• Nenhum resultado encontrado

Comunicação com o sagrado em ambientes glocais narrativos

A civilização mediática avançada (TRIVINHO, 2007) pode ser compreendida como configuração social-histórica herdeira do modo capitalista de produção, especificamente de seu propósito produtivista, desenvolvido a partir dos séculos XIX e XX, primeiro com a Revolução Industrial, depois com o uso de infraestrutura tecnológica e mediática para superar a barreira do tempo e do espaço e alastrar velozmente a presença do capital. Era preciso configurar a experiência do tempo e do espaço como aceleração da realização do capital nas formas de produção, distribuição e consumo de mercadorias – o esforço estava voltado para a obtenção da melhor produtividade da relação tempo-espaço. Em função de seus propósitos, esse empreendimento gestava, desde a Revolução Industrial, a lógica comunicacional vigente na atualidade, no sentido de projetar um fenômeno que se configuraria plenamente um século mais tarde – a comunicação em tempo real, um dos alicerces, se não o mais importante, da civilização mediática avançada –, como a dupla experiência que reúne simultaneidade entre o acontecimento de um fato e sua recepção como mensagem e interatividade.

Essa civilização mediática avançada é percebida como totalidade do mundo e vigora como um esquema de vida para o sujeito, estruturado, evidentemente, com a participação efetiva da comunicação mediática, nas formas de repertório e de funcionalidades comunicacionais. A lógica dessa comunicação é fixar modelos e valores próprios da época, com foco no individualismo, como vimos nos capítulos anteriores, sobretudo na análise de dois personagens – o padre católico Marcelo Rossi e o cantor católico Thiago Brado – e outros tantos modos capitalistas avançados de produção, que necessitam extrair lucro de seus investimentos. Uma vez constituinte do habitus de cada época, essa lógica comunicacional tende a ser vivenciada de modo integrado à própria existência humana como algo natural e, assim, é reproduzida tacitamente na vida social, sem reflexão e questionamento.

Para elucidar a questão da visibilidade mediática, é preciso inicialmente apontar que não se podem alterar os processos comunicacionais sem o glocal:

A visibilidade mediática – na verdade, intermediática – constitui a “protuberância” tecnossimbólica e imaginária do processo de globalização planetária para deslizamento veloz de textos, imagens e/ou sons – de um contexto glocal a outro, de uma rede a outra, de um media a outro, de um

produto (ciber) cultural a outro –, quase regido por agendas temáticas diuturnamente sufragadas por audiências (de massa e/ou ciberespaciais). (TRIVINHO, 2012, p. 3).

Ainda tem sido aprendido, a partir do contexto cibercultural, que o glocal remonta ao próprio início da comunicação mediática no século XIX, com a invenção do telégrafo elétrico – por apresentar características de transmissão simultânea em tempo real – e, posteriormente, do telefone, até o desenvolvimento da comunicação mediatizada ao longo do século XX, passando pela invenção do rádio, da televisão e dos media interativos. Em síntese, é por meio da categoria glocal que se realiza a revisão social-histórica do desenvolvimento da comunicação, tornando-se o principal imaginário da cibercultura. Trivinho (2007) aponta alguns elementos básicos presentes no processo de evolução da condição glocal: [a] equipamentos de telecomunicações; [b] infraestrutura de rede; [c] acoplamento humano- máquina; [d] tempo real; [e] procedimento de emissão e de recepção; [f] fluxo de sentido e não sentido; [g] alteridade como espectro; [h] desejo comunicacional de interatividade humana.

Embora o fenômeno glocal já se fizesse presente desde o final do século XIX, no âmbito da cibercultura é que se torna mais apreensível o acoplamento material, simbólico e imaginário entre o humano e as máquinas capazes de conexão em tempo real. Para Trivinho, isso decorre da tendência de discursos em nível internacional da ascensão da globalização e dos localismos. Esses dois fenômenos são equivocadamente, segundo o autor, “considerados hegemônicos e mutuamente excludentes” (TRIVINHO, 2007, p. 247), porém, eles suscitam, obviamente, reflexões sobre a contextualização do fenômeno glocal.

O glocal pode ser entendido como tempo real e a lógica da civilização atual, exercida pelo fenômeno de globalização do cotidiano impacta diretamente as teorias da comunicação ao propor uma releitura radical das estruturas comunicativas e das experiências humanas instauradas após o advento sui generis da era mediática. A categoria glocal desconstrói as bases da matéria social-histórica e do pensamento tecnoburocrático consolidadas ao longo do tempo. Essa revisão histórica tornou possível a renovação da teoria crítica, tão necessária para o entendimento da cibercultura, cujas principais características são a velocidade e a interatividade, bases do próprio fenômeno glocal.

Desse modo, o fenômeno glocal é o principal responsável pela consolidação da cibercultura, bem como do enraizamento do capitalismo mantido pelo sistema dromocrático. A comunicação mediada por máquinas é “a epopeia técnica da integridade mediática do globo segundo a lógica do glocal” (TRIVINHO, 2007, p. 245). A clareza crítica que o conceito

abarca contrapõe-se ao contexto que ele engendra, demonstrando o quanto está indexado à própria lógica na qual opera em todos os âmbitos da existência humana.

[...] cada ambiente global se equipara, em seu recorte minoritário, a um “sistema operacional geral”, destinado a efetivar, a partir de cada ponto de acesso/recepção/retransmissão, as necessidades multilaterais de imortalização da civilização global e das suas macroestruturas de desenvolvimento da existência em tempo real. (TRIVINHO, 2007, p. 274).

Considerando o ponto de vista do autor, “o glocal, como categoria crítica, demonstra a vivência em tempo real, sendo analisada a partir de cinco elementos: [1] a dependência dos objetos tecnológicos e da internet; [2] o acoplamento compulsório entre corpo/mente e máquinas/fluxos comunicacionais como modo de auxiliar as atividades do cotidiano; [3] as relações sintetizadas na socioespacialização das telas, compostas por paisagens mediáticas que emergem como “real prioritário”, em detrimento do real não exposto pela visibilidade mediática; [4] a abordagem da alteridade como espectro; [5] a adesão – voluntária ou não – ao modelo de civilização atual, como estratégia de legitimação dessa sociedade e da consolidação do sistema capitalista. Os elementos ora citados, em maior ou menor grau, explicitam o fenômeno da dependência em relação à interatividade em tempo real (glocal) e à velocidade (dromocracia).”

A vida se torna desmedida, perde-se na escala infinita do “sempre mais” e do “mais rápido”, caraterísticas observadas por Paul Virilo (1996), que define a lógica da velocidade como dromocracia. O termo origina-se do conceito de dromologia, fenômeno baseado no deslocamento, na corrida ou no movimento, e que tem seu sentido derivado do grego dromos. Para Virilo, a velocidade possui valor primordial nas estratégias políticas e militares de cada época, sem exceção dos dias atuais. Trivinho amplia e aprofunda a análise do impacto da dromocracia na sociedade atual ao enfatizar que, embora a velocidade estivesse presente ao longo da história, pautando a existência humana, no contexto atual ela se constitui como regime totalitário e invisível com o advento de uma sociedade marcada por instrumentos infotecnológicos amplamente saturados pelo uso cotidiano. E, por alcançar seu ápice como articuladora de todos os processos sociais, indo da esfera do trabalho à do lazer, a velocidade impacta na constante produção, distribuição e reciclagem de tecnologias e no consumo de bens e serviços que mantêm o sistema dromocrático contemporâneo.

Existem conexões íntimas entre a velocidade tecnológica como princípio de estruturação e modulação da vida social e o imperativo da saturação ad infinitum como telos inexorável de qualquer produção [...]. A primeira

coordenada propende para a segunda, otimizando-a, e esta, por sua vez, fomenta aquela, num inacabável círculo vicioso em que se confundem causa e efeito, origem e destino. (TRIVINHO, 2007, p. 64).

E, sendo a velocidade uma das características principais da comunicação em rede, cabe ressaltar o quão efêmeros foram e são esses movimentos. Interessante observar o poder de viralização de postagens e mobilizações nas redes sociais em torno de determinadas causas, a uma velocidade impensada e atingindo um número expressivo de pessoas. Essa é uma possibilidade associada a características das novas tecnologias e ao grau de comunicação e interação que engendram. Ou seja, após ser postada na rede, uma mensagem assume “vida própria”, não tem mais dono, é por natureza imprevisível, uma mensagem auto-eco- organizativa. Desse modo, percebemos que as novas tecnologias da comunicação e da informação têm contribuído para uma série de modificações de ordem estrutural na sociedade contemporânea. É cada vez mais corrente a ideia de que os alicerces de nossa sociedade estão sendo reconstruídos com base na consolidação da sociedade em rede. A velocidade de transmissão de informações propiciada pelas novas tecnologias, notadamente a internet, tem alterado de maneira igualmente drástica as formas entre o espaço e o tempo, bem como o agenciamento das práticas subjetivas, sobretudo do mundo religioso. Com o processo de amadurecimento técnico e tecnológico do capital na primeira metade do século XX, o ideal de produtividade do espaço deixou de ser exclusivo do mundo empresarial e do trabalho e consolidou-se socialmente, posicionando a velocidade no imaginário coletivo como um valor, com a função de atribuir sentido a um mundo de vida economicamente produtiva. A religião, como parte da cultura, transformou-se em produto, e novas acepções políticas e filosóficas geraram um modelo de práticas sociais inéditas, como aponta Jameson (2006). Integrado a esses elementos está o próprio modus operandi mediático conhecido como “tempo real”, socialmente assimilado como propriedade matricial positiva por significar a eficácia na relação entre tempo e espaço como coordenadas do corpo na vida social. A lógica da comunicação em tempo real é reproduzida e transformada em dromocratização27 do corpo e da mente, manifestada como aceleração generalizada de formas expressivas da existência – do pensamento, da ação, da percepção, da fala, das atitudes e das interações com o mundo e consigo próprio.

27 “O termo dromocratização constitui-se a partir do prefixo grego dromos, significante indicativo de corrida, para nomear um regime que institui o domínio sobre o território como lógica existencial para toda a velocidade.” (TRIVINHO, 2007, p. 45-46)

Harvey (1992) explica que, com o advento do pós-modernismo, houve uma quebra do modelo de desenvolvimento capitalista do pós-guerra; tudo passou a funcionar de acordo com novas urgências. Esse dado trouxe consigo mudanças nos sistemas produtivos, dando-nos a sensação de que o mundo está cada vez menor em função dos avanços da tecnologia, que vêm possibilitando ampliar o distanciamento físico e reduzir o tempo nas relações comunicacionais. Perdemos de vista as fronteiras. Criam-se novos signos e significações através da imagem, a mídia dá um tom urgentemente transitório à vida. A vida se torna desmedida, perde-se na escala infinita do “sempre mais” e do “mais rápido”, caraterísticas já observadas por Paul Virilo (1996), definidas como a lógica da velocidade dromocrática. Sabe- se que, na pós-modernidade, a maior ruptura que sofre a instituição religiosa Católica é a perda de controle sobre o conjunto de valores que formam os sistemas de socialização primária das gerações. Ao registrar dissonância entre os valores que regem a realização pessoal, as formas de lazer, a busca da justiça social, os anseios e prazeres, e os parâmetros sugeridos pelas instituições religiosas, verifica-se que as próprias igrejas perdem força de integração e plausibilidade. Nessa dinâmica do catolicismo deste século, marcado pelo tempo da luz e regido pelo dromos, os locais dos rituais católicos são quebrados por imposição da lógica do tempo atual. A religião também passa por todos esses efeitos da era em que vivemos. Como nossa Tese trata da visibilidade mediática e da religião na constituição de narrativas nas redes, buscamos aqui exemplificar os caminhos pelos quais passa o catolicismo em alguns cenários, como Brasil e Vaticano, para dar uma ideia da amplitude mundial desta glocalização.

A seguir apresentamos três exemplos reais de como a religião Católica tem se constituído com visibilidade mediática pelo fenômeno glocal: um exemplo é do Brasil e os outros dois são internacionais, dinamizados e operados pela Secretaria de Comunicação do Vaticano.

O exemplo do Brasil é um portal católico com mais de milhares de seguidores, chamados de devotos de Aparecida, em referência ao maior santuário católico do Brasil, que se conjuga a uma TV – a TV Aparecida – com mais de dez anos de história, que se destaca entre as 14 maiores redes de televisão do Brasil. Há também o portal A12.com, que entrou no ar em 2010, com o objetivo de unir no mesmo endereço na web as instituições: Santuário Nacional, Fundação Nossa Senhora Aparecida (Rádio e TV Aparecida) e Unidade Redentorista de São Paulo, disponibilizando um grande volume de conteúdo aos internautas. Entre vários exemplos da glocalização da religião, optamos por destacar a vela virtual, que fica dentro de uma seção do site chamada Reza no Santuário, em que também há outros

recursos, como o terço virtual, que auxilia na contagem das dezenas, e a Bíblia online, que disponibiliza os textos do Antigo e do Novo Testamento. Essa vela virtual nasceu junto com o

site do Santuário e, segundo o padre Luiz Caminho Junior,28 responsável pela comunicação digital do Santuário: “Queríamos criar um espaço em que o devoto possa beber de toda a

mensagem de Aparecida também no meio online”. Segundo Luiz Caminho, há planos de

longo prazo de criar um robô de conversa para os fiéis que usam a vela e o terço virtuais, “[...]

como se fosse Maria acolhendo os pedidos de bênção”.

A fé daquele que crê ou deseja pedir algo ao santo pode ser exercida em sua própria casa. Ali o fiel pratica a sua religião através do computador, conectando-se ao mundo sagrado a qualquer hora que desejar, individualmente ou com sua família. Diferente das narrativas das devoções populares/grupais tão divulgadas pelo catolicismo no mundo, em que o valor estava nas procissões, orações em grupos e nas manifestações aos santos e objetos de devoção, centradas na comunidade de pessoas, o novo modelo de devoções centradas nas devoções virtuais acabam se tornando meros elementos dos interesses pessoais cristalizados no indivíduo moderno. A religiosidade moderna é individualista, centrada no meu espaço, nas

minhas necessidades, no meu tempo, o que é próprio da contemporaneidade. A religião no

mundo virtual passa a oferecer ao fiel um cenário de serviços e bens simbólicos religiosos, um mercado de consumo de orações, e fé, entre tantas outras expressões do espaço privado e cômodo da devoção.

Figura 15: Página das devoçoes virtuais A12

Fonte: Site A12.com

Há várias opções de uso de orações para internautas. No ícone Vela Virtual, há a frase Acender Vela, para o que é necessário fazer o login com dados sobre o visitante, que posteriormente alimentarão o banco de dados do santuário, cujo foco é a busca de mercantilização da religião por meio dos chamados devotos associados. Há alusão à expressão de conexão entre o real (pessoa) e a imagem virtual de Aparecida, presente no imaginário religioso dos católicos. A fé é deslocada para o mercado, que fornece bens religiosos de alta qualidade, providenciando produtos específicos para os interesses religiosos do público devoto que configura o catolicismo na condição glocal, que “rearranja continuamente as relações entre público e privado, coletivo e individual, imaginário e real, próximo e distante, interno e externo, familiar e estranho, entre outros pares doravante hibridizados e dissolvidos” (Trivinho, 2012, p. 111). A experiência religiosa Católica é propiciada através dos símbolos, orações e gestos, que, em seu conjunto, dão sentido ao que chamamos de fé.

Tradicionalmente, na religião Católica, no ato de acender velas para imagens de santos, o pedido não poderia ser publicitado, a não ser que o fiel o fizesse verbalmente. A passagem do espaço local, da prática tradicional de acender a vela, para o ato de acender a vela virtual ultrapassa as fronteiras do local; acender a vela já remete à exposição de seu pedido, que é feito acessando a página do site e preenchendo um formulário com alguns dados. Para que se objetive a experiência religiosa, é necessária a dimensão simbólica, que a viabiliza. O símbolo é a revelação sensível do sagrado, que nos religa àquilo que temos como santo. Ele desdobra-se na matéria e no acontecer simbólico até tornar-se cosmos delimitado pelo espaço e pelo tempo, tornando o mundo significativo. Diferente do conceito e da alegoria, o símbolo religioso traz sempre um resquício místico, que revela seu caráter de segredo, de selo santo.

Documentos relacionados