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Como os professores compreenderam seu papel diante do Abuso Sexual Infantil Intrafamiliar e as estratégias que adotam

6 ANÁLISE DOS DADOS

6.4 Como os professores compreenderam seu papel diante do Abuso Sexual Infantil Intrafamiliar e as estratégias que adotam

Diante do ASII, todos os sujeitos compreenderam seu papel como educador a partir de uma atuação que não extrapola os muros escolares. As contradições apareceram, posto que idealmente a escola foi considerada pela maioria dos professores como possibilidade de intervenção ativa no enfrentamento da questão. Entretanto, na prática concreta tal possibilidade foi descartada pelo medo de ser alvo de violência por retaliação do abusador ou outros familiares, acrescida da justificativa de falta de preparo técnico e falta de apoio.

As docentes afirmaram que conseguem identificar sinais quando a criança está envolvida na situação abusiva, mencionando a confiança que a criança deposita na figura do professor e os vínculos construídos na interação cotidiana, ratificando a compreensão de Furniss (2002) de que o professor é uma das principais figuras que a criança recorre nos casos de ASII. Escolhemos o recorte abaixo como ilustração:

E nós, professores, somos os únicos que podemos ajudar, e eu não entendo como é que a gente não é preparado pra isso, entendeu? [...] Como a gente tem um contato diário com essas crianças, eu acho que a gente cria um vínculo afetivo muito forte e aí a confiança, a ponto de a criança verbalizar tanto pelo pedido de socorro como pela inocência [...]. Então eu acho que a sensibilidade que o professor tem, esse convívio diário, mesmo sem ter sido preparado e trabalhado [...]. A maior dificuldade eu acho que seria o encaminhamento, né, o que fazer? [...] Isso daí eu me sinto completamente perdida em relação a isso. E não fui orientada, embora procure, cascavilhe, né? [...] (Carmem).

Embora os professores tenham referido que reconhecem os indícios do ASII, as ações se restringem a: conversar informalmente com outros docentes e levar ao conhecimento da direção da unidade educacional, observar o comportamento do aluno e ser um apoio para a criança dentro da escola. A direção, por sua vez, toma como medida mais frequente chamar a mãe para conversar sobre o assunto. Ainda que considerem que a genitora muitas vezes tem

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A coordenação do Programa Escola que Protege cedeu gentilmente à pesquisadora material, não publicado, referente às atividades desenvolvidas no ano de 2010.

conhecimento do abuso, solicitam que ela tome providências, percebendo-se limitados para adotar outras medidas. Vejamos os seguintes trechos ilustrativos:

[...] A gente não tem uma formação específica dentro dessa área, não é? Mas como professor a gente busca... Se identifico algum comportamento diferenciado nessa criança, isso mesmo sem tentar buscar assim “É um abuso sexual ou não?”[...], então, a gente tenta trazer essa criança e realmente fazer com que ela perceba que ali ela vai ter um apoio dentro daquela unidade, como um todo. [O papel do educador] é informar a coordenação, é buscar a direção, é buscar as pessoas, os profissionais que possam dar essa ajuda, tá certo? (Belisa).

A criança conversou comigo. Eu conversei com a direção. A direção chamou a mãe, conversou. O que a gente identificou que era um tio, o irmão da mãe, que cuidava da criança. Aí a mãe foi chamada...[...]. E a gente sugeriu a ela que ela tomasse alguma providência em relação e investigasse o que a gente tava dizendo. Pra mim a criança não estava mentindo, que confia na professora, porque tem um vínculo afetivo forte, né? [...] A diretora, deu um prazo e vai chamá-la [mãe] novamente pra conversar, pra saber. Só que um dia desse eu vi o tio levando ela [criança] de novo na escola. Aí eu tô bastante angustiada com isso e a gente vai retomar (Carmem).

Aí eu disse: “Você já contou isso pra alguém?” “Pra ninguém, a senhora é a primeira pessoa pra quem eu tô contando e eu não vou contar isso pra mais ninguém. [...] Eu digo: “E agora, o que é que eu faço?” Aí foi que ela disse, né, que ele era bandido, que ele tinha ameaçado ela dizendo que se ela contasse pra alguém ele ia matar ela, matar quem tava sabendo. “Ah, Jesus! E agora o que eu faço?” [riso nervoso] Aí eu disse: “Olhe, pelo amor de Deus, você não vai dizer nada a ninguém que me disse isso não, viu?” Ela: “Tia, pelo amor de Deus, não conte pra ninguém, não.” Ela ficou desesperada. [...] Quando ela saiu, eu digo: “O que é que eu faço agora? Eu passo isso pra direção? Fico calada?” Porque de qualquer forma, né, eu tava botando a minha cara a risco também... “Meu Deus e agora?” Numa hora dessa, o que é que você vai fazer? (Augusta, comentando o caso de violência sexual cometida contra uma aluna de 12 anos pelo namorado).

Tais questões sugerem que, de forma semelhante ao que foi apontado por Almeida, Santos e Rossi (2006), as representações pelos docentes apontam para um padrão de criação das crianças em que as famílias, mesmo diante de situações de violência, permanecem com a prerrogativa da condução das medidas sobre o que fazer. Mantém-se, assim, a perspectiva dos filhos como posse dos pais e o âmbito familiar como esfera privada e espaço inviolável, valores socialmente estimulados a partir da modernidade. Como consequência, os direitos das crianças, mesmo assegurados por lei, não são garantidos socialmente.

Nesta pesquisa, os professores evidenciaram um conflito no qual sua tentativa de autopreservação pelo medo da violência polarizou com o compromisso ético diante da situação do seu aluno. Esses aspectos contraditórios podem ser encontrados nas representações sociais do ASII pelos professores porque conjugam diferentes tipos de elementos cognitivos e sociais. Para explicar suas dificuldades de atuação diante do ASII apareceu: a crença compartilhada na violência como própria dos segmentos menos favorecidos economicamente, e a fragilidade das instâncias públicas e da sociedade. Apesar

da ambivalência, os docentes se isentaram de uma atuação mais efetiva diante do ASII considerando a escola sem força e sem apoio. Amedrontados e em sofrimento, os sujeitos recuam e responsabilizam a família pelas ocorrências do ASII. Escolhemos os seguintes fragmentos:

De que maneira a professora poderia ajudar, contribuir? Sinceramente eu não sei. Eu não sei até que ponto a gente pode... porque se uma criança relata que ela teve um, um... sofreu um abuso do pai, do tio, do irmão, dificilmente não vai ser, né? Mas como é que a gente vai provar que foi? Ou isso não cabe a gente? Se a gente simplesmente pode só dizer e outras pessoas vão buscar a prova. E depois isso vai incorrer em quê? Quando não se provar... e aí quem foi quem disse inicialmente? Quem foi quem sugeriu? Foi a professora. [...] Eu preciso me preparar melhor. Confesso a você que eu não tenho preparo. Eu estou há alguns anos, trabalho com a comunidade que de certa forma é basicamente violenta, eu diria... Tem muita gente carinhosa, muita gente do bem, mas muita gente que não se controla ... reage com violência, tá entendendo? ... Eu te digo que eu sou despreparada (Flora).

[...] Digo: “O mínimo eu tenho que conseguir... é botar essa criatura pra ler e escrever um mínimo [ênfase]! Aí eu tenho que conseguir.” E isso não é fácil. [...] As disparidades, e a professora sozinha ali... Quem me ajuda?! [faz de conta que grita,

com um toque de humor] Então eu não consigo ver: “Eu acho que meu aluno está

sendo abusado”. O que é que eu faço com essa criança? A quem recorrer? Que ajuda pedir? O que já fiz foi entrar em contato com as instâncias maiores da escola, chamar a mãe e só [o tom de voz e a expressão é de quem sente ter feito muito

pouco, esboça um sorriso triste] [...] Você desconfia, você insinua. O envolvido: “A

professora está me acusando disto”. E me denuncia e tal. Minha cabeça vai a prêmio! Cabeça de professor já rola por muito menos... (Hilda).

Ferreira e Azambuja (2011) comentam o impacto que a aproximação com situações de ASII causa nos profissionais, provocando reações emocionais de tal envergadura que paralisam as tomadas de decisão e ações apropriadas. Essa vivência deixa-os perdidos em meio à perplexidade e confusão, identificando-se com a criança atingida.

Dos oitos sujeitos entrevistados, seis souberam ou suspeitaram de casos de alunos vítimas de violência sexual, a maior parte na modalidade intrafamiliar. Das duas restantes, uma tem apenas alguns meses de exercício profissional e respondeu não ter tido conhecimento de nenhum caso. A segunda demonstrou um distanciamento bastante tensionado diante do tema.

A sensação de solidão e falta de apoio foram expostas pelos educadores. Em apenas um dos casos relatados, foi assinalada a possibilidade de a escola encaminhar ao Conselho Tutelar, mas tal medida não parece ter se efetivado. Dois sujeitos consideraram esse órgão ineficiente, formado por pessoas despreparadas. Selecionamos os trechos das entrevistas:

Quem deveria ajudar também não tem muita força pra ajudar a gente, que é o Conselho Tutelar. Olhe, me perdoe a sinceridade, mas eu acho o Conselho Tutelar uma das piores fraudes que tem [riso triste]. Porque a gente professor já é uma

instituição meio... meio não, falida em relação a um monte de coisa! Que a gente não tem... não tem força, não tem condição. Então pede apoio ao Conselho Tutelar, que não apoia. Eles têm as limitações deles... é por isso que eu digo, é uma fraude. Aí o Conselho Tutelar diz... diz que foi, visitou a família e que não sei o quê... e a gente não vê as mudanças acontecendo... É tudo, é tudo faz de conta! Parece que a escola finge que tomou a atitude, o Conselho Tutelar finge que tomou também e a gente finge que o problema foi resolvido (Hilda).

[...] As pessoas também [ênfase] não são pessoas preparadas pra o tema [...]. Eu tô falando, por exemplo, do Conselho Tutelar, que em sua maioria é formada por pessoas que não tem o conhecimento necessário pra essas resoluções, esses encaminhamentos... Porque o que a gente percebe quando a gente procura é uma desatenção, um... a gente não sente um apoio, uma parceria (Flora).

Além disso, chamou-nos atenção o fato de duas professoras assinalarem casos de evasão e/ou transferência escolar, mobilizados por situações de violência contra criança ou adolescente, o que ressalta a fragilidade e a falta de articulação dos órgãos que compõem a rede de garantia aos direitos infanto-juvenis, posto que a saída da criança da escola parece finalizar qualquer possibilidade, ainda que remota, de proteção. Selecionamos algumas falas a este respeito:

Até porque a gente também tem coisas que não dá pra gente se envolver tanto. Acho que aí teria que chamar a mãe, ia causar mais problemas e tal, aí a gente foi deixando... Como ela saiu da escola e não voltou mais, aí... agora não tem mais nem cabimento a gente se meter nessa história. Se tivesse, assim, tido algum... mais algum problema... de questão do trauma ter causado alguma repercussão no aprendizado, ou seja lá qual for o motivo, aí sim a gente ia ter que intervir de todo jeito, mas como não, aí a gente deixou passar... (Augusta).

Eu tô dizendo isso porque teve um caso de um aluno meu... e aí a gente buscou a família, identificou que foi um membro da família, fez com que encaminhasse essa família à direção da escola pra poder fazer os atendimentos necessários junto ao Conselho Tutelar na época. Mas só que a família acabou tirando o aluno da escola. E é uma coisa assim que a gente não tem controle nem tem domínio sobre a situação, porque a partir daquele momento que ele sai da escola e sai legalmente, você não tem como legalmente ficar em busca do resgate desse atendimento, vamos dizer assim, porque é um atendimento familiar no caso (Belisa).

A partir do que foi discutido, analisamos que os sujeitos buscaram solucionar o conflito através da adoção de medidas parciais, fazendo sugestões de ações para que a vítima ou os familiares reconheçam a situação de violência. Propuseram também que as ações fossem desempenhadas na escola, porém por outros atores sociais. Ferreira e Azambuja (2011, p. 20) comentam que profissionais da educação e de outras áreas, diante do impacto causado pelo ASII e diante da deficiência de recursos sociocomunitários no Brasil para fazer face ao fenômeno, assumem a via da “[...] indignação moral e um falso reforço à capacidade da criança para se defender só, aliado à preocupação instigante de “preservar” a família que merece maior consideração”. Vejamos trechos das entrevistas:

Por outro lado [ênfase], isso incorre, isso traz uma série de outros fatores, né? Porque a gente vai supor, mas com base em quê, não é? E depois a gente vai gerar que tipos de problema pra própria escola, não é? A gente não sabe com quem tá lidando. Mas assim, eu entendo que o professor, o papel de orientação pra o aluno, pra que ele perceba é... se tá acontecendo, se ele tá sofrendo a violência, é importante (Flora).

Porque realmente é uma coisa [sobre o ASII] que acontece muito e que deveria, justamente nas escolas, ser sempre aberto um espaço para reunir pais, outro para re... assim, reunir alunos para... para despertar para o perigo disso, não é? E se pudesse, assim, de alguma forma... se a escola... assim, tomando algum conhecimento através, sei lá, de que meios, mostrar a importância... de vez em quando haver uma palestra com os alunos, com os pais, despertando para os pais “Olhe, existe esse perigo! Cuidado nas pessoas, informe melhor seus filhos” etc. (Eulália).

Identificamos que, assim como na nossa pesquisa, outros autores também constataram que a principal ação da escola frente à violência contra a criança em todas as modalidades resume-se a chamar os pais e tentar resolver o assunto no próprio âmbito escolar, fato que se configura em

[...] mais do que omissão, é um procedimento que se pode converter em risco para a própria criança. Ao convocar a família, a escola pode estar alertando o agressor para a visibilidade de seu ato e, em certa media, estimulando-o a acionar mecanismos mais ardilosos de dissimulação da agressão [...] ou, ainda, fazer uso maciço da violência psicológica (ameaças) para coagir a vítima a se calar. (VAGOSTELLO et al., 2003, p. 195).

Oliveira (2008) e Libório et al. (2007) alertam que para a formação docente sobre esse tema não é suficiente o conhecimento das leis ou o conhecimento teórico, uma vez que tais elementos não necessariamente revertem para ações protetoras. Nesse sentido, Libório et al. argumentam que a formação continuada não significa uma série de eventos com conteúdos apenas informativos, mas se constitui principalmente em oportunidades para reflexão sobre as práticas profissionais e uma (re)construção constante de uma identidade pessoal, profissional e ética. Entretanto, essas autoras problematizam as condições profissionais dos professores e questionam:

Os professores estão preparados para tal função? O sistema atual oferece condições para que ele cumpra este papel? Os professores transmitem exemplos de cidadania? Os profissionais da educação vivem plenamente seus direitos? Essas e outras questões poderiam ser feitas aos educadores e, principalmente, para aqueles que controlam os destinos da educação do país. (LIBÓRIO et al., 2007, p. 163).

Entendemos que alguns fatores contribuem para que a escola e os educadores atuem com as limitações acima mencionadas: pouca ou nenhuma formação inicial e continuada na

área; a crença sobre a ineficiência do Conselho Tutelar aliada à falta de aproximação da escola a outros órgãos da rede de proteção aos direitos da criança e do adolescente; pouco conhecimento do ECA, suscitando dúvidas e equívocos; a sensação de solidão diante das providências a serem tomadas, possivelmente provocada pela percepção de uma rede de proteção que não está efetivamente articulada; o receio do envolvimento nas denúncias e o medo de possíveis retaliações.

Além dessas questões, assinalamos a relevância de incluir nesse campo o debate sobre as condições de trabalho e a falta de valorização do exercício profissional docente; o aprofundamento teórico que permita a compreensão dos elementos sociais, históricos, políticos e ideológicos que permeiam as relações de gênero, relações intergeracionais e entre as diferentes classes sociais e grupos étnico-raciais; oportunidades para reflexões sistematizadas buscando aproximar os estudos teóricos das práticas vividas, conforme expõem, dentre outros, Dourado (2001), Giroux e McLaren (2009) e Paro (2001).

Os dados da nossa pesquisa encontram ressonância nos trabalhos de Almeida, Santos e Rossi (1996), Inoue e Ristum (2008), Libório et al. (2007), Miranda e Yunes (2007), Oliveira (2008) e Vasgostello et al. (2003) que focalizaram a interface da violência contra a criança, incluindo o ASII, e o contexto educacional.

Os estudos de Miranda e Yunes (2007), Oliveira (2008) e Libório et al. (2007) também sinalizam que, para os profissionais da educação, o ASII está relacionado principalmente à família desestruturada e à deficiência na formação de valores positivos, característicos dos meios economicamente desfavorecidos.

Destacamos ainda que a investigação das representações sociais do ASII pelo grupo docente permite capturar aspectos simbólicos até então encobertos. A perspectiva psicossocial possibilita a apreensão de diferentes nuances, com suas ambiguidades e contradições, que aprofunda a compreensão dos fenômenos sociais complexos.

Concluímos esse tópico com um fragmento do discurso de uma educadora sobre o papel do educador que resume a angústia e o desalento fortemente presentes no grupo pesquisado: “[...] deveria ter também daqueles olhos de quem cuida... Sabe quando na família... os olhos da família deveria ser de quem cuida? Na escola também... deveria ser os olhos de quem cuida. Mas eu não cuidei! E eu não sei se tenho condição de cuidar!” (Hilda).