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3. NA TELA DA TV E PELO RÁDIO: O URUGUAI NA HISTÓRIA

3.4. Frente Ampla: a esquerda no poder pela primeira vez na história

A frente política de esquerda que governa o Uruguai desde 2005 completou, em 2017, 46 anos de existência. Fundada em 1971, a Frente Amplio31 aglutinou diversos partidos políticos e movimentos sociais contra o bipartidarismo reinante no país desde a guerra civil pós-independência, no século XIX, a partir de 1839 (TRISTÁN, 2013). A absoluta hegemonia da representação política uruguaia durante os séculos XIX e XX coube aos partidos Nacional (ou Branco) e Colorado. Conservador, liberal economicamente, o Partido Nacional tem raízes rurais, concentrou uma direita pecuarista e oligárquica do campo (MOREIRA, 2000) e hoje se autodefine como nacionalista e de centro-direita. O partido Colorado também tem inspiração conservadora e tendências liberais na economia, mas é mais vinculado aos setores urbanos industriais e contou com períodos de governança com garantias sociais, sobretudo no período batllista32. O partido governou o país por quase cem anos, tendo ficado na presidência de forma sucessiva de 1865 até 1959 (LANZARO, 2003).

A F.A nasce no início da década de 1970 a partir de um contexto social que remete, basicamente, a uma prolongada crise econômica e após ações autoritárias sucessivas por parte do Estado. Em meados dos anos 1950, a queda de preços dos produtos primários aliada a uma estagnação da agricultura e da pecuária resultaram em uma inflação exorbitante e a uma crise social com consequências violentas nas décadas seguintes (MOREIRA, 2008). Em resposta a revoltas sindicais (incluindo

31 A partir daqui vamos utilizar a abreviatura F.A para nos referirmos à Frente Amplio, sempre no

feminino, na tradução para o português.

32 José Batlle y Ordóñez governou o país no início do século XIX e implementou políticas de

nacionalização e estatização, combinadas com legislações trabalhistas consideradas avançadas para a época. Voltaremos brevemente a ele em tópico específico sobre a história da sociedade civil uruguaia.

greves contra demissões e congelamento de salários) e estudantis (contra o aumento de passagens do transporte público, por exemplo), diferentes governos nas décadas de 1950 e 1960 se utilizaram das chamadas Medidas Prontas de Seguridad, ações típicas de exceção, de aplicação transitória, que restringiam direitos individuais33. Tal avanço do autoritarismo culminou em 1968, com o governo colorado de Jorge Pacheco Areco (1968-1972). Apoiado pelo poder legislativo, o pachequismo não só utilizou as medidas de exceção como as transformou em um estado permanente de atividade. Entre as ações estavam: a proibição de diversos partidos políticos; a militarização de empregados públicos; o fechamento de jornais; invasões a universidades e opressões violentas a manifestações, algumas resultando em mortes (KIERSZENBAUM, 2009). Em documento datado de 5 de fevereiro de 1971, dia da fundação da F.A, lideranças do Movimento de Liberação Nacional (MLN/Tupamaros) fizeram uma análise do processo e incluíram as medidas de segurança impostas por Pacheco como um dos motivos para a aglutinação das forças de esquerda. Apesar de não terem aderido formalmente34 à F.A nesse momento, os Tupamaros apoiaram criticamente a formação da organização: “Uma aliança política de forças democráticas, de esquerda e anti-imperialistas era possível, com base em uma unidade sem exclusões” (MOVIMENTO DE LIBERAÇÃO NACIONAL, 1971).

O texto também contextualiza e sintetiza outros antecedentes, apontando três entre os principais fatores para o surgimento35 da F.A: 1) a criação de duas frentes em busca de unidade em 1962 — uma centrada no Partido Comunista e outra no Partido Socialista36; 2) a constituição de uma central única de trabalhadores em 1964, sob a sigla Confederação Nacional dos Trabalhadores (CNT), unificando o movimento sindical e incluindo associações de funcionários públicos, bancários e professores; e 3) a criação do “Movimento Nacional em defesa das liberdades públicas”, constituído

33 Previstas desde a primeira Constituição uruguaia (1830) até a atual, elas já haviam sido usadas, por

exemplo, em situações de guerra civil. Permitem ao Executivo tomar medidas de segurança em “casos graves e imprevistos de ataque exterior ou de comoção interior” (URUGUAY, 1967) [tradução nossa]. Precisam de autorização do Legislativo e autores como Aréchaga (1998) e Gallicchio (2002) comparam tais medidas com ações próprias de um Estado de Sitio.

34 O grupo clandestino Tupamaros defendia a luta armada e por isso não aderiu formalmente à FA.

Apesar disso, a criação do “Movimento dos Independentes 26 de março” (26M), espécie de braço político do grupo, possibilitou a participação em espaços de organização da F.A. O nome faz referência ao primeiro grande ato público realizado pela F.A em 26 de março de 1971, em Montevidéu.

35 A análise é corroborada, por exemplo, por autores como Bruschera (1971) e Bayley (2005). 36 A Frente Esquerda para a Libertação (Fidel), baseada no Partido Comunista, surgiu em 1962 e reuniu

organizações sociais, intelectuais, trabalhadores, estudantes e militantes políticos progressistas de partidos tradicionais. Mais próxima ao Partido Socialista, a União Popular (UP) foi outra frente organizada por amplos setores sociais para disputar as eleições na década de 1960.

por partidos de esquerda; por diretores e reitor da Universidade da República (Udelar); frações de partidos tradicionais; movimento sindical e variadas organizações sociais “para enfrentar o governo de Jorge Pacheco Areco e a política de violar as liberdades através da aplicação de medidas de segurança” (MOVIMENTO DE LIBERAÇÃO NACIONAL, 1971).

Como afirmado, portanto, a grave crise econômica e a repressão sistemática a partir de 1968 criaram uma conjuntura nacional que impulsionou novas movimentações à esquerda, que se somaram a organizações tradicionais:

O crescimento da esquerda uruguaia, partido por partido — porque não só o MLN cresce, é devido à crise econômica. A crise do país, da “Suíça das Américas”, do país batllista, do país das vacas gordas, origina o empobrecimento drástico das classes médias, o empobrecimento da classe trabalhadora, e obriga as classes dominantes a reprimir. A classe trabalhadora responde. Isso surge como resultado da crise. Se não houvesse uma crise econômica no Uruguai, a esquerda continuaria a ser composta pelo Partido Socialista e o Partido Comunista, como era antes (HUIDOBRO, 1991, p.26).

Além dos debates nacionais, a conjuntura internacional também é apontada como influenciadora da criação da F.A, ainda segundo Huidobro (1991). Após o triunfo da revolução cubana em 1959, diversos setores da esquerda latino-americana começaram a discutir a possibilidade de reeditar o modelo em seus países. No Uruguai auxiliou a aglutinação da esquerda, ou seja, a unidade que viria a criar a FA:

A revolução cubana, em particular, afeta a esquerda uruguaia em sentido positivo, porque dá origem a um gigantesco movimento unitário de solidariedade. O Comitê de Apoio à Revolução Cubana reúne toda a esquerda pela primeira vez. Eu creio que é a primeira experiência política de trabalho unitário da esquerda. Ou seja, a revolução de Cuba não só dá origem a uma reação simpática, a uma influência ideológica através da leitura de materiais cubanos ou através do conhecimento do processo, mas dá origem a um movimento de carne e osso (HUIDOBRO, 1991, p.14).

Por outro lado, a partir de 1970, a vitória de Salvador Allende no Chile apresentava outra opção. Assim, dois caminhos de acesso ao poder estavam instalados na América Latina, um armado, guiado pelo caminho da revolução cubana, e um eleitoral, cujo caminho marcou o Chile37 (ALONSO, 2015). Para Lanzaro (2004),

37 Um episódio emblemático marcou a esquerda uruguaia em agosto de 1961. Ernesto Che Guevara e

Salvador Allende reuniram-se no Uruguai para um encontro da Organização dos Estados Americanos (OEA). Em uma atividade na Universidade da República, em Montevidéu, apenas quatro meses após a “invasão da Baía dos Porcos” em Cuba, Guevara disse: “(...) vocês têm algo que têm que cuidar, que é precisamente a possibilidade de expressar suas ideias; a possibilidade de avançar por canais democráticos até onde se possa ir; (...) sem derramar sangue, sem que se produza nada do que foi produzido em Cuba. Quando se inicia o primeiro tiro, nunca se sabe quando será o último” (disponível

estava aberto o contraponto entre os partidários mais próximos do modelo da revolução cubana e aqueles que se assemelhavam ao modelo chileno e, foi por meio de um caminho alternativo, como ocorreu no Chile com a formação da “Unidade Popular” (frente que alçou Allende ao poder em 1970) que o Uruguai resolveu optar pela via eleitoral (LANZARO, 2004). Ressalte-se que, dentro desse debate, como apontamos, a opção pela via institucional contou com antecedentes em anos anteriores à criação da F.A. Além das frentes FIDEL e UP, os próprios partidos Comunista e Socialista, que já tinham assento no parlamento, disputaram as eleições majoritárias de 1962 e 196638.

A esquerda uruguaia, então, ao unir-se pela criação da F.A, já no primeiro documento público, a Declaração Constitutiva, enfatiza o acordo programático para formar a “coalizão de forças”, “onde cada um dos seus participantes mantêm sua identidade”, e em defesa de um programa com conteúdo “democrático e antiimperialista”:

(...) o compromisso formal de estabelecer um programa comum, envolvendo-nos na luta fraterna e na colaboração solidária, assim como atuar de forma coordenada em todos os campos da ação política, sobre a base de que atribuímos ao povo, organizado democraticamente, o papel de protagonismo no processo histórico. [...] Estabelecer que essa coalizão de forças — que não é uma fusão e onde cada um dos seus participantes mantém sua identidade — deve estar dotada de uma organização com núcleos de base e demais mecanismos de disciplina que assegurem o cumprimento efetivo dos compromissos colocados (DECLARACIÓN CONSTITUTIVA, 1971, p.4).

Nove meses depois dessa declaração, veio a disputa das urnas, em novembro de 1971, com o general batllista, Líber Seregni — que havia rompido com o Exército no período pachequista e cujo consenso por seu nome foi um dos primeiros grandes desafios da recém-criada organização (HARNECKER, 1991). Assim, além do apoio sindical, de estudantes, movimentos, organizações sociais e partidos políticos, a aliança composta formalmente para a disputa eleitoral de 1971 reuniu os partidos comunista e socialista — incluindo as frentes Fidel e UP — membros de partidos democratas cristãos, deputados e senadores rompidos com os Partidos Colorado e em https://www.youtube.com/watch?v=4OnQwlZmkg4) [tradução nossa]). Naquela mesma noite, na saída do prédio, um atentado a tiros mata o professor uruguaio Arbelio Ramírez (BACCHETTA, 2010). Presente, Salvador Allende era o então presidente do Senado chileno e havia sido candidato à Presidência pela FRAP (Frente de Ação Popular), experiência de unidade da esquerda chilena de 1958 (ALONSO, 2015).

38 Ambos partidos perderam espaço de representação nesse período. Em 1946 eles tinham 1 senador e 7

Nacional, frentes socialistas, anarquistas, trotskistas, uniões populares, frentes operárias, movimentos revolucionários, além de diversas agremiações, movimentos e associações (DECLARACIÓN CONSTITUTIVA, 1971).

Para as eleições, a F.A apresentou-se à sociedade39 primeiro de forma programática, definindo-se antioligárquica. O programa partidário do grupo à época incluiu medidas como: nacionalização dos bancos privados, nacionalização dos principais itens de comércio exterior, “definição de preços dos principais produtos agrícolas que garantam conformidade através do poder de compra do Estado”, entre outras40. Bruschera (1971) apontou fatores complementares do programa da F.A: “planificação nacional; reforma agrária; nacionalização do sistema financeiro, dos grandes monopólios e do comércio exterior; fomento do cooperativismo; reforma do sistema tributário (prevendo a taxação da riqueza e do capital improdutivo); e nova política salarial” (BRUSCHERA, 1971, p. 2-3).

Na corrida presidencial, então, a F.A obteve 18,3% dos votos e o poder seguiu nas mãos do partido Colorado, com Juan María Bordaberry assumindo o governo em 1972. A repressão, então, aumentou e, apenas dois anos após a criação da F.A, um golpe de Estado acomete o país. Sem conter a inflação, com alta desvalorização da moeda e após tomar medidas duras de repressão contra os Tupamaros, em abril de 1972 Bordaberry declara um “estado de guerra interna”, com o Congresso suspendendo garantias constitucionais até 1973 e consolidando um “giro autoritário prévio” ao golpe de Estado (SCHELOTTO, 2015). Em fevereiro de 1973, o presidente cedeu uma parte de sua autoridade Executiva às Forças Armadas, o que provocou um conflito com o Legislativo. Em seguida, no dia 27 de junho de 1973, ele anuncia via cadeia nacional de rádio e televisão a dissolução do parlamento e o substitui por um Conselho de Estado, dominado pelos militares. A ditadura cívico- militar estava instaurada. Já nos anos seguintes, até 1976, os militares tomaram gradualmente o poder na maioria das instituições nacionais e estabeleceram uma ditadura de caráter ainda mais repressivo (DEMASI, 2004).

Além, evidentemente, das diversas violações de direitos humanos com mortes, torturas e desaparecimentos, dois dados do Uruguai chamam a atenção em comparação com as demais ditaduras cívico-militares da América do Sul: a

39 O ato de lançamento da F.A foi de grandes proporções em Montevidéu. Material da Cinemateca Tercer Mundo disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=VvmBBLoA7Ag.>.

quantidade de exilados e a de pessoas presas. Segundo Schelotto (2015), a ditadura uruguaia forçou o exílio de 380 mil pessoas, o equivalente a 13% da população à época. E tomando por base relatório da organização social Serviço de Paz e Justiça (SERVICIO PAZ Y JUSTICIA, 1989), a autora destaca o Uruguai como dos países com mais prisioneiros políticos na proporção de sua população, sendo aproximadamente 18 presos por mil habitantes41.

Entre 1973 e 1985, a perseguição aos partidos de esquerda foi sistemática. A F.A foi colocada na ilegalidade e pouco mais de um mês de instaurada a ditadura, no dia 9 de julho, sua maior liderança, Líber Seregni, foi preso juntamente com 418 pessoas em uma manifestação no centro de Montevidéu (UNIVERSIDADE DA REPÚBLICA, 2008). Ao longo de todo o período militar, membros da Frente, junto às forças políticas e aos partidos que a compunham, sofrem prisões, se exilam, muitos são assassinados nos porões da ditadura e outros tantos aderem à luta armada (YAFFÉ, 2005). Em 1980, os militares convocam um plebiscito para uma reforma constitucional e perdem por quase 57%, fator que auxiliou o caminho para o fim do período ditatorial. Em 1982, na transição para o período democrático, chegam a ocorrer eleições regionais, mas apenas com partidos autorizados pelos militares. A F.A segue proibida, juntamente a todos os partidos e denominações de esquerda.

Apenas com a volta da democracia, nas eleições majoritárias de 1984, que a F.A consegue novamente participar de um pleito e lança Juan José Crottogini, que obtém 21,2% dos votos. Números muito próximos à próxima tentativa, novamente com Líber Seregni, em 1989, quando alcança 21,2% dos eleitores. No entanto, são essas mesmas eleições que vão marcar o primeiro triunfo da história da esquerda no Uruguai. Para a prefeitura de Montevidéu, venceu Tabaré Vázquez, dando início à experiência da F.A no Executivo, 15 anos antes da vitória para a Presidência da República, em 2005.

Embora o regime cívico-militar tenha proposto apagá-la da política uruguaia, a Frente Ampla saiu confirmada e fortalecida. Obteve em 1984 uma porcentagem de votação (21%) ligeiramente superior à que recebeu em sua estreia eleitoral de 1971 (18%). Desde 1989, aumentou o seu fluxo eleitoral de forma quase incessante, capturando, em cada instância eleitoral, 10% a mais do que o eleitorado total, até atingir a maioria absoluta 15 anos depois: 21% em 1989, 31% em 1994, 40% em 1999 e

41 Só entre abril e setembro de 1972 (antes do golpe), 1.873 pessoas foram presas, atingindo um total

de 2.064 naquele ano (SCHELOTTO, 2015). Entre presos, por exemplo: José Pepe Mujica (1972 a 1985) e o líder tupamaro Raúl Sendic (1972 a 1984). Entre exilados, por exemplo: os renomados escritores Eduardo Galeano e Mario Benedetti.

52% em outubro de 2004. O resultado não deixa de ser surpreendente: vinte anos concluída a ditadura, a FA ganhou o governo com o apoio da maioria absoluta do eleitorado (YAFFÉ, 2005, p.11).

Vimos aqui que o processo de formação da F.A surgiu em resposta ao crescimento da crise econômica em um país que vinha de um processo relativamente longo de garantias sociais e, ainda, após aumento generalizado do autoritarismo desde o início da década de 60, culminando no golpe de Estado de 1974. Além de apoio popular, a F.A conseguiu aglutinar diferentes tendências políticas de diversos partidos, sindicatos, estudantes, associações de bairro, entidades variadas. Após as perseguições, prisões e assassinatos do período ditatorial, a F.A obteve praticamente a mesma votação no primeiro pleito pós-ditadura cívico-militar, em 1984, quanto no primeiro que participou, em 1971. Em seguida, seu percentual de eleitores foi crescendo à medida que caminhava para o centro do espectro político. Tema para um tópico à parte, para analisarmos brevemente as novas concepções do grupo, o que nos levará a compreender melhor como se deu o processo de aprovação da mais recente lei sobre o audiovisual da América do Sul.