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Comunicação e Frente Ampla: formulação “de baixo para cima”

3. NA TELA DA TV E PELO RÁDIO: O URUGUAI NA HISTÓRIA

3.6. Comunicação e Frente Ampla: formulação “de baixo para cima”

Após abordarmos características da história sociopolítica recente do Uruguai, centrando-nos na caracterização da formação de uma organização à esquerda, a Frente Amplio, cabe-nos, nesse momento, compreender melhor o processo de aprovação da lei sobre comunicação e, nesse sentido, surge o questionamento: quais as opiniões formuladas, qual o acúmulo e a incidência que a F.A tem sobre comunicação?

Dado que não há fatores preponderantes de formulação sobre o tema nas origens do movimento, na década de 1970 — o que por si só já pode ser considerado uma lacuna — vamos nos ater ao período posterior a 1985. O período ditatorial, como já abordamos, assegurou a permanência do oligopólio empresarial e tratou o tema como de “segurança nacional”, praticando uma censura informativa severa. Segundo Kaplún (2007), o debate sobre políticas de comunicação, nesse sentido, foi historicamente escasso no país. Com poucas exceções, o tema não mereceu a devida atenção das áreas acadêmicas, políticas ou sociais. Nem as propostas de uma “Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação” (MACBRIDE, 1980) e reformas

pontuais do sistema de mídia que países latino-americanos tentaram nos anos 1970 e 1980 (apud FOX, 1988) reverberaram no Uruguai (KAPLÚN, 2007).

Alguns antecedentes históricos, no entanto, podem nos auxiliar a entender como se construíram determinadas políticas de comunicação no país, notadamente sob o olhar da Economia Política da Comunicação (EPC), conforme proposto pelos autores Fernándéz, Buquet e Kaplún (2015). Seis, portanto, seriam estes antecedentes que merecem destaque: 1) o surgimento do canal de televisão público em 1963; 2) uma breve tentativa pós-ditadura de melhorar o sistema, liderada por Carlos Maggi em 198545; 3) a distribuição de novos serviços de televisão para assinantes em 1993; 4) o surgimento da TV Ciudad46 em 1996 como parte de uma negociação feita para atribuir licenças para serviços de assinantes em Montevidéu; 5) o surgimento de rádios comunitárias por volta de 1994 e 6) a criação da URSEC em 2001.

Estes antecedentes demonstram a predominância de atores comerciais privados, com um núcleo central na televisão de Montevidéu e um impacto — relativamente fraco — para a mídia pública-estatal como forma de equilibrar o sistema de mídia. Também o surgimento incipiente de um terceiro setor — o chamado “comunidade” — e as primeiras tentativas de modernização do quadro regulatório e institucional, de uma perspectiva liberal de defesa da concorrência e regulação “independente” (FERNÁNDEZ; BUQUET; KAPLÚN, 2015, p.2).

Tal escassez de políticas de comunicação de fato democratizantes, plurais, somada à falta de regras para combater o oligopólio privado, encontra raiz na estratégia hegemônica das elites uruguaias — tanto historicamente, incluindo o período ditatorial, quanto nas décadas de 1980 e 1990, com o predomínio de governos neoliberais.

Cabe-nos também investigar e analisar o que foi feito como luta contra- hegemônica nesse período. Sobre o tema da democratização da comunicação, por exemplo, apesar dos esforços de parte das organizações da sociedade civil, houve grave lacuna de acúmulo sobre o tema por parte da Frente Amplio. Nos programas partidários da organização para as eleições de 1984, 1989, 1994 e 1999 não há menção a reformas estruturantes do sistema de mídia. Apenas para as eleições de 2004 que a F.A se propôs a debater o tema com dedicação e aglutinando

45 Carlos Maggi foi diretor do canal 5, estatal, após a reabertura democrática. Propôs um canal com

forte base informativa e produções próprias. No início teria contado com o apoio do governo, porém, mais tarde, o projeto terminou com a sua renúncia e a de seus colaboradores (PEREIRA, 2014).

46 A emissora pública municipal de Montevidéu propõe uma linguagem inovadora, dinâmica e passa a

conhecimentos adquiridos com o processo. O pontapé inicial coube à Unidade Temática de Mídia de Comunicação (UTMC), formada por uma comissão responsável pelo “Programa da Frente Ampla”. Antes, em 2003, o Congresso anual da organização também iniciava a proposta de sugestões e apontamentos conceituais importantes:

Será estimulada a democratização dos meios de comunicação e de informação, tanto públicos como privados; seu uso será a serviço da comunidade, da divulgação artística, esportiva, científica e técnica; da promoção de valores nacionais e da expressão dos vários setores sociais e políticos do país. Não há desenvolvimento real nem integração nacional sem ferramentas adequadas. A implementação de políticas que nos permitam acessar os meios de comunicação é uma necessidade. Hoje não temos liberdade de imprensa, há liberdade de empresa. O quarto poder foi destruído e pisoteado pelas associações de mídia. Não temos uma legislação adequada que permita o uso racional e o acesso das correntes de expressão, por isso é essencial retirar o controle dos meios do Ministério da Defesa. É necessário promover uma lei que regule definitivamente o funcionamento dos meios eletrônicos de comunicação, para que os uruguaios e as uruguaias possam ter as mesmas possibilidades de acesso e uso dos meios de forma democrática (FRENTE AMPLIO, 2003, p.7).

A partir, então, da continuidade de esforços para ouvir entidades da sociedade civil e promover debates em espaços sociais, acadêmicos e políticos, o grupo destacado da UTMC produziu dois documentos (2003 e 2004). Neles, apresenta um diagnóstico e linhas estratégicas para reformas e medidas governamentais. Posteriormente, muitas sugestões foram de fato colocadas oficialmente no programa partidário, incluindo a elaboração de uma nova lei para a radiodifusão. É o que demonstram as propostas elaboradas em 2003:

Fortalecer os atores público/estatais, tanto os que se referem a uma mídia pública quanto em relação à comunicação governamental, o desenho de políticas de Estado e de regulação; Promover a emergência e o fortalecimento do setor social-comunitário e a produção independente, eliminando travas legais e fortalecendo mecanismos de estímulo; Diminuir a concentração no setor privado comercial, favorecendo uma maior competição e estimulando a qualidade de seus conteúdos; Para isso se propõe aplicar a legislação “latente”, preparar um novo marco regulatório e gerar mecanismos de incentivo à diversidade cultural e às indústrias criativas locais; e promover uma crescente participação dos cidadãos nas decisões sobre o assunto, por meio de ações educativas, mecanismos consultivos e estímulos à intervenção cidadã (UNIDADE TEMÁTICA DE MEIOS DE COMUNICAÇÃO, 2003, p. 7).

Já no ano seguinte, com a proximidade das eleições, o grupo propôs medidas de curto prazo, elencadas abaixo e que já dão início a polêmicas questionadas pelos

meios de comunicação dominantes no país (como a previsão de criação de um Conselho de Comunicação, como veremos adiante):

Reestruturação do sistema público de mídia, com mecanismos de participação cidadã; Regularização das rádios comunitárias; Abertura da competição na televisão para assinantes; Racionalização da publicidade estatal e critérios transparentes para sua distribuição; Apoiar medidas para a produção local e incentivos para a qualidade de conteúdo; Promoção do software livre e dos usos educativos e comunitários da Internet; Lei de acesso à informação pública; Criação de um Conselho Consultivo de Comunicação com participação da sociedade civil e criação de um órgão ministerial para elaborar políticas para a área, realocando para o diretório de Comunicação no Ministério da Educação e Cultura ou criando um específico (UNIDADE TEMÁTICA DE MEIOS DE COMUNICAÇÃO, 2007, p. 3).

A relação do que foi formulado pela F.A em matéria de democratização da comunicação ao longo dos anos, notadamente antes dos períodos eleitorais, reforça que, já no governo, a organização revelou sofrer contradições internas gravíssimas, como veremos a partir, principalmente, da hesitação de Mujica em prosseguir com a pauta, ou seja, apresentar ao Parlamento um projeto de lei como a LSCA. O evidenciado acima continuou nos anos seguintes: a partir da formulação inicial de organizações da sociedade civil, com o devido apoio de setores mais à esquerda dentro da F.A, a pressão pela aprovação da LSCA também se revelou uma cobrança por coerência, principalmente com o que a própria F.A acumulou de conhecimento ao longo dos anos sobre democratização da comunicação, constante em seus programas partidários. Mas, o que ocorreu na prática, com a chega da F.A ao poder, foi diferente.