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10. Como praticar eficientemente? É necessário concentração da mente, a prática só vem com a vontade de realizar o caminho do autodesenvolvimento O objetivo fundamental da

1.10 Aproximações com o teatro

1.10.3 O equilíbrio

A característica mais comum dos atores e dançarinos de diferentes culturas e épocas é o abandono do equilíbrio cotidiano em favor de um equilíbrio “precário” ou extracotidiano [...]. Atores de várias tradições orientais têm codificada a aquisição de um novo equilíbrio e posições básicas que o aprendiz deve adquirir por meio do exercício e do treino. (IDEM, 1995, p.34)

Esse abandono do equilíbrio tem como objetivo gerar um esforço físico intenso para a realização de movimentos – esse esforço extra dilata as tensões do corpo, com a intenção de tornar o ator vivo, em cena, antes mesmo que ele comece a se expressar (BARBA, 1995).

Tanto em técnicas de dança e teatro ocidentais quanto orientais, é possível identificar com clareza essa condição de desequilíbrio. Na dança ocidental, tem-se o balé clássico, no qual a totalidade de seus movimentos envolve saltos, piruetas, apoio em apenas um dos pés, entre outros, que proporcionam ao corpo do bailarino a condição de um equilíbrio precário; já no teatro é possível observar em personagens da Commedia dell’Arte como Arlequim, que também possui uma série de movimentos codificados que incluem posições em equilíbrio extracotidiano.

Por meio de exercícios e treinos de kung fu, foi possível trabalhar o corpo dos participantes, de modo a propiciar a experimentação de um nível precário de equilíbrio.

Figura 12 - Wushu – corpos em equilíbrio precário ou extracotidiano. Fonte: arquivo pessoal – foto de Walter Coelho.

Figura 13 - Toi shá do pan pou kiu – corpos em equilíbrio precário ou extracotidiano. Fonte: arquivo pessoal – foto de Walter Coelho.

1.10.4 A energia

Em chinês, kung fu, conhecido no Ocidente como uma técnica de combate, significa literalmente “a habilidade para resistir (e aguentar jejum)”. Ele tem, entretanto, muitos outros significados: é o nome da arte marcial nacional, mas também se refere a qualquer disciplina, capacidade ou habilidade que é dominada somente por esforço contínuo. Pode significar trabalho que é executado, cumprido, e potência, mas também o resultado de um estudioso em qualquer campo intelectual. Para um ator, ter kung fu

significa “estar em forma”, ter praticado e continuar a praticar um treinamento peculiar, mas também significa possuir aquela qualidade especial que o faz vibrar e o torna presente, e que indica que ele dominou todos os aspectos técnicos de seu trabalho. (BARBA, 1995, p.74)

Geralmente, quando se fala de energia no teatro, há certa dificuldade de concretizar esse conceito na execução de uma cena, por exemplo. Alguns chamam de tônus muscular, o que Barba chama de potência nervosa muscular, que pode ser entendido como a presença do ator.

Além do treinamento físico, com o intuito de potencializar essa energia de maneira a contribuir com o corpo em um nível pré-expressivo, a prática de técnicas que são utilizadas nos treinos de kung fu, como as de respiração e meditação, estiveram presentes em parte do processo de criação dos participantes dessa pesquisa – os artistas vocacionados do grupo In Omnia Paratus14.

As técnicas de respiração utilizadas tinham como objetivo transformar essa ação cotidiana inconsciente em algo que pudesse ser treinado, atingindo um nível consciente. Já a meditação propunha aos participantes momentos de silêncio mental, com vistas a possibilitar um ganho de concentração e um campo fértil para a criação.

Yoshi Oida15 (2007), em O ator invisível, diz que as pessoas sábias são aquelas que praticam meditação; para fazer isso elas têm de concentrar a respiração no hara, ou seja, na área bem abaixo do umbigo, ele afirma que as pessoas treinadas são aquelas que utilizam o corpo de um jeito altamente desenvolvido, como os atores ou os praticantes de artes marciais.

1.10.5 A dilatação

O corpo dilatado é acima de tudo um corpo incandescente, no sentido científico do termo: as partículas que compõem o comportamento cotidiano foram excitadas e produzem mais energia, sofreram um incremento de movimento, separam-se mais, atraem-se e opõem-se com mais força, num espaço mais amplo e reduzido. Um corpo-em-vida é mais que um corpo que vive. Um corpo em vida dilata a presença do ator e a percepção do

14 Grupo formado no Teatro Vocacional em 2005 e composto (no ano de 2008) por cerca de dez

integrantes, com idade entre 18 e 26 anos, que participaram desse estudo.

15 Ator, diretor e professor, foi colaborador fundamental no teatro de Peter Brook (diretor britânico,

dirigiu a Royal Shakespeare Company). Em O ator invisível, traz memórias, exercícios e conceitos que fundamentaram seu modo de fazer e pensar o teatro, articulando a tradição do teatro clássico japonês Nô e Kabuki e as artes marciais. Também é autor de Um ator Errante.

espectador. Há alguns atores que atraem o espectador com uma energia elementar que “seduz” sem mediação. (BARBA, 1995, p.54)

Como forma de aproximar o conceito de dilatação do corpo do ator e energia, aqui apresentados, no uso da prática do kung fu, exponho, a seguir, parte do discurso do mestre Amaral retirado de entrevista concedida em 17 de dezembro de 2008 sobre essas questões, e que demonstra seu pensamento a respeito das aproximações possíveis entre o teatro e o kung fu.

A questão dirigida ao mestre se referia ao termo comumente usado no teatro – presença do ator. O que seria essa presença? É o ator que está em cena e consegue atrair para si a atenção do público, por vezes, mais do que outros atores que compõem a mesma cena. No kung fu também é possível observar esse fenômeno, no qual um artista consegue se fazer mais presente do que outros executando os mesmos movimentos.

Mestre Amaral acredita que a prática do kung fu sugere uma manipulação de energia. O acúmulo dessa energia serve para que se possa utilizar, por exemplo, em um exercício de quebramento (de tijolos, madeira etc.). Essa procura pela energia é algo sutil, que não é tocável com os braços ou com as pernas. Faz com que as pessoas atinjam certo grau de sensibilidade entrando no “rol” dessas energias que serão utilizadas em uma demonstração. Acredita, ainda, que o conceito esteja relacionado com a fé, com o fato de acreditar, embora não se fale de religião, fala-se de crença. Quando se diz à criança que ela é um super-homem, ela crê nisso.

Ele afirma que na prática do kung fu, aqueles que conseguem acreditar mais, atingem o “rol” das energias, eles “incorporam” essas energias, atraindo a atenção de todos. Assim, o lutador de kung fu também acredita, como uma criança. Completa ainda que quando o sujeito acredita, ele manipula energia, quando ele manipula energia, ela transparece. Os olhos físicos não conseguem enxergar, mas os olhos não físicos conseguem. Por isso, a atenção é voltada para aquele ator que mais consegue representar a energia que não se consegue enxergar. “Então, penso que a pessoa que acredita atinge um grau acima e, quando ela expressa, é como se fosse uma luz brilhante. Então, todos acabam olhando para ela. Mas precisa, realmente, acreditar”.

A respeito do conceito de dilatação, Eugenio Barba (1995) apresenta o princípio da negação, que consiste em se iniciar uma ação na direção oposta àquela para a qual a ação será finalmente dirigida. Como exemplo, Barba cita conjuntos de movimentos amplamente trabalhados nas artes marciais, tais como: antes de desferir um soco, afasta-se o braço; antes

de saltar, dobram-se os joelhos; antes de avançar para frente, inclina-se para trás. Esse seria um dos meios para o ator dilatar sua presença física.

Apresentados alguns dos conceitos abordados em A arte secreta do ator – dicionário de antropologia teatral, articulando-os com o kung fu, pretendi aproximar os vocacionados de uma prática que foi sendo construída no momento em que era vivenciada, de forma a, sem perder o que já estava conquistado e apreendido por nossa cultura, promover a apropriação de códigos e modo de pensar e fazer teatro distintos.

Assim, como aborda Silvio Zamboni (1998), ainda com relação ao modo de ver e pensar oriental e ocidental, em A pesquisa em arte, tanto o racional, tão desenvolvido no ocidente, como a intuição, tão valorizada no oriente, são formas complementares que povoam os cérebros ocidentais e orientais de artistas e também de cientistas.

O racional e o intuitivo são modos complementares de funcionamento da mente humana. O pensamento racional é linear, concentrado, analítico. Pertence ao domínio do intelecto, cuja função é discriminar, medir e classificar. Assim, o conhecimento racional tende a ser fragmentado. O conhecimento intuitivo, por outro lado se baseia numa experiência direta, não intelectual, da realidade em decorrência de um estado ampliado de percepção consciente. (CAPRA, apud ZAMBONI, 1998, p.17)

Como dados de pesquisa, além de entrevistas realizadas com Mestre Amaral, instrutores de kung fu e os estudantes de teatro participantes desse trabalho, optei por entrevistar um ex-praticante de kung fu, a fim de investigar, para além do treinamento físico, as possíveis influências dessa técnica nas práticas cotidianas, uma vez que essas experiências se tornam essenciais para o ato da criação – no caso dos artistas, assim como fundamentais para o ato da descoberta – no caso dos cientistas.

Trata-se de um cirurgião e pesquisador da área médica que, para além da objetividade, necessária ao ofício, relacionada a intervenções precisas e claramente delineada por objeto e objetivos palpáveis no corpo humano, fala de intuição.

O doutor Paulo Augusto Amador Pereira, ao se remeter às práticas vivenciadas em treinos de kung fu, afirma acreditar que os seres humanos são possuidores de capacidades que não são normalmente desenvolvidas ou utilizadas, tais como: aprimoramento da resistência física, controle da dor e o uso da intuição. Pondera que, apesar do desenvolvimento científico, a civilização atual deixou para trás algumas capacidades e características que, no passado, talvez, tenham sido mais desenvolvidas por uma questão de prática. Mas, a despeito dessa

tendência atual, no kung fu, assim como em muitas práticas orientais, desenvolve-se o uso da percepção, da concentração e também, novamente, da intuição.

Sem desconsiderar os parâmetros – analisados para classificar cada situação médica, Pereira procura atentar para essas sensações, que podem estar presentes, a despeito dos parâmetros indicarem uma conduta despreocupada. Por vezes, nesses casos, dá maior atenção à situação, sempre com o crivo de não se deixar confundir por medo ou insegurança. Em várias situações essa intuição foi confirmada. Esse fato demonstra que o sujeito, em posse de uma capacidade mais ampla de percepção, pode ter melhores resultados em suas práticas adotadas.

Walter Benjamin, em seu ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1996), ao explicar a relação entre o cinegrafista e o pintor, lança mão de excelente construção auxiliar, ilustrado pelas figuras do cirurgião e do mágico. Ouso explicitar o percurso elucidativo, substituindo o mágico pelo ator – por aproximarem-se fortemente no concernente à construção e apresentação de uma realidade que deveras não é real.

O cirurgião está no pólo oposto ao do ator. O comportamento do ator, que deposita as mãos sobre um doente para curá-lo, é distinto do comportamento do cirurgião, que realiza uma intervenção em seu corpo. O ator preserva a distância natural entre ele e o suposto paciente, ou antes, ele a diminui um pouco, graças à sua mão estendida, e a aumenta muito, graças à sua autoridade. O contrário ocorre com o cirurgião. Ele diminui muito sua distância com relação ao paciente, ao penetrar seu organismo, e a aumenta pouco, devido à cautela com que sua mão se move entre os órgãos. Em suma, diferentemente do ator, o cirurgião renuncia, no momento decisivo, a relacionar-se com seu paciente, em vez disso intervém nele pela operação.

Seja por meio de uma intervenção cirúrgica, de uma pequena cena apresentada diante do que Benjamim (1996) chama de comunidade de ouvintes ou, ainda, por meio de movimentos ditos marciais, temos como objetivo principal penetrar o âmago do ser humano e proporcionar a possibilidade de uma renovação, a partir dessas intervenções; sejam elas físicas ou simbólicas, aproximadas ou distanciadas. Se assim o for, será possível a compreensão de que a cirurgia que opera o teatro na aquisição do bem simbólico – possibilitando a “cura” aos indivíduos desesperançados, tem a mesma relevância da cirurgia que opera a retirada de um corpo estranho de dentro de nós.

Marla Cruz, artista vocacionada e participante dessa pesquisa, traz suas impressões, em forma de texto poético, que demonstram os resultados de uma intervenção bem sucedida quando da visita à Associação Shao Lin de Kung Fu.

Poças de água. Nunca pulei em uma por querer. Na verdade, quando chove, procuro evitá-las ao máximo. E que raiva dá quando um carro passa e joga água na gente! Imitar uma serpente, nunca fiz. Imagine macaco, dá vergonha. Cambalhota então, vixe Maria! Não faço desde os 6 ou 7 anos! Sempre fui velha demais para isso. Pobre de mim! Velhice não existe a menos que você dê esse valor à sua idade, negando suas paixões de criança. Felizes não são só médicos, engenheiros, advogados bem sucedidos. Felizes são os apaixonados.

No dia 10/08/2008, via a paixão do Walter16 pela fotografia. Percebi a

paixão do Otávio17 pelo desenho. Mestre Amaral, mais de 7018 anos

apaixonado por imitar animais. Querido Mc 'Donalds' Fadden19 com sua

brilhante disposição nos ensinando a cair. A CAIR! E a Ju,20 a mais gulosa,

apaixonada pelo teatro, kung fu e pela gente. É isso, é preciso se apaixonar! Se apegar às nossas vidas e fazer como os apaixonados que se arriscam sem receio de se machucar e muito menos passar vergonha na frente dos outros. Vergonha não é fazer diferente, é NÃO fazer. Vida é perigo, disposição. É pular nas poças de água e não se importar em se molhar. E qual o problema de cair? Nenhum. Pois aprendi a cair e rapidamente levantar de novo.