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3. NA TELA DA TV E PELO RÁDIO: O URUGUAI NA HISTÓRIA

3.8. A sociedade civil uruguaia: um retrato e um histórico inacabado

3.8.1. Democracia e Estado forte: combinação à uruguaia

Mesmo considerando o período ditatorial, de 1973 a 1985, autores como Buquet y Chaquetti (2004) chamam a atenção para o fato de que o país também se diferencia no quesito democrático e que o Uruguai, comparativamente com a região, viveu poucos períodos do século XX sem democracia.

Pesquisas sociais como a Latinobarometro50 corroboram essa tese, apesar de apontarem uma queda no apoio ao sistema democrático nos últimos anos na região. Segundo os dados da pesquisa lançada em 2017, o país cuja população mais declarou “apoio à democracia” foi a Venezuela, com 78%. Seguido pelo Uruguai (70%), pelo Equador (69%), Argentina (67%) e Costa Rica (62%). Os países onde os cidadãos menos apoiam a democracia são Honduras (34%), El Salvador (35%) e Guatemala (36%). O Brasil atinge 43%. Ainda segundo a pesquisa, os dois países com apoios à democracia historicamente mais elevados na região foram: Uruguai (seis pontos percentuais em 2017 abaixo de 2015) e Costa Rica (10 pontos percentuais a menos entre 2010 e 2017). E, em outro questionamento, apenas três países estão “satisfeitos”

50 Estudo de opinião pública que realiza, anualmente, cerca de 20 mil entrevistas em 18 países da

América Latina, representando mais de 600 milhões de habitantes. A Corporación Latinobarómetro, segundo definição própria, é uma organização sem fins lucrativos sediada no Chile. Disponível em <www.latinobarometro.org>.

com sua democracia: Uruguai (57%), Nicarágua (52%) e Equador (51%) (LATINOBAROMETRO, 2017).

Além desse elevado apoio à democracia, comparativamente, ainda no âmbito dos aspectos sociais, políticos e culturais, outra caracterização é a percepção de que o país contou com o Estado cumprindo um papel-chave na condução e no impulso de políticas sociais e educacionais avançadas:

O Uruguai tem uma longa tradição de estatismo. Desde suas origens como país independente ele constrói uma identidade nacional fortemente referida no aparelho estatal como motor do desenvolvimento, garantia de igualdade e integração social. O país conhece cedo um processo de modernização, que começou nas últimas três décadas do século XIX, e, desde o início do XX, um estado de bem-estar que gera uma atração de importantes contingentes de imigrantes e promove uma política de integração ativa. A educação e, em particular, a escola pública, constitui um elemento-chave nesse processo, devido ao enorme sucesso obtido na alfabetização da população criolla e dos novos imigrantes, além da sua capacidade de formação tanto dos cidadãos exigentes do ainda incipiente Estado democrático, como de trabalhadores para as numerosas posições nas nascentes empresas, públicas e privadas (MARRERO; CAFFERATTA, 2008, p.190).

Para Garcé (2017), a tradição estatista do Uruguai também pode ser exemplificada em acontecimentos mais recentes, como a regulação da venda e do uso da maconha, fator que chamou bastante atenção da imprensa internacional durante a presidência de José Pepe Mujica:

O Uruguai tem sido vanguardista quando o assunto são direitos civis, políticos e sociais. Agora está na vanguarda dos direitos de “nova geração”. Mas segue predominando uma cultura política mais estatista que liberal no plano econômico. Nesse sentido, a regulação da produção da maconha é muito ilustrativa: a comercialização passa a ser permitida, mas a produção é estatal e está fortemente regulada. No fundo, não é muito difícil entender esse “paradoxo”. A tradição batllista e a frenteamplista são parecidas. Vanguardistas nos direitos sociais, porém mais estatistas do que liberais na economia (GARCÉ, 2017).51

E essa “cultura política” do país, evidentemente, reverbera na composição das organizações da sociedade civil. Nesse aspecto, para Moreira (2011), o modo de fazer política no Uruguai acabou baseado em um padrão estatista e partidocêntrico, ou seja, centrado nos partidos políticos. López Maya (2007) corrobora ao afirmar que a sociedade uruguaia “nos é sempre apresentada como improvável de confronto e

51 GARCÉ, Adolfo. Entrevista para revista brasileira Nexo. 2017. Disponível em

política de rua, onde até agora o papel de organizações populares e movimentos sociais tem sido ofuscado pelo papel dos partidos políticos” (LÓPEZ MAYA, 2007). Moreira (2010) segue sua análise afirmando que, desde o nascimento do Uruguai, os partidos políticos e o Estado desempenharam um papel tão fundamental que seria possível afirmar que não houve uma tradição notável de movimentos sociais que poderiam ter controlado, monitorado ou obstruído as ações do mesmo. Em seguida, ele apresenta uma ressalva, de que isso não significa que as experiências sociais de natureza política não existiram ao longo do século XX, mas que “os movimentos foram tão intimamente ligados ao aparelho do partido que eles funcionaram como uma espécie de braço social dos partidos políticos” (MOREIRA, 2010, p.16). Para tal, ele focaliza no processo de lutas sociais das décadas de 1960 e 1970, baseando-se em duas grandes correntes, trabalhadoras e estudantes. Para o autor, eles abandonaram a luta social para se consolidar em torno do projeto que levou à fundação da F.A. Assim, ele enfatiza: “Mesmo historicamente grandes lideranças sociais foram construídas geralmente no Estado e nos partidos públicos, ou seja, desde o exercício do poder e não em oposição a ele” (MOREIRA, 2010, p.17).

No período de avanço do neoliberalismo nas décadas de 1980 e 1990, no entanto, segundo Falero (2003), o papel exercido pelas organizações sociais foi fundamental. Ainda que concordando com Moreira no que diz respeito à tamanha proximidade das organizações com a tentativa de eleger a F.A, o autor considera como chaves no enfrentamento ao neoliberalismo daquele período o movimento sindical, o estudantil e vários outros dispersos. Em relação ao movimento sindical, destaque para uma greve geral ocorrida em 2003 como resposta à crise econômica severa de 2002 e suas consequências para os trabalhadores. Também pontua reivindicações em 2002 e 2003 feitas pelos bancários e a favor da saúde pública. Esta, inclusive, contou com respaldo de toda a sociedade e de novos dirigentes da Federação de Funcionários da Saúde Pública (FFSP) (FALERO, 2003). Por outro lado, o autor aponta para uma chamada pública feita pela PIT-CNT, em 2002, que contou com setores do capital (por exemplo: Concertación para El Crecimiento) e levou milhares de pessoas às ruas contra as taxas de juros e pela reativação do mercado interno. Essa manifestação não contou, no entanto, com importante movimento social de moradia do período, a Federação Uruguaia de Cooperativas de Habitação por Auxílio Mútuo (Fucvam), que se contrapôs às propostas privatizadoras presentes na marcha (FALERO, 2003).

Traçando um histórico e pontuando os principais movimentos uruguaios pós- ditadura, Falero (2003) também cita o ressurgimento do movimento estudantil no Ensino Secundário, em 1996. As mobilizações incluíram a ocupação de centros educacionais e declarações públicas com insatisfações para além das questões educacionais, incluindo a tentativa de recriação de redes de apoio e organização.

Ainda há que se destacar a atuação do movimento dos Direitos Humanos, principalmente na luta pela punição aos torturadores e na campanha dos desaparecidos da ditadura cívico-militar. Mudando a base territorial, ganhou importância também o desenvolvimento de movimentos locais em cidades do interior do país desde a segunda metade dos anos 1990, e as mobilizações agrárias, com destaque para uma realizada em abril de 1999, quando “dezenas de milhares de produtores rurais lançaram a maior mobilização até Montevidéu na história recente do país” (FALERO, 2003, p.6). Houve outras marchas importantes do campo, como em dezembro de 2000, contra o desmantelamento da produção de açúcar, principalmente do norte do país.

Dentro dessa problematização sobre a atuação recente das organizações da sociedade civil no Uruguai, voltamos a Moreira (2011), que dividiu a atuação dos movimentos sociais no país em três diferentes estágios. O primeiro durou de 1984 até o início de 1990, no auge da recuperação do regime democrático após anos de repressão ditatorial. Destaque para a central única de trabalhadores, a PIT-CNT, que articulou a tradição dos anos 1960 com a nova geração de sindicalistas; a Federação Uruguaia de Cooperativas de Habitação de Auxílio Mútuo (Fucvam); os movimentos de direitos humanos, entre os quais o Serviço de Paz e Justiça (Serpaj) e o surgimento de outros movimentos relacionados à luta por moradia. A pauta unificada eram os desaparecidos da ditadura cívico-militar e a punição aos torturadores do regime (MOREIRA, 2011).

O segundo estágio desse histórico dos movimentos sociais foi marcado pela vitória no plebiscito de 1992, que impediu privatizações de empresas públicas, justamente no período em que a ofensiva neoliberal se manifestou em outros campos de ação do Estado com a chamada terceirização (governo de Luis Alberto Lacalle, 1990-1995).

Aqui, Moreira (2011) ainda salienta que, durante estes dois primeiros estágios, os movimentos sociais teriam moldado sua estratégia atrelados à caminhada da F.A ao poder. Criou-se, assim, um “bloco democrático” que incluiu partidos políticos e

movimentos sociais, além de frações dos partidos Nacional e Colorado, e que se configuraram como um bloco progressista, oposto ao neoliberalismo. Por fim, um terceiro estágio, de 2002 até 2011 (quando o autor finaliza essa análise), com um novo impulso na atividade dos movimentos sociais a partir da chegada do governo F.A, considerando um cenário de crise da aliança com a coligação da esquerda.

E é justamente a partir desse último aspecto apontado pelo autor que cabe voltar a uma reflexão contida mais acima, quando ele caracterizou os movimentos como historicamente tendo sido “construídos desde o exercício do poder e não em oposição a ele”. Fundamental, assim, avaliar brevemente a relação dos movimentos populares, das organizações da sociedade civil, com o governo de esquerda que chegou ao poder em 2005. Afinal, os movimentos sociais uruguaios estariam “anestesiados” e reféns de uma aliança pela continuidade da F.A no poder? Ou, pelo contrário, como já apontado: havia na verdade uma revitalização recente dos movimentos em contraponto às políticas feitas pela F.A?