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Figura 17: Rosário Digital - O dispositivo inteligente e interativo

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Fonte: Site do Aplicativo Click To Pray

Com o lançamento do aplicativo e-Rosary, o “relógio” inteligente da Igreja Católica, que busca criar uma rede integrada de devotos no mundo, destacamos a face inovadora da Igreja neste cenário, entre visibilidade, narrativas e velocidade. O aplicativo funciona como uma espécie de “Spotify Católico”, que permite compartilhar orações com outros fiéis e até com o próprio Papa Francisco. O rosário é uma das mais antigas orações da Igreja Católica, tradicionalmente dividido em três partes iguais, com cinquenta contas cada, que, por corresponderem à terça parte, foram chamadas de terço. Cada terço compreende um conjunto especial de três Mistérios: os Mistérios Gozosos, os Mistérios Dolorosos e os Mistérios Gloriosos.

Em um cenário em que ocorre muitas interações entre indivíduos e dispositivos tecnológicos, a Igreja Católica lançou o Rosário Digital. Físicamente, o dispositivo é constituido de dez contas do rosário, fabricadas com hematita e ágata negra, e uma cruz

inteligente, que armazena todos os dados tecnológicos conectados ao aplicativo. Quando se ativa o dispositivo, o usuário pode escolher entre rezar o rosário comum (tradicional), ou um dos rosários contemplativos, digamos temáticos (com imagens da vida de Jesus Cristo), que serão atualizados a cada ano. Os rosários contemplativos vão ficando armazenados no dispositivo, compondo um “cardápio” de escolha para o usuário. Uma vez que se começa a rezar, o rosário inteligente mostra seu progresso à medida que avança sobre os diferentes mistérios, e guarda um registro de cada rosário rezado. A marcação do tempo é feita pela tecnologia, que dá um feedback por meio de um aplicativo de smartphone.

O lançamento do e-Rosary aconteceu no Departamento de Imprensa da Santa Sé, em coletiva de imprensa, em outubro de 2019, em que o padre Frédéric Fornos, Sacerdote Jesuíta, (SJ) Diretor Internacional da Rede Mundial de Oração do Papa (que inclui o Movimento Eucarístico Jovem), apresentou o projeto, explicando sobre a intenção na criação do eRosary e sua utilidade.

A WT é um tipo de tecnologia predominantemente digital, que se manifesta em um grande número de formatos e que, potencialmente, se hibridiza ao corpo do usuário, gerando diversas configurações entre o humano e a máquina. Essa tecnologia também é apropriada por marcas e empresas, que começam a utilizar determinados aparatos como ferramentas estratégicas em suas campanhas de comunicação e marketing e medidor de performance para praticantes de exercícios físicos, e opera como plataforma de propaganda de produtos da empresa. Atualmente, há uma variada gama de produtos da categoria wearable, cujas funcionalidades se voltam para o campo de atividades esportivas e a área da saúde. Por conta da “leitura” de dados corporais por meio de sensores, grande parte dos aparatos que se encontram no mercado concentram seus esforços nessas áreas. Essa tecnologia se insere nas novas formas de acoplamento e hibridização e na grande penetração das redes digitais de comunicação, sociabilidade e negócios.

O acessório pode ser usado tanto para monitorar exercícios quanto personalizar uma oração, conforme a informação que encontramos na descrição do produto: “além de rezar, é

um assistente pessoal de saúde. Além da oração diária, o dispositivo também te registra e apresenta teus dados de saúde, para te animar a ter um melhor estilo de vida”.

Dessa forma, a Igreja Católica entra no crescente fenômeno dos wearables: roupas, calçados, acessórios e qualquer tipo de dispositivo conectado à internet que se pode vestir. Imbricada no contexto da cibercultura, definida por Trivinho (2007, p. 74) como relações vinculadas ao objeto infotecnológico, ao cyberspace, a tecnologia faz parte de uma série de

processos que, de certa maneira, alteram o cotidiano e a relação de determinados indivíduos com marcas e empresas.

Embora moderno e com alta tecnologia, o rosário digital aciona o imaginário de uma das matrizes culturais do catolicismo: a devoção popular pelo terço. Entretanto, ele também evoca os mistérios salvíficos do rosário tradicional, por contar o tempo de oração e cuidar da saúde, dois bens importantes para o ser humano, transformando a devoção tradicional num jeito moderno de viver a fé. Com a pulseira do eRosary atrelada ao corpo humano, produz-se uma narrativa que se inicia com a prática da oração transmitida para o smartphone, além de um registro do tempo de reza e a intensidade da oração, marcando o desempenho da fé que é narrado nesse sistema. Nessa nova realidade, as práticas religiosas tradicionais são reconstruídas e ressignificadas de acordo com as novas tecnologias.

Se a estética e a invocação são alguns dos dados contidos no rosário digital, a recuperação de um elemento tradicional é consubstancial a um processo de apropriação do passado, ressemantizando as origens, a vida de Cristo, no contexto de novidade que configura o aplicativo. A tradição está vinculada ao tempo, à memória, à inventividade e, embora decorra do passado, é um ato do presente. Giddens (1991) ressalta que as tradições são reconfiguradas pelas transformações geradas pela globalização, pelo pós-moderno e pelo modo com que a velocidade dos meios de comunicação e a disseminação de informações têm criado novos estilos de vida, mundializados. Se, por um lado, a oração do terço remete à tradição, por outro lado, remete ao esoterismo, numa mescla de crenças. No imaginário de um dos idealizadores, a ligação entre a tecnologia e a oração é normal: “Por ser um símbolo

cristão por excelência, e o rosário é uma oração Católica, cristã, e por isso, para acionar esse dispositivo se escolheu fazer este gesto, o sinal da cruz, porque também é um gesto como sempre fizemos a nossa oração31”.

A mistura de elementos do catolicismo com o esoterismo é outra vertente cristã que no passado foi palco de grandes perseguições e hoje se destaca como hibridismo religioso, reunindo a cruz a pedras em uma estética moderna da fé. Mesmo transformado, o rosário proclama a continuidade dos valores tradicionais da Igreja, é uma afirmação do retorno necessário à autenticidade de um passado perdido que é ressignificado no presente. No texto informativo sobre a sua fabricação consta que o e-Rosary é feito de grãos de ágata negra e abelhas de hematita. A ágata negra é uma pedra utilizada há milhares de anos como um símbolo esotérico para trazer sorte e beneficios energizantes de cura. Era usada no Egito como

amuleto dos faraós, para protegê-los dos raios e das tempestades, aplacar a sede e ajudar na verbalização. É um cristal que tem o poder de harmonizar as forças positivas e negativas que mantêm o equilíbrio do Universo. A hematita é uma pedra também associada à cura de doenças ligadas ao sangue, porque hematita significa ‘sangue’, em grego. Ao ser polida, ela solta uma cor avermelhada intensa na água, muito semelhante ao sangue, devido à sua alta concentração de óxido de ferro.

Figura 18: e-Rosary

Fonte: Site do Aplicativo Click To Pray

No site da Amazon,32 onde o rosário digital está à venda, encontramos a seguinte descrição do produto:

Pulseira de oração digital com conexão Bluetooth, resistente à água, recarga sem fio, adequada para atividades esportivas. Peso 24g, iOS/Android, cor preta, unissex. Grãos de ágata negra e abelhas de hematita se unem com

uma cruz cuidadosamente acabada, simbolizando uma fé duradoura.

Um dispositivo conectado a um aplicativo com o qual você pode rezar o rosário com o guia de conteúdo audiovisual especial. Uma iniciativa para orar pelos desafios do mundo e pela missão da Igreja. Um áudio-guia para

contemplar e ouvir o evangelho. Atende ao padrão IP67 para impermeabilização de poeira e água, ótimo para uso diário, ao ar livre e até mesmo em dias chuvosos. Aplicativo compatível com sistema operacional iOS e Android.

As estratégias de venda da mensagem dos produtores de significados, de discursos religiosos é cada dia mais aparelhada ao mercado e à tecnologia, que marca grupos de diferentes idades na venda de produtos com novas formas de linguagem. A Igreja incorpora a lógica mediática por se tratar de um investimento “nobre”, evangelizar, e se nutre desta sociedade, alimenta os seres que a ela pertencem, proporcionando-lhes um mercado de bens simbólicos. Se a sociedade de consumo estabelece comportamentos e dota de sentido a ação humana, configurando as novas subjetividades modernas, a religião, especificamente o catolicismo, se insere cada vez mais nessa cultura. Para Slater, “a cultura do consumo está ligada à ideia de modernidade, de experiência moderna e de sujeitos sociais modernos” (2002, p. 18). É uma cultura constituída pelo acesso às mercadorias, bens e serviços antes inexistentes e pela democratização dos usos, uma cultura que estabelece arranjos e cria diferentes estilos de vida, modificando comportamentos e processos comunicacionais individuais e coletivos. A gestão, a distribuição e o consumo de informações sobre o sagrado voltadas à experiência religiosa apropriam-se das mídias sociais para ressignificar publicamente os mais diversos aspectos de uma vida de fé.

Sobre o pensamento da Igreja, o padre Antonio Valério explica:

[...] é mais um meio a quem interessar pelo mundo da tecnologia para rezar o rosário pela paz, e por isso foram escolhidas também as características deste dispositivo, que é uma tecnologia de ponta. Boa tecnologia e resistente. Durável, que possa ser intuitiva e usada com muita facilidade, sobretudo pensada para um público que gosta da tecnologia e um público mais jovem, e por isso o nível do conceito do próprio dispositivo está pensado para este público. Sobretudo chega-se a pessoas que não rezariam o terço de outra forma. Nós teríamos aqui milhões de pessoas em todo o mundo, sobretudo os mais jovens que usam os meios digitais para entretenimento, seja de jogos ou outro meio de comunicação, e por isso usar um meio tecnológico para a oração. Como os modelos tradicionais não conseguem chegar e estamos claramente numa área de fronteira que é um público juvenil interessado

em tecnologia, por isso há uma forma de fazer chegar uma proposta de

oração e que é a proposta da Igreja Católica muito específica e conta com a tecnologia de ponta. Creio que tem muito a ver com o conceito do que é o link, do que são as aplicações e com o processo do próprio utilizador.

Com esse produto, lançado em 2019, a Igreja assume uma das mais inovadoras

performances narrativas religiosas neste mercado, para além dos compartilhamentos de

discursos que se entrelaçam, se alteram e se reconfiguram dentro deste universo social (BACCEGA, 2008), entrelaçando a figura da empresa com a do consumidor. O catolicismo se apresenta com ferramentas com as quais os usuários podem narrar seus feitos orantes em rede, constituindo-se uma experiência que conjuga oração, marca, sociabilidade e tecnologia. Neste cenário, conforme aponta García Canclini (2003, p. 69), estudar tantas possibilidades de comunicação requer converter-se num “especialista de intersecções”, pois é preciso enxergar não só os usuários e as tecnologias, mas também as complexas relações que se dão entre eles.

A junção da religião com a tecnologia reescalona a tradição na modernidade por vias de hibridizações entre oração, corpo e tecnologia na “direção da formação de um processo imaterializado e financeirizado de circulação e consumo de bens e serviços com enfática sobredeterminação (no sentido de fortíssima marca de motivação) de fatores sígnico- comunicacionais em tempo real” (TRIVINHO, 2011, p. 35).

CAPÍTULO IV – NOVAS DINÂMICAS NAS NARRATIVAS DO

CATOLICISMO IMPLANTADAS PELA COVID-19

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