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Aristóteles, em seu livro da Metafísica407, partiu de um exemplo singelo,

o da casa de pedras, para tentar explicar as sociedades e grupos. Ora, a casa aristotélica não é formada por simples junção de pedras, um mero “montulho”, mas sim pela organização de pedras singulares, talhadas para exercerem funções inter-relacionais. Da mesma forma que se dá nos grupos humanos,

                                                                                                                         

que se ligam uns aos outros numa determinada pluralidade, observa Norbert Elias408.

Assim também ocorreu com aquele homens e mulheres que foram para algum lugar das selvas amazônicas desencadear um movimento revolucionário, grupo que ficou conhecido pelo nome de guerrilheiros do

Araguaia. Obviamente, o grupo não se formou pela mera somatória de

indivíduos. Pois se eles conseguiram ser reconhecidos como grupo social de relevância histórica e política, é porque havia uma argamassa a unir os indivíduos e, antes disso, um projeto imaginado.

Quem eram eles, afinal? Ou ainda, a questão fundamental, qual era a argamassa que possibilitou que um punhado de pedras, com origens culturais distintas, se estruturasse numa casa que terminou por transcender o tempo e o espaço?

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Quando os militares lá chegaram, em abril de 1972, eram 79 os militantes do partido presentes na região do rio Araguaia, preparando-se para a luta armada – além de 12 camponeses já recrutados. Essa estatística comporta algumas considerações. Em verdade, o número dos que de fato participaram dos conflitos foi menor, 71 guerrilheiros. Isso porque nove militantes haviam deixado o grupo por diferentes razões antes de os militares chegarem ao Araguaia409. Contudo, como optei por um corte temporal entre 1966 e 1974,

                                                                                                                         

408 Norbert Elias. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1994, 201 pág. Elias

formula seu pensamento a partir da compreensão de Emile Durkheim, um dos pais da Sociologia, autor do conceito de coesão social e de regras do método sociológico.

409 Já haviam retornado às suas cidades o casal Pedro e Tereza Albuquerque, Lúcia Regina de Souza,

Criméia Alice Almeida e o estudante ainda não identificado de codinome Jurandir, que desertou em outubro de 1971. O operário Francisco Amaro Lins, por sua vez, decidiu casar-se com uma camponesa e, de forma consensual, deixou o grupo guerrilheiro, também em fins de 1971, para viver como morador da região. Por fim, em abril de 1972, quando os militares chegaram, os dirigentes João Amazonas e Elza Monnerat abandonaram a área e decidiram se manter em São Paulo por questão de segurança pessoal. Assim, o grupo que participou efetivamente da guerrilha tinha 71 pessoas. Esclareço, por fim, que optei por considerar nessa conta o dirigente Pedro Pomar, que esteve nos preparativos para a guerrilha, em Goiás, em companhia do militante não identificado de codinome Augusto. Eles jamais foram à região onde ocorreram os conflitos. Contudo, Pomar fazia parte do triunvirato de dirigentes partidários que decidira deflagrar a guerrilha, ao lado de João Amazonas e Maurício Grabois. Ademais, em 1976, ele liderou a ala do PC do B que buscava analisar as causas da derrota militar através de profundas autocríticas, em oposição à ala liderada por João Amazonas, que tentava manter uma visão triunfalista do episódio, tema que será abordado adiante. Foi nessa ocasião que redigiu um relevante documento sobre a

estão considerados os 79 indivíduos que, em algum momento, tiveram participação no episódio; ou nos preparativos da guerrilha, ou em combate.

Desses 79, eram 61 homens e 18 mulheres, numa relação de três para uma. O maior grupo de militantes partiu do Rio de Janeiro, 20 no total410, quase todos estudantes universitários dos núcleos de Medicina e de Farmácia. De São Paulo, partiram 18411; da Bahia, 10 e de Minas Gerais, outros cinco. Do Ceará, partiram quatro; do Rio Grande do Sul, três; do Espírito Santo, outros três e, de Goiás, um militante.

Em sua quase totalidade, tinham entre 20 e 28 anos de idade. Desses, 31 eram universitários e seis estudantes secundaristas. Ou seja, 54% dos que pretendiam desencadear a guerrilha foram recrutados pelo PC do B junto ao Movimento Estudantil. Outros 19 eram jovens profissionais liberais, médicos, advogados, engenheiros, bancários, comerciários ou professores. Isso significa que 81% deles vinham da classe média. Havia quatro operários412. Dos demais, eram nove os políticos “orgânicos”, conforme a nomenclatura da época usada para delinear os militares que dedicavam tempo integral ao partido. Somente 14 tinham algum tipo de treinamento militar – o grupo que, entre 1964 e 1966, havia feito o curso de guerrilhas na Academia Militar de Pequim, China413.

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guerrilha, conhecido por “Relatório Pomar”, mais tarde publicado por seu filho Wladimir Pomar, op. cit. Por esse conjunto de razões, optei por incluir Pedro Pomar no grupo guerrilheiro, totalizando, assim, 79 indivíduos. Quanto ao militante que esteve com ele recluso em Colinas, citado pelo “Relatório Pomar”, cujo nome permanece no terreno do oculto, optei por excluí-lo, visto que não teria estado na região do Araguaia.

410 Ressalte-se que nem todos eram cariocas. O estudante de Farmácia Antônio Theodoro Castro, o Raul,

por exemplo, como já dito, nascera no Ceará; o estudante de Filosofia Adriano Fonseca Filho, o Chicão, era de Minas Gerais e o estudante de Astronomia Antônio de Pádua Costa, o Piauí, era do Piauí. Contudo, militaram no Rio de Janeiro quando foram recrutados para a guerrilha.

411 Como no caso do Rio de Janeiro, nem todos eram paulistas, como é o caso de Cilon Cunha Brum,

nascido no Rio Grande do Sul, mas que foi recrutado para o partido em São Paulo e, de lá, partiu para a guerrilha. A mesma ressalva vale para os demais Estados abaixo relacionados.

412 Antônio Ferreira Pinto, o Antônio Alfaiate, profissão alfaiate; Líbero Giancarlo Castiglia, o Joca,

metalúrgico; Marcos José Lima, o Ari Armeiro, ferreiro; Orlando Momente, Landim, metalúrgico. Ressalto que Micheas Almeida, o Zezinho, iniciou a vida como operário da construção civil. Contudo, desde 1963 era militante profissional do PC do B, um dos escalados para o treinamento militar na China. Por essa razão, optei por incluí-lo no grupo dos militantes profissionais, como João Amazonas, que também tinha origem operária.

Em sua derradeira obra, A Sociedade dos Indivíduos414, Norbert Elias busca encontrar um modelo de análise que permita compreender a maneira pela qual seres humanos singulares, “uma porção de pessoas juntas”, ligam-se uns aos outros numa pluralidade, formando um grupo social ou sociedade. Elias rejeita os modelos que valorizam a ação dos indivíduos isolados na construção da sociedade a partir de ações deliberadas e racionais. Também desconstrói o campo oposto, modelos extraídos das ciências naturais, notadamente da biologia, no qual a sociedade é concebida como uma entidade orgânica no qual o indivíduo não desempenha papel algum.

Segundo ele, as sociedades são formadas porque existe um grande número de pessoas e só continuam a funcionar “porque muitas pessoas, isoladamente, querem e fazem certas coisas, e, no entanto, sua estrutura e suas grandes transformações históricas independem, claramente, das intenções de qualquer pessoa em particular”415. Elias:

Ninguém duvida de que os indivíduos formam uma sociedade ou de que toda sociedade é uma sociedade de indivíduos. Mas, quando tentamos reconstruir no pensamento aquilo que vivenciamos cotidianamente na realidade, verificamos, como naquele quebra-cabeça cujas peças não compõem uma imagem íntegra, que há lacunas e falhas em constante formação em nosso fluxo de pensamento. [...] O que nos falta – vamos admiti-lo com franqueza – são modelos conceituais e uma visão global mediante os quais possamos tornar compreensível, no pensamento, aquilo que vivenciamos diariamente na realidade; mediante os quais possamos compreender de que modo um grande número de indivíduos compõem entre si algo maior e diferente do que uma coleção de indivíduos isolados416.

Elias vai buscar no conceito de “alma” de Platão e, simultaneamente, na alegoria da casa de pedras de Aristóteles, uma proposta intermediária na qual a soma dos indivíduos, em determinadas situações históricas, acabam por formar uma alma própria que transcende as almas individuais, naquilo que ele

                                                                                                                         

414 Op. cit. 415 Idem, pág. 13. 416 Idem, pág. 16.

conceitua por anima collectiva, ou “mentalidade grupal” – emanando aquela vibração oculta que os judeus denominam “elam”, Hegel chamaria de “Espírito da Guerrilha” e Benjamin de “fenômeno originário”. Elias, contudo, me parece aquele que apresenta as melhores vias de acesso para o objeto em questão.

Em nossos dias, observa ainda Elias, a teoria da Gestalt ensinou-nos que o todo é diferente da soma de suas partes, que incorpora leis de um tipo especial, as quais não podem ser elucidadas pelo exame de seus elementos isolados. Tomemos o exemplo da casa de Aristóteles, ou da melodia, que também não pode ser compreendida como uma mera somatória de notas individuais, “mas é diferente de sua soma”, argumenta Elias. Ou, ainda, o exemplo das palavras e da frase, ou das frases e do livro, argumenta o autor.

Ainda de acordo com Elias, a relação entre os indivíduos e a sociedade é uma coisa singular, que não encontra analogia em nenhuma outra esfera da existência. Não se compreende a melodia examinando-se somente cada uma de suas notas separadamente, sem relação com as demais. Dá-se algo semelhante com a casa.

Aquilo a que chamamos sua estrutura não é a estrutura das pedras isoladas, mas a das relações entre as diferentes pedras com que ela é construída; é o complexo das funções que as pedras têm em relação umas às outras na unidade da casa. (...) Deve-se começar pensando na estrutura do todo para se compreender a forma das partes individuais417. (Grifo meu)

A partir da alegoria da casa de Aristóteles, Elias apresenta um modelo de análise no qual para é preciso desistir de pensar tão-somente nos indivíduos isolados, e começar a pensar em termos de suas relações e funções. Ou seja, nas diversas pessoas inter-relacionadas entre si. Assim, também tomo emprestados a alegoria de Aristóteles e o método de análise de Norbert Elias para buscar compreender, afinal, quem eram os guerrilheiros do Araguaia.

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O primeiro passo é identificar as pedras. Optei por individualizar 25 guerrilheiros, cujas histórias pessoais estão sendo apresentadas, com maiores ou menores detalhes, ao longo da narrativa. Significa uma amostra de 35% do total de 79 pedras que formaram a casa.

Escolhi essa amostra seguindo a combinação de dois critérios. Primeiro, o fato de terem sido chefes oficiais do movimento ou comandantes de fato dos guerrilheiros. O outro critério é o de terem protagonizado episódios relevantes do objeto narrado418. Alguns desses protagonistas já tiveram breves apresentações no Capítulo 2.

Lembro que optei por abrir a narrativa da pesquisa valorizando os silenciados, os guerrilheiros pouco conhecidos, muitos anônimos – seguindo a dialética proposta por Benjamin, que busca restaurar a justiça aos “esquecidos” da História. Contudo, não há qualquer razão para cair no oposto-contraditório, relegando os comandantes às fissuras da História.

Afinal, todos os 79 guerrilheiros foram protagonistas da trama, pedras que estruturaram uma casa, não importando para esta pesquisa se cumpriram o papel de comandantes (como Velho Mário e Joaquim) ou de guerrilheiros de base (como Maria e Raul), se emergiram do episódio como mitos (como Dina e Osvaldão), ou restaram quase anônimos (como Simão e Beto).

Ora, se busco chamar nomes pouco conhecidos ao protagonismo da trama (como nos casos de Ari e Maria Diná), independente de suas posições na hierarquia da organização guerrilheira, é com o objetivo de ressaltar as identidades plurais dos guerrilheiros.

Observa Elias que, mesmo dentro de um mesmo grupo, as relações conferidas a duas pessoas e suas histórias individuais nunca são exatamente

                                                                                                                         

418 Esclareço que o critério de relevância é uma opção discricionária que emerge das análises do

historiador. Por exemplo, de acordo com a história oficial do PC do B, o episódio mais relevante teria sido o Chafurdo de Natal, quando morreram três comandantes, a começar pelo comandante-em-chefe das Forças Guerrilheiras do Araguaia, Velho Mário (Maurício Grabois) -- conforme se depreende pela análise do conjunto de publicações sobre o episódio, ou patrocinadas pela Fundação Maurício Grabois, e/ou publicadas pela editora do partido, a Anita Garibaldi. Pela análise das informações colhidas nesta pesquisa, contudo, o episódio mais relevante para o desfecho trágico do movimento teria sido a decapitação do guerrilheiro Arildo Valadão, o Ari, seguido da reunião dos guerrilheiros diante de seu corpo, no qual Osvaldão anunciou que resistiria até a morte apenas com alguns, orientando os demais para que escapassem o quanto antes da região. Por essa razão, optei por abrir a narrativa da pesquisa pela morte desse guerrilheiro “esquecido”, Arildo.

idênticas. “Cada pessoa parte de uma posição única em sua rede de relações e atravessa uma história singular até chegar à morte”419, explica. Desta forma, analisando algumas das pedras e, principalmente, as inter-relações entre elas, será possível por fim chegar à possibilidade de observação da casa.

Os guerrilheiros do Araguaia estavam essencialmente tomados por sonhos e movidos pela esperança de construção de um país justo e igualitário, seguindo o imaginário revolucionário daquele tempo420, as décadas de 1960 e

1970. Enfim, estavam catalisados por uma prática política gregária e pelas experiências de satisfação coletiva na busca pelo bem comum, a argamassa que fazia daqueles indivíduos um grupo.