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Rede 39 - Família 7. Impacto Hidrelétrica. Triângulo. Guajará-Mirim

1 DOS ESTUDOS CULTURAIS AOS ESTUDOS DOS SENTIDOS PELO

1.2 A COMPREENSÃO DO SENTIDO

Graças à pluralidade e ao dinamismo da Geografia Cultural, os estudos geográficos se voltam ao sentido, ao significado, às percepções, perpassando cognições, visando às representações de paisagens, espaços e lugares valorizados individualmente ou intersubjetivamente.

No entanto, com essa busca do sentido humano pela Geografia, uma inquietação tornou-se frequente na compreensão de culturas diversas: o que está

sendo observado em particulares culturas, os sentidos ou os significados? Os

significados culturais e os sentidos dizem respeito ao mesmo objeto? Quem pode

desvelar as velas10, fornecer itinerários e rumos corretos ao geógrafo na análise de paisagens culturais diferençadas, o sentido ou o significado?

Com o ser humano tomado como seu centro de interesse, a Geografia sente necessidade de (re)conhecer o seu mundo circundante, seus valores, seus marcadores, seus sentidos concretos. Assim, os estudos geográficos passam a integrar outros aportes na interface com os signos linguísticos de Ferdinand Saussure (1857 - 1913), a pragmática de Charles Sanders Peirce (1839 – 1914) ou reflexões teóricas filosóficas pelos estudos de Bourdieu (1930 – 2002), Heidegger (1889 – 1976), Husserl (1959 – 1938), entre outros.

Heidrich (2013), em seu artigo Território e Cultura: Argumento para uma Produção de Sentido apresenta a definição de sentido com base nos estudos sociológicos de Berger e Luckmann (2012, p. 15): “Sentido é a consciência de que existe uma relação entre as experiências”. A partir dessa compreensão, Heidrich complementa: “Qualquer objeto ou ação para os quais movimentamos nosso olhar aparece com importância e validade por causa do sentido humano que possui. Todo o mundo geográfico é impregnado de sentidos, tudo tem uma função e um significado”. (HEIDRICH et. al., 2013, p.53).

Estudos com aportes fenomenológicos como os de Tuan e Buttimer, assim como estudos advindos de outras bases teóricas, quando abordam a constituição do sentido, convergem a um só ponto: a cultura. Ou seja, o sentido é constituído culturalmente e, por isso, é um processo que está presente em todos os universos culturais.

Com base nos estudos da abordagem fenomenológica, a partir de filosofias de sentido, Fernandes e Fausto Gil (2011), em seu artigo Geografia em Cassirer: Perspectivas para a Geografia da Religião, afirmam que tais estudos só vêm enriquecer a pluralidade de interpretações sobre o espaço. De acordo com esses autores, a virada linguística nas ciências sociais abre “[...] uma riqueza de possibilidades ao enfatizar as representações” e complementam “[...] nesse contexto a Geografia tem se dedicado a compreender o sentido dos espaços sígnicos” (FERNANDES e GIL FILHO, 2011).

10Desvelar as velas é um termo usado por Dardel (2011) para referir-se a descobrir o que está oculto na análise geográfica para a compreensão.

Para este estudo, que visa conhecer os sentidos dos homens/mulheres amazônicos, buscou-se pela compreensão desse sentido presente no olhar geográfico e de como esse sentido culturalmente construído conduz a diferentes percepções, visões de mundo e construções de pontos de vista, em Frege (1978) e a sua concepção de unidade de sentido, com base no clássico ensaio “Sobre o Sentido e a Referência11”.

A escolha da unidade de sentido, exposta por Frege (1978) em seu ensaio

“Sobre o Sentido e a Referência”, na elaboração dessa tese, reside no fato de que, embora teóricos da Geografia falem sobre o sentido e o definam como um fato/fenômeno cultural, observou-se a ausência de uma explicação de como se constitui essa unidade de sentido que acompanha o viver do ser humano12.

Frege não produziu extenso material a ser observado, justamente por centrar seu interesse na lógica matemática e não na filosofia da linguagem. No entanto, no texto aqui utilizado, o autor desenvolve instigantes tópicos relativos ao conhecimento, verdade, existência, sentido, significado e linguagem. Essas suas investigações, com base na lógica, trouxeram à semântica orientações de forma decisiva à construção de uma teoria compreensiva da construção do sentido. (FREGE, 1978).

Gottlob Frege utiliza uma grande quantidade de argumentos para sustentar logicamente a afirmação de que o significado não é o objeto a que uma palavra se refere e que é necessário diferenciar, ainda, o objeto real e a palavra daquilo que é compartilhado socialmente como sendo o significado desse sinal e daquilo que cada um entende particularmente como sendo sua significação, conforme se demonstra na figura 03:

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Esse ensaio foi escrito com problemas da lógica em mente (isto é, a relação de "igualdade") e é uma amostra dos primeiros exemplos de análise filosófica a apontar que o problema do sentido invade a língua natural e que não é um problema restrito à matemática ou à lógica formal. Deste ponto de vista, Frege, como C. S. Pierce, antecipa a preocupação de filósofos e críticos com os problemas que envolvem a língua e o significado, particularmente quando problemas semânticos e epistemológicos se sobrepõem, mas exigem diferenciação. Cf. In: Adams and Searle, 1985, p.624. 12

A unidade de sentido exposta em Frege (1978) tem acompanhado as pesquisas da autora desta Tese, em trabalhos que analisam como autores estrangeiros traduzem a cultura amazônica às suas audiências.

FIGURA 03 - A Compreensão do Sentido Culturalmente construído em Frege (1978)

FONTE: FREGE, G. Lógica e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Cultrix (1978). Organizado por

Ferrarezi Jr. (2003). Adaptado por Agra, Klondy (2013)

Compreende-se, desse modo, que a conexão regular entre o sinal13 (signo ou símbolo) seu sentido e sua referência é de tal modo que ao sinal corresponde um sentido determinado e ao sentido, por sua vez, corresponde uma referência determinada, enquanto que a uma referência (a um objeto) não deve pertencer apenas um único sinal. Porém, nem sempre ao sentido corresponde uma referência: entender-se um sentido nunca assegura sua referência” (FREGE, 1978, p.63). Tomem-se, por exemplo, expressões como a Boiúna14, fada, algum assistente,

qualquer passageiro do avião etc.; apesar de podermos apreender o sentido de tais expressões, elas não nos garantem uma referência.

13Utiliza-se a palavra sinal neste estudo e não signo, para diferenciar do signo linguístico descrito pelo

linguista Ferdinand Saussure (1857-1913). Sinal é utilizado como sinônimo de signo ou símbolo.

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A Boiúna, ou cobra-grande, é um mito amazônico de origem ameríndia, descrito como uma enorme cobra escura capaz de virar as embarcações. Também pode imitar as formas das embarcações, atraindo náufragos para o fundo do rio (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001).

Além desses componentes do sinal – o sentido e a referência – Frege (1978) introduz outro componente: a representação associada ao sinal. Diferente do sentido do sinal, que seria uma imagem apreendida coletivamente, portanto, de modo mais objetivo, a representação em Frege é inteiramente subjetiva. A referência e o sentido de um sinal para Frege devem ser distinguidos da representação associada a esse sinal.

Frege ainda introduz o mundo real em suas considerações e explicita que o sinal (signo ou símbolo) designa uma referência (a coisa do mundo real que é designada). Mas a conexão entre o sinal e a coisa designada é arbitrária: “ninguém pode ser impedido de empregar qualquer evento ou objeto arbitrariamente produzidos como um sinal para qualquer coisa” (FREGE, 1978, pp. 62- 63). O que é arbitrária é a conexão entre o sinal e a referência; essa conexão, para Frege, pode ser alterada, ou deformada, pelo falante. Então, o sinal é o elemento que remete à significação. O sinal é mais do que a palavra, mas é inclusive a palavra. A referência é a substância – quando ela existe. O sentido é a ideia compartilhada como referente, isto é, uma concepção geral que permite o entendimento dos

significados simbólicos entre os membros de uma mesma cultura (FREGE,

1978).

Desse modo, reconhece-se um diálogo entre o sentido exposto por Berger e Luckmann (2012) e comentado por Heidrich (2013) com a unidade de sentido exposta por Frege (1978), pois, se é o sentido a consciência de que existe relação entre as experiências, é esse mesmo sentido que permite o entendimento e a compreensão entre os membros de uma mesma cultura.

Ademais, os sentidos humanos, embora façam parte da consistência humana, são sempre influenciados pelo contexto e cenário, ou seja, por serem construídos culturalmente, é por meio desses sentidos que os seres humanos se relacionam com o meio. Assim, cada homem/mulher, a partir de sua cultura, do seu mundo vivido, percebe o mundo exterior de formas distintas.

Por ser esse sentido culturalmente construído o condutor às percepções de formas distintas, é ele também quem conduz ao compreender ou não compreender, ao gostar ou ao não gostar. Fatores que conduzem as pessoas a verem somente o que interessa ou ao ouvir o que atendem seus próprios interesses. A cultura influencia fortemente a percepção do indivíduo, sua maneira de ver e sua maneira

de pensar (TUAN, 2012). Portanto, o sentido culturalmente construído interfere também na valorização ou não dos elementos naturais.

O Homem/mulher vive a remoldar de sentidos e significações o mundo. Graças às situações e tensões culturais a que está vinculado, esse ser cultural cria, renova, interfere, dá sentido à sua existência. Por isso mesmo esse ser cultural vê, sente, compreende e divulga suas crenças e pensamentos com sentidos culturalmente construídos (CLAVAL, 2010).

O sentido construído culturalmente é o responsável pelos símbolos linguísticos utilizados na comunicação de atores de uma mesma comunidade, porque esse sentido é compartilhado pelos falantes de uma língua. Definido como uma ideia geral que os falantes de uma língua associam a um sinal qualquer a respeito de um objeto do mundo real ou de mundos possíveis, o sentido é o responsável pela possibilidade de comunicação entre usuários de uma língua. Assim, quando um locutor fala uma palavra qualquer ou utiliza-se de um gesto culturalmente definido, espera-se que seu interlocutor entenda o que está falando.

As diferentes comunidades amazônicas variam no estilo de construção, em sua operação e manutenção, nas entidades que as preenchem e as decoram. Seus códigos culturais são sistemas pelos quais os seus mundos são definidos, descritos e entendidos. Os sentidos que levam ao significado revelado por uma cultura são construídos socialmente.

Portanto, a partir da unidade de sentido exposta em Frege (1978), compreende-se que, nos estudos geográficos, o que deve ser observado em particulares culturas são os sentidos, pois são eles que conduzem aos significados culturais. É a partir desse sentido construído culturalmente que o geógrafo pode

desvelar os significados, obter itinerários e rumos corretos à análise de paisagens culturais diferençadas.