. Depois de casados, os homens podiam ter amantes e descendentes fora do casamento, em um costume que, se não era admitido abertamente, contava com a tolerância e a cumplicidade social. O casamento era indissolúvel, só rompido com a morte de um dos cônjuges, pois a moral da época não aceitava a separação conjugal, independente da dinâmica relacional desenvolvida. O território familiar fazia valer suas leis internas, fossem elas violentas ou não, usando as prerrogativas dos assuntos de família para afastar eventuais interferências. Os filhos eram criados pelos pais, em regime de estrita obediência, só saindo da casa paterna para constituir sua própria família.

Embora predominante, esse modelo, como já afirmamos, não atingiu todos os segmentos sociais. Os pobres urbanos, entre eles, ex-escravos e seus descendentes, sobreviviam de pequenos serviços, tinham pouco ganho e habitavam cortiços. Durante muito tempo não houve política educacional para esse contingente considerado biologicamente inferior (NEDER, 1994). Muitos dos meninos pobres, com ou sem família, viviam ou perambulavam pelas ruas, sendo objeto de ação policial e confinado inicialmente em prisões comuns junto aos adultos e, tempos depois, em entidades que funcionavam simultaneamente como prisão, escola e oficina. Temidos, mas também considerados “vítima dos vícios e imoralidade dos pais” (COUCEIRO, 2007, p. 106), vão lhes sendo designados termos como “menor”, “abandonado”, “vagabundos infantis”. Para estes, as diretrizes de atendimento pautavam-se no trabalho, disciplina, moral e ordem (MOURA, 2007).

Nessa conjuntura repleta de contradições, desenha-se gradualmente um lugar social diferenciado para um determinado tipo de criança brasileira que começa a ser percebida, por volta dos séculos XIX e XX, como investimento para o futuro do país, tornando-se alvo de atenção não só da família e da Igreja, mas também do Estado, que se amparava no discurso da medicina higienista que trazia em seu bojo uma concepção moral e social da família. Porém, a manutenção da apartação social que distinguia as crianças bem nascidas das crianças pobres faz Couceiro (2007, p. 105) denunciar que o discurso sobre a infância era ambíguo:

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Ao mesmo tempo em que era vista como salvação do país, a criança, sobretudo a pertencente às camadas populares era temida. Em função do crescimento urbano e da população pobre que se aglomerava nas cidades, sem emprego fixo, vivendo da mendicância, de pequenos furtos, sendo vista pelas elites como responsável pelas desordens e crimes que se alastravam pelas ruas, a criança pobre passa também a ser percebida como perigosa, uma verdadeira ameaça ao país. Cabia então ao estado, educar, disciplinar, moralizar as crianças pobres [...]

Para as crianças e os jovens, identificados em situação de abandono, delinquência e risco, majoritariamente pertencentes aos grupos em desvantagem econômica, o Código de Menores de 1927 criou o que ficou conhecida como “doutrina da situação irregular”. Essa visão provocou um efeito fiscalizador e controlador sobre as famílias pobres, como esclarecem Dourado e Fernandez (1999, p. 70):

[...] havia ideias diferentes sobre como a sociedade deveria se preocupar, de um lado, com a criança pobre e, do outro, com a criança rica. Os filhos das elites, para os intelectuais da época, estariam protegidos dos vícios e dos crimes, pois quem nascia numa “boa família” teria uma tendência para a virtude. Em oposição a essa elite bem formada, estavam os pobres que, vivendo nas péssimas condições sociais das cidades, só podiam conviver com o crime, com o alcoolismo e a vagabundagem. E, como seriam os filhos desses pobres? Para os defensores das ideias higienistas, essas crianças já nasciam com uma tendência a reproduzir o comportamento dos pais.

Ainda que o discurso republicano exaltasse o valor da escola para tirar o país do atraso, na prática não foram vistos os investimentos necessários, com exceção dos dirigidos aos estabelecimentos de ensino das elites. Aos pobres se estimulava a aprendizagem de ofícios menos valorizados, sendo comum que estes logo abandonassem os estudos ou nem sequer ingressassem no sistema formal de ensino, entrando precocemente no mercado de trabalho (DOURADO; FERNANDEZ, 1999).

Durante o século XX, aceleraram-se as mudanças sociais no Brasil: o impacto do capitalismo, o incremento no parque industrial, o crescimento desordenado das grandes cidades impulsionado pelo intenso fluxo migratório, o progresso tecnológico, a entrada da mulher no mercado de trabalho, a importância crescente da escolarização, dentre outros fatores. A notável expansão econômica não favoreceu a todos, fortalecendo a lógica que polariza de um lado, a concentração de riqueza e de outro a exclusão social.

Com o avanço da democratização nos anos 80, após duas décadas de ditadura, a sociedade passou a discutir com mais liberdade tanto as questões socioeconômicas como os direitos humanos, dentre eles, o direito da mulher e de crianças e adolescentes. A relevância no entendimento dessas dimensões procede porque a violência intrafamiliar tem dentre suas

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causas a desigualdade de gênero e a visão adultocêntrica que ainda atravessam a sociedade brasileira.

Em relação à mulher brasileira até 1962, as leis estabeleciam que a mulher casada era relativamente incapaz e não podia exercer trabalho remunerado sem autorização do marido. A família instituída pelo casamento civil era a única reconhecida legalmente; o filho fora do casamento era ilegítimo, não tendo direito à herança ou pensão. Além disso, o marido podia pedir anulação do casamento se descobrisse que a esposa não era virgem antes das núpcias (PIMENTEL, 2002).

As alterações no Código Civil Brasileiro em 2002 (Lei Nº 10.406/2002) eliminaram os vieses discriminatórios contra a mulher que constavam no Código Civil anterior. Pimentel (2002, p. 27) esclarece que o Código atualmente em vigor:

Inova ao introduzir expressamente conceitos como o de direção compartilhada, em vez de chefia masculina da sociedade conjugal; como o de poder compartilhado, no lugar da prevalência paterna no pátrio-poder; substitui o termo “homem”, quando usado genericamente para referir ao ser humano, pela palavra “pessoa”; permite ao marido adotar o sobrenome da mulher; e estabelece que a guarda dos filhos passa a ser do cônjuge com melhores condições de exercê-la [...].

Apesar dessas modificações, as relações entre homens e mulheres ainda são desiguais, persistindo práticas de domínio/subordinação. Vale ressaltar que os valores e as práticas culturais não se guiam pela lógica jurídica. Como exemplo disso, constatamos que mesmo com as atuais leis civis e penais, muitos crimes continuam a vitimar mulheres baseados nos antigos critérios de posse, honra e poder masculinos.

Em relação às crianças e adolescentes, nas últimas décadas, a sociedade civil brasileira assumiu a defesa dos seus direitos, destacando-se a participação de organizações não governamentais e movimentos sociais, em consonância com os debates da agenda internacional (BRASIL, 2002; 2006). Como consequência dessa participação social, a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) de 1990 estabeleceram que os direitos da criança e do adolescente devem ser assegurados não só pela família, mas também pela sociedade e pelo Estado.

Embora a sociedade brasileira venha discutindo formas de promoção e defesa dos direitos dessa população, ainda permanecem muito elevados os índices de violência contra a criança no Brasil. Mendonça (2010, p. 135) comenta que o saldo não é positivo, ressaltando o impacto principalmente para as crianças pobres:

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Nas duas últimas décadas, observa-se o agravamento das diferentes manifestações da violação dos direitos de crianças e adolescentes, como a violência doméstica, violência institucional, nas comunidades e nas ruas. Na atualidade as crianças das famílias pobres ainda são exploradas em diferentes frentes de trabalho, são vítimas de extermínio, vivem em condições sub-humanas, envolvidas na exploração sexual, tráfico de seres humanos para fins sexuais, no tráfico de drogas e ainda sofrem violência no âmbito familiar que, muitas vezes, é a porta de entrada para esses e outros tipos de violência.

Diante do recorte desta pesquisa, vamos focalizar estudos sobre famílias e crianças pobres brasileiras na atualidade, pela importância de, como destaca Neder (1994, p. 44, grifos da autora), “[...] ajustando melhor o foco das nossas lentes, sermos capazes de, em primeiro lugar, enxergar as diferenças étnicoculturais presentes na sociedade brasileira; em segundo, [...] respeitar politicamente tais diferenças”.

1.2 Crianças e famílias pobres brasileiras hoje

Compreendemos que família é, por excelência, um conceito plural, complexo, comportando múltiplas formas e diversos olhares possíveis. Não se esgota na sua referência biológica, em laços de consanguinidade, nem na sua função econômica/material. Não podemos apreendê-la apenas pela ordem simbólica, assim como o ordenamento jurídico não consegue capturá-la integralmente. Não há, portanto, uma definição única que abranja todos os seus aspectos.

Para Dessen e Polônia (2007), a família independe de um tipo particular de configuração, importando a qualidade dos vínculos e a existência de uma rede de apoio formada por seus membros, estimulando o sentimento de pertença e o enfrentamento das adversidades. Essas autoras salientam o entrelaçamento de diversos fatores na constituição da família, uma vez que:

Como primeira mediadora entre o homem e a cultura, a família constitui a unidade dinâmica das relações de cunho afetivo, social e cognitivo que estão imersas as condições materiais, históricas e culturais de um dado grupo social. Ela é a matriz da aprendizagem humana, com significados e práticas culturais próprias que geram modelos de relação interpessoal e de construção individual e coletiva. (DESSEN; POLÔNIA, 2007, p. 22).

Ressaltando a função afetiva da família, Szymanski (2002, p. 10) a conceitua como um grupo de pessoas unido principalmente por vínculos de afeto e um projeto de vida em comum, no qual “[...] compartilham um quotidiano, e no decorrer das trocas intersubjetivas,

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transmitem tradições, planejam seu futuro, acolhem-se, atendem os idosos, formam crianças e adolescentes”.

Sarti (2007) comenta que diversos dispositivos – jurídicos, psicológicos, religiosos – contribuem para cristalizar conceitos sobre como a família deve ser, naturalizando-a e estigmatizando grupos em desvantagem social que não se encaixam no perfil instituído. De acordo com essa autora, as famílias pobres organizam-se em uma rede de relações que se constitui como eixo de obrigações morais e mútuas, incluindo o aspecto financeiro, o cuidado às crianças e o projeto coletivo de bem-estar.

Por outro lado, o universo familiar também é atravessado por conflitos, uma vez que o projeto familiar por vezes se choca com os anseios particulares, ou seja, valores tradicionais de reciprocidade e hierarquia colidem com valores de individualidade estimulados no mundo contemporâneo. Sobre este aspecto, Vitale (2002, p. 54) enuncia:

É bom lembrar que o sistema de trocas familiares é marcado por laços de solidariedade, mas também pelo conflito. Assim, nessa teia de relações enquanto cada um “dá o que tem” para enfrentar os percalços do cotidiano, outros podem se sentir prejudicados por este mesmo sistema. As redes de solidariedade não são uma instância linear esvaziada de contradições.

O conceito de família utilizado pela Organização das Nações Unidas (ONU) é “a gente com quem se conta” (TERRA DOS HOMENS, 2002). Essa definição é a mesma adotada por Sarti (2007) que aborda a família não só como suporte material – pela instabilidade econômica e pela fragilidade das políticas públicas – ou apenas como dimensão afetiva, mas também como “referência simbólica fundamental que organiza e ordena sua percepção do mundo social, dentro e fora do mundo familiar” (SARTI, 2007, p. 33).

A importância dos estudos de Sarti (1995; 2003; 2007) nos contextos de pobreza é de ressaltar a família como um lócus de identidade, como referencial simbólico que precisa ser compreendida na sua positividade. A autora menciona que os pobres vêm sendo designados pela negatividade expressa de diferentes formas: carência material, ausência de direitos, classe subalterna/subordinada, parcos recursos simbólicos, marcados pelo contraponto de um outro, do qual o pesquisador se diferencia. Sarti (2003a, p. 51, grifo da autora) aborda o significado social e simbólico das famílias pobres, destacando que elas se amparam em uma

[...] rede de obrigações com seus pares, baseada num padrão tradicional de relações, mas se alimentam da promessa de felicidade no moderno mundo urbano. Enredados nos fios que os unem a seus iguais, desejam também subir na vida, ancorando-se no valor individualista da mobilidade social, virtualidade dos sistemas capitalistas. Assim funda-se a ambiguidade que marca os pobres urbanos, revelando uma

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identidade social híbrida, mesclada em sistema de valores distintos, que não foram por eles elaborados, mas que são próprios da complexidade do meio urbano onde se integram como “pobres”.

Nesse sistema de lealdades recíprocas, qual o lugar do homem, da mulher e da criança na família pobre urbana? Para Sarti (2003b), os valores tradicionais e padrões patriarcais que resultam na divisão sexual dos papéis e na hierarquia entre homem e mulher e adulto e criança mantém sua força simbólica nas famílias pobres contemporâneas, em que o papel idealizado do homem corresponde à função de provedor, porém, mais do que isso, se ampara na autoridade moral a ele conferida como garantia de respeito da família. Nas palavras de Sarti (2007, p. 31): “Não é, portanto, o controle dos recursos internos do grupo doméstico que necessariamente fundamenta a autoridade do homem, mas seu papel de intermediário entre a família e o mundo externo, como guardião da respeitabilidade”.

Em contrapartida, a idealização da figura feminina é da boa dona-de-casa e mãe que organiza o cotidiano doméstico, consegue o controle do orçamento e conserva a união da família. Mesmo quando a mulher assume a função de provedora e/ou o marido não corresponde à função de autoridade moral, este lugar é, em geral, delegado a outro membro masculino da rede familiar, que pode ser o filho mais velho, um tio ou outro parente consanguíneo ou afim (SARTI, 2007).

Também pela divisão sexual de papéis, se a mãe/esposa não puder exercer as funções femininas, estas são delegadas para outras mulheres da rede familiar, quer morem na mesma casa ou não. Por isso, Sarti (2007) assinala que a centralidade na família pobre está no par masculino/feminino, o qual, como vimos, não se restringe ao par marido/esposa. Tais situações são os arranjos possíveis, principalmente, levando-se em conta a instabilidade das uniões conjugais. Por isso, a autora observa que a família pobre não é um núcleo, ela se constitui “[...] em rede, com ramificações que envolvem a rede de parentesco como um todo, configurando uma trama de obrigações morais [...] (SARTI, 2007, p. 31).

Nas camadas populares, seguindo a lógica difusa dessa reciprocidade, espera-se das crianças retribuições quando forem adultas, em um vir a ser incerto. Fazendo-nos lembrar da infância curta de meninas e meninos pobres séculos atrás, descrita por Ariès (2006), Sarti (2003b) assinala que, entre os pobres, a fase em que uma pessoa é definida como criança vai até por volta dos sete anos, quando ainda não auxilia nos trabalhos domésticos e não exerce atividade remunerada. Essa autora argumenta que a criança é também definida a partir do exercício unilateral da autoridade, uma vez que pode sofrer castigos físicos, por ainda não ter capacidade de reação.

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O lugar da criança pobre dependerá, dentre outras variáveis, do contexto familiar com ou sem rupturas durante seu percurso. De acordo com Sarti (2003b), nas famílias desfeitas, a criança permanece frequentemente com a mãe, sendo muitas vezes assumida pela rede de parentesco e vizinhança, em um fenômeno conhecido como circulação de crianças, que se traduz numa estratégia coletivizada de cuidado infantil. Essa prática também pode acontecer em famílias que não se romperam. Diante de uma união posterior, pode haver conflito entre conjugalidade e maternidade, com a mãe podendo preferir o vínculo com o novo companheiro ao vínculo materno-filial. Nem sempre dar os filhos é sinal de desamor ou carência econômica. Sarti (2003b, p. 82, grifos da autora) enuncia: “[...] criar ou dar uma criança não é apenas uma questão de possibilidades materiais, mas se inscreve dentro do padrão de relações que os pobres desenvolvem entre si, caracterizados por um dar, receber e retribuir contínuos”.

Para manter a força simbólica do eixo moral que organiza as famílias pobres, algumas negociações são efetuadas e algumas questões são toleradas para que a norma não seja atacada, tecidas em redes dinâmicas de solidariedade entre parentes e vizinhos. Muitas famílias pobres vivem em espaços exíguos; a convivência às vezes forçada com outros parentes e a falta de privacidade podem contribuir para a emergência de conflitos interpessoais (MUSZKAT; MUSZKAT, 2003).

A pluralidade dos contextos familiares e dos significados que cada grupo elabora sobre a infância e sobre viver em família ressaltam a construção social dessas categorias. Sobre infância, Pinto (1997, p. 63) enfatiza que não é uma categoria

[...] universal, natural, homogênea e de significado óbvio. Quer do ponto de vista dos sujeitos e das suas competências e capacidades, quer do ponto de vista da sociedade em que eles se inserem e das respectivas exigências e expectativas, é razoável considerar não ser indiferente, por exemplo, pertencer ao sexo masculino ou ao feminino, ter três, sete ou doze anos, tal como não é a mesma coisa nascer num bairro de lata ou num ‘berço de oiro’, crescer numa sociedade desenvolvida ou num país de Terceiro Mundo, num meio urbano ou sub-urbano ou numa zona recôndita da montanha, numa família alargada ou numa família monoparental, ser filho único ou ter mais irmãos, etc.

De forma geral, os novos cuidados dirigidos à criança e as mudanças ocorridas na família e na sociedade tornaram propícios a emergência de um extenso campo de conhecimento, em interface com a educação, psicologia, medicina, sociologia, direito, dentre outras, além dos interesses midiáticos e da sociedade de consumo que também circulam e formam opinião.

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Nesses novos cuidados à infância, a sexualidade infantil assumiu destaque a partir da Modernidade, com desdobramentos ainda muito presentes nos dias atuais, como discutiremos no tópico a seguir.

1.3 Sobre a sexualidade infantil na modernidade

Freud ao divulgar seus estudos, no final do século XIX, escandalizou a moral da época ao discutir sobre sexualidade e, sobretudo, sobre a sexualidade infantil. Nos escritos pré-psicanalíticos, ele considerou que o conflito psíquico das histéricas surgiu devido a uma sedução sexual precoce, ou seja, as pacientes teriam sofrido uma experiência sexual real e traumática na infância, cujos pais eram os acusados da sedução. Pela carga afetiva demasiada, a experiência havia sido expulsa da consciência através do mecanismo do recalque. Logo depois, porém, Freud rejeitou tal esquema explicativo, abordando que o relato das histéricas poderia ser oriundo de fantasias inconscientes, o que lhe abriu novas possibilidades para sistematizar sobre a realidade psíquica (FREUD, 1996a). Entretanto, segundo Laplanche e Pontalis (2008, p. 470), apesar de Freud abandonar a teoria da sedução sexual precoce, ele “[...] nunca deixou de afirmar a existência, a frequência e o valor patogênico das cenas de sedução efetivamente vividas pelas crianças”.

No começo do século XX, a ciência discutia a sexualidade baseada na perspectiva biológica, admitindo-se o seu aparecimento a partir do desenvolvimento fisiológico e por ocasião da puberdade, com ênfase na capacidade reprodutiva. Em sua teorização, Freud (1996b) ampliou a concepção do termo, atribuindo-lhe um papel estruturante para a organização do psiquismo, presente desde o nascimento, deslocando a primazia do campo biológico para o psicológico, embora não prescindisse daquele. Ele ressaltou sua dimensão fundante argumentando que o percurso da sexualidade não é dado naturalmente, mas constitui-se numa correlação de forças, sendo essencialmente conflitivo.

Freud (1996b) defendeu que a sexualidade infantil é autoerótica por estar investida no próprio corpo, apoiando-se nas funções corporais e ligadas a diferentes zonas erógenas, assinalando que o desenvolvimento psicossexual se processa por estágios e está relacionado às vivências e trajetórias particulares. Laplanche e Pontalis (2008, p. 476) esclarecem que, na perspectiva psicanalítica, a sexualidade

[...] não designa apenas as atividades e o prazer que dependem do funcionamento do aparelho genital, mas toda uma série de excitações e de atividades presentes desde a infância que proporcionam um prazer irredutível à satisfação de uma necessidade

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fisiológica fundamental (respiração, fome, função de excreção, etc.), e que se encontram a título de componentes na chamada forma normal do amor sexual.

Acompanhando as fases do desenvolvimento psicossexual, e apoiada nelas, a personalidade se estrutura. A psicanálise aborda que a criança inicialmente liga-se à mãe ou à pessoa responsável pela maternagem numa relação fusional, o que significa que a criança ainda não se constitui como outrem, ainda não é um ser desejante, não se percebendo diferenciada. Durante o jogo das identificações, a criança permanece por um tempo presa à onipotência do desejo infantil, e deseja o amor materno apenas para si. É então que a entrada de um terceiro, seja o pai ou outra figura que efetue a interdição da díade, constitui-se como o portador da lei, instalando uma triangulação e a emergência da falta. Tal percurso é atravessado por intensos conflitos, uma vez que a ambivalência entre amor e ódio matiza as relações com as figuras significativas, fazendo com que a criança sofra e tema as repercussões dos seus investimentos afetivos e, por fim, abandone o desejo de ter a mãe somente para si mesma (FREUD, 1996b).

A estruturação da personalidade através do conflito edípico suscitou muitas controvérsias, notadamente em relação ao desenvolvimento psicossesexual feminino, para o qual o pai da Psicanálise nunca conseguiu uma sistematização razoável.

Para Freud (1996c), é a incompletude que permite a entrada do ser humano na ordem da cultura, subordinando as pulsões sexuais e desejos incestuosos e instaurando o ser desejante, que buscará suas próprias vias de satisfação, que não poderá ser a mãe e nem o pai. Em “Totem e Tabu”, Freud (1996c) aborda a existência de um chefe primitivo e brutal, detentor de todos os poderes e privilégios sexuais, que exercia uma autoridade cruel, ameaçando e expulsando os filhos para não dividir com eles as mulheres do clã. Sentimentos de ódio e respeito lhe eram dirigidos pelos filhos, que em uma ocasião de grande revolta se reúnem e assassinam o pai cruel. Porém, tomados por remorso e culpa, buscam expiar estes sentimentos e, com essa finalidade, erguem um totem em memória do pai e estabelecem um pacto objetivando a interdição do incesto, domesticando as pulsões sexuais ao adiá-las ou dirigi-las para fora do clã familiar. Assim, constroem um pacto civilizatório, baseado em regras.

Esse esquema explicativo também foi alvo de muita polêmica, sendo criticados seus aspectos antropológicos e históricos. Laplanche e Pontalis (2008) observam que essa hipótese deve ser considerada como um referencial mítico que mostra a exigência feita ao ser humano para a convivência em sociedade, respeitando os limites e as regras contidas em qualquer contexto social. Além disso, esclarecem que as funções parentais não necessariamente

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precisam ser exercidas pelos genitores biológicos, ampliando as possibilidades de a quem se refere como objeto primário de afeto e quem é o portador da lei, mantendo o mesmo eixo conceitual. Assim, Laplanche e Pontalis (2008, p. 80) elucidam:

O complexo de Édipo não é redutível a uma situação real, à influência efetivamente exercida sobre a criança pelo casal parental. A sua eficácia vem do fato de fazer intervir uma instância interditória (proibição do incesto) que barra o acesso à satisfação naturalmente procurada e que liga inseparavelmente o desejo à lei [...] Na realidade, [...] os psicanalistas procuram descobrir em que personagens reais, e mesmo em que instituição, se encarna a instância interditória, em que modalidades sociais se especifica a estrutura triangular constituída pela criança, o seu objeto

natural e o portador da lei.

Diante do abuso sexual infantil intrafamiliar, no qual falha a interdição, como podemos compreender a dinâmica familiar e as repercussões para a criança? Pincus e Dare (1987) ratificam que os vínculos de amor e cuidado dos pais em relação aos filhos, desde tenra idade, são coloridos por fantasias incestuosas inconscientes. Esses sentimentos intensos remetem à possibilidade de desejos de contato físico, porém devido à capacidade de sublimação, esses desejos sexuais são remetidos para fora desta relação. No ASII, a função paterna, que deveria funcionar como interdição ao desejo incestuoso, funciona no seu inverso, impondo o desejo de outrem, dificultando a constituição da função desejante da criança. Diante das evidências de que a maioria dos abusadores é o pai ou o padrasto, a magnitude da ambivalência afetiva infantil terá o potencial de provocar intensos conflitos psicológicos. Segundo esses autores,

A sensualidade na família possui três componentes. A vida sexual dos pais; o desenvolvimento dos anseios sexuais das crianças; e a tendência dos pais em reavivarem sua própria sensualidade infantil no seu relacionamento com os filhos. É, portanto, inevitável que as fantasias incestuosas façam parte da vida secreta de cada família. Para que as crianças se tornem adultos saudáveis, carinhosos e sexualmente felizes, estas fantasias são necessárias, mas a sua expressão espontânea deve ser controlada pelos pais. A habilidade paterna em conseguir isso no seu contato com os filhos pequenos é absorvida pelas crianças à medida que estas crescem, pois assim elas podem reter seus anseios incestuosos pelos seus pais durante a adolescência, quando estes sentimentos sensuais se intensificam devido às mudanças biológicas. (PINCUS; DARE, 1987, p. 81).

Compreendemos que a sexualidade transita pelo clima familiar de diferentes formas, fazendo parte desse cotidiano, presente nos comentários exaltando a genitália do filho varão recém-nascido, nos toques corporais que expressam intimidade e carinho, nos cuidados com o corpo físico infantil durante a higienização, nas preocupações quanto ao modo de sentar

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