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Freud ao divulgar seus estudos, no final do século XIX, escandalizou a moral da época ao discutir sobre sexualidade e, sobretudo, sobre a sexualidade infantil. Nos escritos pré- psicanalíticos, ele considerou que o conflito psíquico das histéricas surgiu devido a uma sedução sexual precoce, ou seja, as pacientes teriam sofrido uma experiência sexual real e traumática na infância, cujos pais eram os acusados da sedução. Pela carga afetiva demasiada, a experiência havia sido expulsa da consciência através do mecanismo do recalque. Logo depois, porém, Freud rejeitou tal esquema explicativo, abordando que o relato das histéricas poderia ser oriundo de fantasias inconscientes, o que lhe abriu novas possibilidades para sistematizar sobre a realidade psíquica (FREUD, 1996a). Entretanto, segundo Laplanche e Pontalis (2008, p. 470), apesar de Freud abandonar a teoria da sedução sexual precoce, ele “[...] nunca deixou de afirmar a existência, a frequência e o valor patogênico das cenas de sedução efetivamente vividas pelas crianças”.

No começo do século XX, a ciência discutia a sexualidade baseada na perspectiva biológica, admitindo-se o seu aparecimento a partir do desenvolvimento fisiológico e por ocasião da puberdade, com ênfase na capacidade reprodutiva. Em sua teorização, Freud (1996b) ampliou a concepção do termo, atribuindo-lhe um papel estruturante para a organização do psiquismo, presente desde o nascimento, deslocando a primazia do campo biológico para o psicológico, embora não prescindisse daquele. Ele ressaltou sua dimensão fundante argumentando que o percurso da sexualidade não é dado naturalmente, mas constitui-se numa correlação de forças, sendo essencialmente conflitivo.

Freud (1996b) defendeu que a sexualidade infantil é autoerótica por estar investida no próprio corpo, apoiando-se nas funções corporais e ligadas a diferentes zonas erógenas, assinalando que o desenvolvimento psicossexual se processa por estágios e está relacionado às vivências e trajetórias particulares. Laplanche e Pontalis (2008, p. 476) esclarecem que, na perspectiva psicanalítica, a sexualidade

[...] não designa apenas as atividades e o prazer que dependem do funcionamento do aparelho genital, mas toda uma série de excitações e de atividades presentes desde a infância que proporcionam um prazer irredutível à satisfação de uma necessidade

fisiológica fundamental (respiração, fome, função de excreção, etc.), e que se encontram a título de componentes na chamada forma normal do amor sexual.

Acompanhando as fases do desenvolvimento psicossexual, e apoiada nelas, a personalidade se estrutura. A psicanálise aborda que a criança inicialmente liga-se à mãe ou à pessoa responsável pela maternagem numa relação fusional, o que significa que a criança ainda não se constitui como outrem, ainda não é um ser desejante, não se percebendo diferenciada. Durante o jogo das identificações, a criança permanece por um tempo presa à onipotência do desejo infantil, e deseja o amor materno apenas para si. É então que a entrada de um terceiro, seja o pai ou outra figura que efetue a interdição da díade, constitui-se como o portador da lei, instalando uma triangulação e a emergência da falta. Tal percurso é atravessado por intensos conflitos, uma vez que a ambivalência entre amor e ódio matiza as relações com as figuras significativas, fazendo com que a criança sofra e tema as repercussões dos seus investimentos afetivos e, por fim, abandone o desejo de ter a mãe somente para si mesma (FREUD, 1996b).

A estruturação da personalidade através do conflito edípico suscitou muitas controvérsias, notadamente em relação ao desenvolvimento psicossesexual feminino, para o qual o pai da Psicanálise nunca conseguiu uma sistematização razoável.

Para Freud (1996c), é a incompletude que permite a entrada do ser humano na ordem da cultura, subordinando as pulsões sexuais e desejos incestuosos e instaurando o ser desejante, que buscará suas próprias vias de satisfação, que não poderá ser a mãe e nem o pai. Em “Totem e Tabu”, Freud (1996c) aborda a existência de um chefe primitivo e brutal, detentor de todos os poderes e privilégios sexuais, que exercia uma autoridade cruel, ameaçando e expulsando os filhos para não dividir com eles as mulheres do clã. Sentimentos de ódio e respeito lhe eram dirigidos pelos filhos, que em uma ocasião de grande revolta se reúnem e assassinam o pai cruel. Porém, tomados por remorso e culpa, buscam expiar estes sentimentos e, com essa finalidade, erguem um totem em memória do pai e estabelecem um pacto objetivando a interdição do incesto, domesticando as pulsões sexuais ao adiá-las ou dirigi-las para fora do clã familiar. Assim, constroem um pacto civilizatório, baseado em regras.

Esse esquema explicativo também foi alvo de muita polêmica, sendo criticados seus aspectos antropológicos e históricos. Laplanche e Pontalis (2008) observam que essa hipótese deve ser considerada como um referencial mítico que mostra a exigência feita ao ser humano para a convivência em sociedade, respeitando os limites e as regras contidas em qualquer contexto social. Além disso, esclarecem que as funções parentais não necessariamente

precisam ser exercidas pelos genitores biológicos, ampliando as possibilidades de a quem se refere como objeto primário de afeto e quem é o portador da lei, mantendo o mesmo eixo conceitual. Assim, Laplanche e Pontalis (2008, p. 80) elucidam:

O complexo de Édipo não é redutível a uma situação real, à influência efetivamente exercida sobre a criança pelo casal parental. A sua eficácia vem do fato de fazer intervir uma instância interditória (proibição do incesto) que barra o acesso à satisfação naturalmente procurada e que liga inseparavelmente o desejo à lei [...] Na realidade, [...] os psicanalistas procuram descobrir em que personagens reais, e mesmo em que instituição, se encarna a instância interditória, em que modalidades sociais se especifica a estrutura triangular constituída pela criança, o seu objeto

natural e o portador da lei.

Diante do abuso sexual infantil intrafamiliar, no qual falha a interdição, como podemos compreender a dinâmica familiar e as repercussões para a criança? Pincus e Dare (1987) ratificam que os vínculos de amor e cuidado dos pais em relação aos filhos, desde tenra idade, são coloridos por fantasias incestuosas inconscientes. Esses sentimentos intensos remetem à possibilidade de desejos de contato físico, porém devido à capacidade de sublimação, esses desejos sexuais são remetidos para fora desta relação. No ASII, a função paterna, que deveria funcionar como interdição ao desejo incestuoso, funciona no seu inverso, impondo o desejo de outrem, dificultando a constituição da função desejante da criança. Diante das evidências de que a maioria dos abusadores é o pai ou o padrasto, a magnitude da ambivalência afetiva infantil terá o potencial de provocar intensos conflitos psicológicos. Segundo esses autores,

A sensualidade na família possui três componentes. A vida sexual dos pais; o desenvolvimento dos anseios sexuais das crianças; e a tendência dos pais em reavivarem sua própria sensualidade infantil no seu relacionamento com os filhos. É, portanto, inevitável que as fantasias incestuosas façam parte da vida secreta de cada família. Para que as crianças se tornem adultos saudáveis, carinhosos e sexualmente felizes, estas fantasias são necessárias, mas a sua expressão espontânea deve ser controlada pelos pais. A habilidade paterna em conseguir isso no seu contato com os filhos pequenos é absorvida pelas crianças à medida que estas crescem, pois assim elas podem reter seus anseios incestuosos pelos seus pais durante a adolescência, quando estes sentimentos sensuais se intensificam devido às mudanças biológicas. (PINCUS; DARE, 1987, p. 81).

Compreendemos que a sexualidade transita pelo clima familiar de diferentes formas, fazendo parte desse cotidiano, presente nos comentários exaltando a genitália do filho varão recém-nascido, nos toques corporais que expressam intimidade e carinho, nos cuidados com o corpo físico infantil durante a higienização, nas preocupações quanto ao modo de sentar

feminino, nos olhares diante das transformações advindas com a puberdade. Há um movimento familiar nem sempre consciente no qual a sexualidade está sempre em cena.

Essa dinâmica na qual a sexualidade circula, em geral não resvala para atos abusivos. Lembramos Gabel (1997, p. 10) que esclarece que a palavra abuso, etimologicamente, significa um “[...] afastamento do uso (“us”) normal. O abuso é, ao mesmo tempo, um uso errado e um uso excessivo. O que não significa, como dizem os que criticam esse termo, que houvesse um uso permitido, pois abusar é precisamente ultrapassar os limites e, portanto, transgredir.”

Dessa forma, a circularidade da sexualidade integra o modo de relação entre pais e filhos, que é afetada pelas representações, crenças, experiências e práticas, modificando e sendo modificada por esta relação, a qual também regula e é regulada pelos costumes socioculturais de cada época.

A psicanálise desvelou os véus que cobriam a sexualidade aprisionada pelo clima repressor da era burguesa, inscrevendo-a na pauta dos debates públicos. Essa assertiva não é inteiramente aceita por Michel Foucault (2009) que problematiza a hipótese repressiva dos séculos XVIII, XIX e XX, argumentando que embora tenha havido um manto de acobertamento, por outro lado, nunca se falou tanto sobre esse tema. Foucault ratifica a maior liberdade sexual no início do século XVII, panorama que depois se modificou. Entretanto, ele enfatiza que a partir do século XVIII surgiu uma intensa produção discursiva de médicos, educadores, legisladores, religiosos que buscavam o controle e o poder sobre a sexualidade.

Na perspectiva da repressão à sexualidade, considerou-se que ela foi encerrada no interior das casas e das relações conjugais monogâmicas, ressaltando como finalidade precípua, a procriação. Com isso, esse tema teria se ausentado do domínio público, impondo uma regra de decência e austeridade e produzindo a noção de uma criança assexuada. Foucault (2009), embora não tenha negado o caráter repressivo, postulou que ele é insuficiente para explicar o papel central da sexualidade a partir do século XVIII. Seu objetivo foi explicitar a

[...] economia geral dos discursos sobre o sexo no seio das sociedades modernas a partir do século XVII. Por que se falou da sexualidade, e o que se disse? Quais os efeitos de poder induzidos pelo que se dizia? Quais as relações entre esses discursos, esses efeitos de poder e os prazeres nos quais se investiam? Que saber se formava a partir daí? Em suma, trata-se de determinar, em seu funcionamento e em suas razões de ser, o regime de poder-saber-fazer que sustenta, entre nós, o discurso sobre a sexualidade humana. (FOUCAULT, 2009, p. 17).

A hipótese de Foucault (2009) é que não se estabeleceu um mero silenciamento da sexualidade, mas também, e principalmente, houve um crescente incitamento aos discursos sobre o tema, observando que essa produção se deu sobretudo nas instituições, como a religião com seus métodos de confissão e o exame minucioso de si; a medicina, especialmente através da psiquiatria, buscando a etiologia das doenças mentais; a justiça penal e a pedagogia. Segundo Foucault (2009, p. 34): “Não se fala menos do sexo, pelo contrário. Fala- se dele de outra maneira; são outras pessoas que falam, a partir de outros pontos de vista e para obter outros efeitos.” Ele comentou sobre os colégios do século XVIII, indicando que toda uma estrutura foi pensada e organizada: da arquitetura aos regulamentos internos que promovia a separação, a vigilância e o controle dos corpos.

Foucault (2009) assinalou que a modernidade foi a responsável por uma dispersão de focos articulando a sexualidade a uma trama complexa, organizada em um jogo de esconder/revelar ao mesmo tempo em que era valorizada como segredo, sempre atrelada às injunções de poder. Essa rede de múltiplos discursos não se ateve à propalada monogamia heterossexual com finalidade reprodutiva da moral burguesa, mas principalmente ao que Foucault denominou de sexualidades periféricas, não voltadas para a procriação. A este respeito, ele afirma:

Surge toda uma gentalha diferente [...] Do final do século XVIII até o nosso, eles correm através dos interstícios da sociedade perseguidos pelas leis, mas nem sempre, encerrados frequentemente nas prisões, talvez doentes, mas vítimas escandalosas e perigosas presas de um estranho mal que traz também o nome de “vício” e, às vezes de “delito”. Crianças demasiado espertas, meninas precoces, colegiais ambíguos, serviçais e educadores duvidosos, maridos cruéis, colecionadores solitários, transeuntes com estranhos impulsos: eles povoam os conselhos de disciplina, as casas de correção, as colônias penitenciárias, os tribunais e asilos; levam aos médicos suas infâmias e aos juízes suas doenças. Incontável família dos perversos que se avizinha dos delinquentes e se aparenta com os loucos. No decorrer do século eles carregaram sucessivamente o estigma da “loucura moral”, da “neurose genital”, [...] da “degenerescência” ou do “desequilíbrio psíquico” (FOUCAULT, 2009, p. 47).

O jogo do poder-saber-prazer que revela e esconde, que organiza as injunções, mas parece esperar delas o fracasso, indica que a sexualidade está presente em todos os cantos e em qualquer lugar, nos corpos e nas instituições, instalando dispositivos, fazendo o sexo tudo falar, mesmo que numa linguagem comedida. Ainda segundo Foucault (2009, p. 52-53):

O exame médico, a investigação psiquiátrica, o relatório pedagógico e os controles familiares podem, muito bem, ter como objetivo global e aparente dizer não a todas as sexualidades errantes ou improdutivas mas, na realidade, funcionam como mecanismos de dupla incitação: prazer e poder. Prazer em exercer um poder que

questiona, fiscaliza, espreita, espia, investiga, apalpa, revela; e, por outro lado, prazer que se abrasa por ter que escapar a esse poder, fugir-lhe, enganá-lo ou travesti-lo. Poder que se deixa invadir pelo prazer que persegue e, diante dele, poder que se afirma no prazer de mostrar-se, de escandalizar ou de resistir. Captação e sedução, confronto e reforço recíprocos: pais e filhos, adulto e adolescente, educador e alunos, médico e doente, e o psiquiatra com sua histérica e seus perversos, não cessaram de desempenhar esse papel desde o século XIX. Tais apelos, esquivas, incitações circulares não organizaram, em torno dos sexos e dos corpos, fronteiras a não serem ultrapassadas, e sim, as perpétuas espirais de poder e prazer.

Dessa forma, a família e a sexualidade infantil constituíram-se como redes, nas quais os prazeres, poderes e desejos de saber estiveram misturados, apoiados nas interdições, mas não se resumindo a estas (FOUCAULT, 2009). A separação das crianças do quarto de dormir dos pais; a divisão entre adultos e crianças, e entre meninos e meninas; as regras de uma medicina higienista e os pudores e cuidados do corpo, incluindo o perigo atribuído à masturbação; os medos e segredos referentes ao sexo e a intensa produção discursiva em variados campos do conhecimento dão uma ideia dos inúmeros dispositivos referentes a essas áreas.

Do período moderno até os dias atuais, intensas transformações repercutiram na organização familiar, na forma de viver a sexualidade e de se compreender a infância. As crianças passaram de uma condição periférica, da ausência de um status específico, para ocupar a centralidade da família. Nesse percurso, algumas práticas sexuais que envolviam crianças passaram a ser consideradas, em termos legais e sociais, como violência, diante da qual se articulou uma série de estratégias para a eliminação ou diminuição do fenômeno. Entretanto, como veremos a seguir, a valorização crescente da infância não impediu que as crianças continuassem a ser alvo fácil de diversas formas de violência.