• Nenhum resultado encontrado

4. CAMINHOS DA APROVAÇÃO: O VERBO PRESSIONAR

4.9. Organismos internacionais avaliam: exemplo a ser seguido

Como já visto neste trabalho, o entendimento de que quanto maior a pluralidade e a diversidade de meios de comunicação no espectro eletromagnético, mais chances um país tem de possuir uma democracia madura e forte, perpassa diversos organismos internacionais de proteção aos direitos humanos. Tais posicionamentos e acúmulos sobre o tema da comunicação têm referências desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), passando pelo relatório MacBride, de 1980, da Unesco, como vimos na seção 1 desta pesquisa. Nas últimas décadas, tais organismos foram além em suas formulações e, de forma um pouco mais enfática, passaram a incidir sobre como a concentração privada dos meios de comunicação prejudica o exercício da liberdade de expressão no mundo.

A Organização dos Estados Americanos (OEA), por exemplo, publicou em 2000 o relatório denominado “Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão”, que deixa claro:

Os monopólios ou oligopólios na propriedade e controle dos meios de comunicação devem estar sujeitos a leis antimonopólio, uma vez que conspiram contra a democracia ao restringirem a pluralidade e a diversidade que asseguram o pleno exercício do direito dos cidadãos à informação. (...) As concessões de rádio e televisão devem considerar critérios democráticos que garantam uma igualdade de oportunidades de acesso a todos os indivíduos (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2000).

A Organização das Nações Unidas (ONU), via Unesco, também traz publicações em que deixa claro que “é amplamente reconhecido que a propriedade e o controle são aspectos críticos para o pluralismo na mídia e que a concentração da propriedade desses meios é uma ameaça ao pluralismo” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E CULTURA, 2016, p. 63).

A Unesco, como vimos, também demonstrou seu apoio inclusive financeiro para a CCD e seus representantes, quando da promoção de debates no ano de 2014. Desde então já demonstravam amparo à LSCA do Uruguai. Naquele mesmo ano, por exemplo, houve discussões sobre a possibilidade de o texto legal afetar a

independência editorial dos meios de comunicação. Além disso, segundo alguns parlamentares e parte da mídia, a faixa de proteção de menores e as cotas mínimas de produção nacional constituiriam uma intervenção estatal que limitaria a independência editorial dos veículos. Na oportunidade, a Unesco posicionou-se. Afirmou, publicamente, que a LSCA “não tenderia a intervir nas decisões editoriais” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E CULTURA, 2015), mas sim no regulamento associado à preservação dos direitos de algumas populações. Ainda segundo o órgão, o Uruguai já tinha em seu arcabouço legal uma série de regras que colocavam o país bem posicionado em matéria de liberdade de expressão. A citação foi ao índice Freedom of the Press, em que o Uruguai lidera o ranking da liberdade de imprensa e respeito pela independência editorial na América Latina (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E CULTURA, 2015).

Ainda durante a tramitação do projeto, em outubro de 2013, a organização Repórteres sem Fronteiras esteve com o Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ) e a Human Rights Watch para uma visita conjunta a Montevidéu. Eles sugeriram algumas modificações no documento inicial da lei e a maioria das propostas foi incluída na versão aprovada pela Câmara na primeira votação, no final de 2013. Outro apoio veio da ONG Artigo 19 que, juntamente com a Repórteres sem Fronteiras, se manifestaram publicamente a favor da LSCA, chegando a classificá-la como “um modelo para a região” (REPÓRTERES SEM FRONTEIRAS, 2013).

A LSCA oferece garantias importantes em termos de descentralização do espaço de difusão e uma distribuição de frequências mais equitativa, sem tentar controlar os conteúdos ou exercer pressões na linha editorial da mídia privada ou pública (REPÓRTERES SEM FRONTEIRAS, 2013).

A partir das mudanças feitas no Legislativo e da promulgação pelo presidente da República, as avaliações sobre o resultado final do texto também foram positivas. Em julho de 2015, o “Seminário Internacional sobre Regulação Comparada dos Serviços Audiovisuais” reuniu novamente, em Montevidéu, representantes da Unesco e da própria ONU — que vieram do Chile, dos Estados Unidos e do Brasil. Lídia Brito, diretora do Escritório Regional de Ciência da Unesco para a América Latina e o Caribe, avaliou como positiva a LSCA. Guilherme Canela, da Comunicação e Informação da Unesco para o Mercosul, o Chile e os países andinos, também apoiou o projeto uruguaio aprovado. Ele relembrou o Comitê Técnico Consultivo, de 2010,

afirmando que esse processo “tinha todos os atores envolvidos” (CARAS Y CARETAS, 2015). Canela, no entanto, ressalvou que, das recomendações da Unesco, dois aspectos foram deixados de fora da LSCA: a proteção de jornalistas contra ataques e uma cessão mais transparente sobre publicidade oficial. Referente ao primeiro ponto, até demonstrou aceitação, ao dizer que no Uruguai esse tipo de situação “não ocorre”. Em relação à publicidade oficial disse que é algo que neste momento “está na mesa”94. Canela ainda afirmou que a Unesco, em 2008, produziu um documento intitulado Indicadores de Desenvolvimento de Mídia, com 150 indicadores, e que muitos deles estão presentes na lei uruguaia:

Quando o governo teve acesso a este documento, pediram cooperação técnica. Fizemos, então, o acompanhamento da discussão, com o objetivo de melhorar o processo de construção desta nova legislação. [...] Não é comum que um conjunto de organizações internacionais, da mais ampla gama, seja convidada por um governo para participar da discussão e construção desse tipo de lei (CARAS Y CARETAS, 2015).

O representante do órgão ressalvou, ao final, que aquele teria sido apenas o primeiro passo — a redação e a aprovação — e que isso “não basta para dizer que o direito está protegido”, fazendo referência à necessidade de implementação efetiva da legislação.

Já o ex-relator para a Liberdade de Expressão das Nações Unidas, Frank la Rue, no mesmo evento de 2015, disse que a lei uruguaia é um modelo, porque garante o pluralismo; apoia a produção nacional; protege crianças e adolescentes; possui critérios transparentes para a concessão de frequências e busca o fortalecimento do sistema de mídia pública. No ano seguinte, a CCD se reuniu novamente com a Unesco e La Rue voltou a destacar a importância da LSCA, tanto no processo participativo de sua preparação quanto em seu esboço final, voltando a defini-la como “um exemplo a ser seguido por outros países da região” (INFOYCOM, 2016).

Trouxemos tais apontamentos feitos por representantes de organismos internacionais pelo fato de que, como vimos, críticas foram feitas internamente no Uruguai, durante e depois da aprovação da LSCA — principalmente as que afirmavam uma pretensa intenção do governo de cercear a liberdade de expressão — mas fica claro que elas não encontram lastro na realidade. E quem afirma isso não são

94 Um dos primeiros anúncios do presidente Tabaré Vázquez quando assumiu o cargo em 2015 foi que

cortaria a publicidade oficial. Em janeiro, ele disse que sua intenção era cortar despesas supérfluas (como publicidade) de entidades autônomas que não tinham concorrência no mercado local.

funcionários do Executivo, de partidos políticos, sindicatos, organizações da sociedade civil, mas sim organismos internacionais que velam, justamente, pela liberdade de expressão no mundo.

Aqui, nesse ponto, ao chegarmos ao final da seção em que propusemos uma investigação sobre as ações e sobre o papel exercido pela CCD — a partir da relação com os atores envolvidos e sob o olhar dos seus componentes — mostra-se necessário voltarmos ao início desse processo para completarmos a análise proposta. Desde quando foi criada, no final de 2010, a CCD aglutinou dezenas de entidades da sociedade civil com o objetivo de incidir sobre a feitura de uma nova legislação para o setor e, primordial à época, chegar ao conjunto da sociedade para aumentar sua capacidade de pressão. Apesar de essa segunda meta não ter sido plenamente alcançada, como apontado por membros da própria CCD, a incidência sobre uma nova lei revelou-se absolutamente exitosa.

Nesta quarta e última seção, voltemos a uma das principais formulações do grupo, os 16 princípios para uma Comunicação Democrática. Quando analisadas nesta pesquisa quais foram as ações estratégicas da CCD, uma delas, como apontado, foi a elaboração desse documento. Ali, não estavam elencadas propostas específicas, como a quantidade de concessões que cada empresa privada de mídia poderia ter, por exemplo, mas ficou consignado que a concentração midiática é prejudicial à democracia e que a limitação do número de concessões deveria constar na nova legislação.

Da mesma forma, ao apontar para a proteção aos direitos das crianças e adolescentes, não foi necessário pormenorizar a quantidade de horas da programação que comporia tal faixa de proteção, mas assegurar que essa política estivesse no texto. E assim foi feito com os demais temas e abordagens propostas pelo documento. Ao final, ao compararmos os 16 princípios com o que foi efetivamente aprovado, as semelhanças são notáveis. Nesse aspecto, certamente, a quantidade de demandas da sociedade que foram transformadas em lei no Uruguai pode ser considerada um marco histórico na democratização da comunicação da América do Sul.

Isso, claro, sempre com a devida ressalva que mesmo legislações tidas como avançadas só conseguirão transformar a realidade quando forem efetivamente colocadas em prática. E aqui há tempo para um último exemplo, uma peculiaridade curiosa relacionada a isso: nas eliminatórias para a Copa do Mundo de Futebol de 2018, na Rússia, a seleção uruguaia enfrentaria a Bolívia no dia 10 de outubro de

2017. Se vencesse, estaria classificada para a Copa. A partida, então, por exigência da lei aprovada (artigo 39), e com uma devida interpretação trazida pela Unidade Reguladora de Serviços de Comunicação (Ursec), foi transmitida para toda Montevidéu na televisão aberta, de forma gratuita. Antes da LSCA, apenas quem tivesse o canal Tenfield, da TV por assinatura, poderia ter visto a seleção nacional de futebol vencer aquele jogo por 4 a 2 e conseguir a classificação para a Copa do Mundo de 2018.

Exemplo singelo, mas que serve para demonstrar o quanto uma lei a serviço da democracia e do interesse público (os uruguaios são apaixonados por futebol), deveria sempre se sobressair aos interesses privados de, no caso uruguaio, apenas três famílias proprietárias que dominam as comunicações do país. Ou, nesse caso, dominavam.