• Nenhum resultado encontrado

2. ENSAIO Os teatros: épico e vocacional na formação do ator – gestus e contexto

2.2 Teatro Vocacional: história e memória

2.2.1 Comunidade de destino: a visão de uma artista orientadora

A respeito do Projeto Teatro Vocacional, no qual iniciei minha atuação no ano de 2005 permanecendo até 2008, abordo um dos aspectos que considero importante para o desenvolvimento de suas propostas e diretrizes, e que entendo como o ponto de maior potência no desenvolvimento da prática pedagógica no teatro: o artista orientador.

O termo artista orientador é utilizado para designar o profissional contratado pelo projeto para atuação nas comunidades diretamente com os artistas vocacionados, ou apenas vocacionados, que são as pessoas que se inscrevem para terem “aulas” de teatro.

Não apenas por me identificar com a função, por ocupá-la desde o início, mas também por ser um termo que me instigou desde o princípio é que o destaco. Dois aspectos me chamaram a atenção: primeiro o fato de ter conhecimento da abertura do referido edital antes de ter sido encerrado, e o segundo a denominação do cargo. Nesse momento é importante destacar que, muitas vezes, editais são abertos e oficialmente divulgados no Diário Oficial, considerando que nós, cidadãos, somos leitores assíduos desse jornal. Se a única forma de divulgação for essa, ela não se efetiva, e me parece que foi o que aconteceu no ano de 2005. Conclusão que tirei quando pude constatar que o número de inscritos foi o mesmo que o

26Oficinas de qualificação foram oferecidas aos artistas orientadores a fim de se estabelecer uma

melhor fruição das obras disponíveis.

27Acervo que reúne materiais relativos à dança em parceria com o Núcleo, disponibiliza vídeos de seu

número de vagas oferecidas, cerca de 80. Em 2009, perto de 600 pessoas se inscreveram para a mesma função.

Além de pouca divulgação, outros fatores contribuíram para a situação. Naquele ano muitas mudanças aconteciam na Secretaria de Cultura, em razão de uma nova gestão, e, consequentemente, no projeto, por conta de trocas de gestores e coordenadores, e pela primeira vez se exigia a licenciatura plena em Artes Cênicas para se efetivar a inscrição.

Como muitos dos artistas orientadores, já pertencentes ao projeto anteriormente, não possuíam essa titulação, foram impedidos de permanecer no projeto. Houve mal estar, culminando com movimentos de resistência e manifestos por parte da equipe já formada. Uns porque não poderiam se inscrever, outros por se opor à nova coordenação e outros por simpatizar com as causas alheias.

O fato é que chego ao projeto feliz, por ter sido enfim selecionada por um edital público, e assustada com a realidade encontrada. Na primeira reunião, realizada no oitavo andar do Edifício Olido28, tiraria na sorte, por meio de um pequeno papel dobrado dentro de um saquinho, o local onde iria atuar. Fui para o CEU Meninos.

O segundo aspecto que me chamou a atenção, e confesso, me agradou muito, foi a minha “nova” função. Não seria professora, educadora, formadora etc., como havia sido desde então, mas sim uma orientadora com a possibilidade de integrar essa função à minha condição de artista. Isso me pareceu excelente.

Em 2001 tínhamos uma ideia vaga, ainda que fortemente propositiva, do que deveríamos caracterizar como horizonte do projeto. Acreditávamos que o compartilhar das práticas mais progressistas de pesquisa na linguagem teatral, através de um intercâmbio entre os artistas vinculados a grupos de teatro com uma produção expressiva e continuada no cenário paulista e os grupos não profissionais dos bairros, deveria ser o índice qualitativo que diferenciaria o Projeto Vocacional. Assim, o primeiro perfil exigido de um artista orientador era estar atuando também como artista criador. Tentávamos dessa forma fugir de um conceito “utilitarista” do teatro apenas como meio para outras aprendizagens e não como exercício estético que tem fim em si.

[...] Assim, a primeira questão que enfrentamos na efetivação da equipe foi a necessidade de trazermos, para completar o número de artistas orientadores, também, profissionais ligados à arte-educação. Desse modo, colocava-se para nós um duplo desafio na condução desses dois tipos de profissionais: capacitar os artistas para a reflexão de questões pedagógicas e incentivar os arte educadores à proposição de questões estéticas propriamente. (SMC-PMSP, 2004, p.16)

28 Edifício que abriga a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, situado na Avenida São João,

Esses pressupostos, idealizados em 2001, pelo então diretor do Departamento de Teatro, Celso Frateschi, e sua equipe, permaneceriam os mesmos até a minha chegada no projeto, ainda que o coletivo que compunha as bases de trabalho não fosse mais o mesmo.

Senti-me à vontade com relação às atribuições cabíveis já que reunia em minha formação a experiência prática em arte-educação29, e um trabalho de pesquisa em criação no teatro.

O desafio que estava por vir seria chegar a um equipamento da Secretaria Municipal de Educação (CEU Meninos) em um momento político delicado, em que os gestores eram exonerados, deixando o local abandonado, já não tão frequentado, onde se via apenas uma equipe de segurança terceirizada.

Nesse primeiro momento de minha chegada no projeto, sentia-me despotencializada, atendendo a turmas que variavam de duas a oito pessoas, número que diminuiria com a finalização de meu trabalho naquele local, onde permaneci por cerca de três meses.

Ainda no ano de 2005, recebo uma ligação do então coordenador do Teatro Vocacional, Mário Santana, me oferecendo um novo local de atuação, a Biblioteca Anne Frank, no Itaim Bibi, bairro nobre da zona oeste de São Paulo. Lá, encontraria uma situação muito diferente do CEU, tanto no que diz respeito ao número e perfil dos participantes, quanto à realidade local - seria um grande presente para mim.

Durante os quatro anos de atuação no Teatro Vocacional, percebi a real possibilidade do desenvolvimento de uma prática comprometida com a estética e a ética, tanto nas relações com outros artistas, quanto com a coordenação e os artistas vocacionados, propiciando um ambiente de desenvolvimento e aprimoramento, produzindo um constante pensar e repensar.

Um desses pensamentos, com relação ao meu olhar sobre as ações do projeto, foi expresso, a partir de um relato que apresento a seguir, ao responder uma questão feita pela

29O que vem a ser arte-educação? Ana Mae Barbosa: Para mim, Arte/Educação é todo e qualquer

trabalho consciente para desenvolver a relação de públicos (criança, comunidades, terceira idade etc.) com a arte. Ensino de arte tem compromisso com continuidade e currículo, quer seja educação formal ou informal. Arte Educação foi o termo usado por meus mestres. Eu acrescentei o hífen, Arte- Educação, no momento em que arte era recusada pelos educadores, nos anos de sua introdução obrigatória no currículo escolar, em torno de 1973-1974, para dar ideia de diálogo e mútuo pertencimento entre as duas áreas. Na época, meus mestres gostaram da ideia. Recentemente, em 2000, um lingüista nos aconselhou a usar a barra, pois este sinal, sim, é que significa mútuo pertencimento.Tanto é assim que a barra é muito usada em endereços de sites, quando um assunto específico está dentro de outro mais amplo. Mas Arte/Educação e ensino de arte são faces diferentes de uma mesma moeda, a moeda concreta de intimidade com a arte. Trecho de entrevista com Ana Mae Barbosa (educadora brasileira reconhecida como uma das pioneiras na arte-educação) extraído de: http://www.simaodemiranda.com.br/Falandosobreoensinodaartenaescola.pdf

coordenação: qual era a minha compreensão sobre experiência no Projeto Vocacional, dentro de um contexto de política pública em uma cidade como São Paulo, num país como o Brasil.

Iniciando pela tão citada, lida, descrita e desejada experiência, e refletindo em relação à falta de experiência vivida e compartilhada, principalmente no contexto das grandes cidades, em um mundo dito globalizado, em um país dito em desenvolvimento, entendo que o Projeto Vocacional atue no sentido de trazer e fazer movimentar, em todas as direções da cidade de São Paulo, uma ação que ecoe e reverbere de maneira a revelar um potencial de novas experimentações por meio da arte.

Acontece que, como nós, moradores da cidade de São Paulo nos deparamos com situações diárias de um contexto de guerra, ainda que velada, revelada pelas insistentes sequências de violências de todas as espécies, tendemos a nos proteger dessa situação nos afastando do coletivo, ficando dessa forma camuflados nos esconderijos secretos e cercados dos nossos lares.

Benjamin (1996), em seu texto O Narrador – Observações acerca da obra de

Nicolau Lescov inicia sua explanação falando sobre o fim da narrativa, e

com ela o fim da capacidade de trocarmos, por meio da palavra, experiências vividas. Pondera ainda que, com a guerra, percebeu que os indivíduos voltavam emudecidos para os seus lares, assim, mais pobres em experiências que pudessem contar.

Percebi e conversei muito com os vocacionados, onde mais uma vez a troca de experiência é um dos fatores que nos une. O quanto esse contexto e realidade que nos é apresentada diariamente reverberam no trabalho a que nos propomos – a criação de uma obra estética, por excelência coletiva. A dificuldade em se formar um coletivo, a flutuação constante de vocacionados, que não levam ao fim a experiência de um processo de criação, são sempre pontos amplamente discutidos em nossos encontros. Refiro-me à experiência levada ao fim, ou completa na definição que John Dewey (1974) faz em seu texto “A arte com experiência” quando diz que a experiência ocorre continuamente, porque a interação da criatura viva com as condições que a rodeiam está implicada no próprio processo da vida. Assim, sob as condições de resistência e conflito, aspectos e elementos do eu e do mundo implicados nessa interação qualificam a experiência como emoções e ideias, de maneira tal que emerge a intenção consciente. Contudo, pondera que frequentemente a experiência que se tem é incompleta, talvez por razão de uma letargia interna que impediria o indivíduo a levar a experiência ao fim.

Penso que o papel da arte, apresentada para o grande público, que direta ou indiretamente se envolvem no Projeto Vocacional, por meio do teatro, da música ou da dança, seja provocar essa letargia interna, individual e coletiva que nos acomete diariamente, e assim mobilizar as pessoas a uma tomada de consciência da realidade com um potencial de transformação.

Assim, a política pública agindo diretamente na vida das pessoas, revelando novas possibilidades de atuação, tanto no âmbito público quanto privado, permitiria a melhoria de nossa realidade atual.

Minha atuação no projeto, de meados de 2005 até o final de 2008, se deu partindo desses pensamentos, que também expressam os pressupostos do projeto.

A encenação é o fim e o meio para um processo de instrumentalização do vocacionado na leitura crítica da realidade. Nesse sentido, o artista orientador deve ser um artista capaz de, através da criação cênica, conduzir a apropriação dos mecanismos de formulação estética pelos vocacionados. Ele não deve ser apenas um diretor que dirige um grupo de atores. E nem apenas um professor que ensina técnicas, independente de suas aplicações na obra. Ele deve ser um artista que auxilia os aprendizes a criarem suas próprias obras, seus próprios códigos poéticos recheados de novos significados. (SMC-PMSP, 2004, p.18)

Em oito anos de existência, o Projeto Vocacional, iniciando com o teatro, agora com a dança, a música e as artes visuais têm atendido “personagens” dos mais diversos pontos da cidade, a partir de 14 anos. São mães, pais e filhos (por vezes todos juntos em um mesmo grupo), jovens e idosos, executivos, empregadas domésticas, meninos e meninas, loiros, negros e índios (o projeto tem ação nas aldeias guaranis: Krukutu e Tenondé Porã), desempregados, surtados (atendi no teatro pessoas em meio a tratamento psiquiátrico, alguns apresentando surtos constantes), artistas, os esquecidos, os deslumbrados, amargurados, católicos, ateus, independentes e dependentes, mas todos inscritos em um projeto pensado para atender todas as pessoas que, independente de onde estejam, de onde vieram e para onde irão, tenham o desejo de, por intermédio da arte, dizer algo a mais.