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2. CONTRA-HEGEMONIA É: OLIGOPÓLIO PRIVADO FORA DO AR

2.1. Gramsci, a comunicação e a disputa por hegemonia

O contexto histórico de forte concentração privada da mídia nos países latino- americanos, notadamente a partir da segunda metade do século XX, pode ser explicado essencialmente pela relação entre o poder político exercido pelos meios de comunicação e a ausência de uma regulação democrática por parte do Estado. Algumas das razões que levaram a essa concentração auxiliam a caracterizar o que Dênis de Moraes, de forma mais abrangente, identifica como um período dominado essencialmente por oligopólios, ao acrescentar que a concentração da mídia “consolidou-se no vácuo aberto pela liberalização desenfreada, pela insuficiência de marcos regulatórios e pela deliberada omissão dos poderes públicos e de organismos multilaterais” (MORAES, 2004, p. 29).

As principais regras colocadas para a radiodifusão, nesse sentido, foram impostas no século XX por claras relações de poder entre políticos e empresários da mídia (FOX, 1997). A consolidação histórica de meios privados no rádio e na televisão, desde as décadas de 1940 e 1950, passando por governos ditatoriais e, em

seguida, o avanço na região do modelo neoliberal nas décadas de 1980 e 1990, fizeram desses países lugares propícios para que conglomerados de comunicação manipulassem a sociedade por meio de opiniões veiculadas nos próprios canais, além de jornais de grande circulação, considerando mínimas tentativas de legislação na área como risco à liberdade de imprensa e até como censura16.

Segundo Moreira (2011), a exploração do formato não comercial do espectro foi não apenas ignorada, mas também coibida em todos os marcos normativos da América Latina até o final dos anos 90. Assim, mantidos por essas práticas, surgiram os principais conglomerados midiáticos da região. Os grupos Clarín, na Argentina, Globo, no Brasil, e Cisneros, na Venezuela, foram alguns dos principais beneficiários dessas regras, transformando-se nas grandes potências do setor na região (MASTRINI; BECERRA, 2009).

Os esforços de interdição do debate sobre regulação por parte dos conglomerados midiáticos seguiram no início deste século e vêm ocorrendo até os dias atuais. No Brasil, citemos exemplos recentes que remontam à criação de um Conselho Federal de Jornalismo em 2004 e, pouco depois, em 2009, após convocação, pelo Executivo, de uma Conferência Nacional de Comunicação. Em ambos casos os conglomerados de mídia tacharam tais iniciativas como tentativas de censura. As argumentações variavam de perseguição política a restrições à liberdade de expressão (CHRISTOFOLETTI, 2010). Em 2014, outro exemplo, quando o jornal O Estado de S. Paulo escreveu, em editorial, qual seria a “real intenção” de militantes do Partido dos Trabalhadores (PT) quando defenderam a democratização da comunicação: “viabilizar projetos de poder a qualquer custo”17. No Uruguai, a tentativa de interdição do debate sobre novas legislações voltadas à comunicação também se faz presente. Para isso, basta citarmos um editorial do uruguaio El País, jornal de grande circulação, em dezembro de 2016, dois anos após a aprovação da LSCA, intitulado “A corte e a lei de meios”18. A classificação de vários artigos da Lei nº 19.307 seguiu a linha de editoriais de anos anteriores, de “ataques à liberdade de

16 No Brasil, tais omissões históricas sobre regulação da comunicação foram abordadas, por exemplo,

por Murilo Ramos (1993), que utiliza o termo “agenda proibida” em referência à essa interdição do debate e também por Motter (1994), que fala em “batalha invisível”.

17 O ESTADO DE S. PAULO. O PT e a regulação da mídia. São Paulo, 18 de junho de 2014.

Disponível em: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,o-pt-e-a-regulacao-da-midia-imp,1514002 . Acesso em: 10 nov. 2016.

18 EL PAÍS. La corte y la Ley de Medios. Montevideo, 20 de dezembro de 2016. Disponível em:

expressão”. O objetivo dessa pressão exercida pelos principais veículos de comunicação foi e segue sendo tentar inviabilizar a criação e o amadurecimento de textos legais que possam prever, por exemplo, limites à concentração da propriedade dos meios.

Esse papel de induzir e influenciar a opinião da sociedade, inviabilizando legislações mais democráticas, exercido pelos veículos de comunicação de massa, pode ser verificado em diferentes momentos no contexto latino-americano e guarda melhor compreensão por meio do conceito de hegemonia, proposto pelo filósofo marxista Antonio Gramsci. Para o autor italiano, tal concepção pode ser caracterizada pela liderança de uma classe social sobre as outras, unindo o exercício da dominação pela força (Estado propriamente dito, sociedade política, aparelho coercitivo) com uma direção moral, política e intelectual. Tal dominação de classe, portanto, não se daria apenas pela coerção física, via monopólio estatal do poder de polícia, mas também pelo consentimento, pelo consenso, via predomínio cultural (GRAMSCI, 2000).

A mídia — ou “imprensa”, principal meio de comunicação da época do autor, período que inclui o cinema e o início do rádio — é caracterizada como um aparelho privado de hegemonia, que unifica concepções de mundo, organiza e divulga apenas determinados tipos de cultura. Por sua vez, ela faz parte, ainda segundo Gramsci, da sociedade civil, que representa o conjunto de instituições responsáveis por difundir ideologias — incluindo escola, igreja, partidos políticos, sindicatos, instituições científicas e artísticas, entre outras (GRAMSCI, 2000).

Aqui, pelo fato de o termo sociedade civil ser um conceito-chave para este trabalho e por ser entendido por alguns autores como em oposição ao Estado e, por outros, em articulação com este, cabe uma breve contextualização do conceito (juntamente ao de Estado), notadamente em relação ao pensamento político moderno.