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Stefan Zweig certa feita escreveu cinco ensaios sobre conhecidos episódios, os quais ele chama de “miniaturas da História”, e os reuniu em livro batizado de Momentos Decisivos da Humanidade205. Inspirando-se nas

tragédias gregas – tramas nos quais o homem tenta controlar o próprio Destino, mas acaba por ser abalroado pelo Acaso em alguma encruzilhada da vida206 - Zweig defende a ideia da existência de alguns episódios, como a derrota de Napoleão em Waterloo, que pelo que carregam de simbólico, de trágico ou de épico, teriam a força capaz de sintetizar uma época, ou até mesmo de determinar o destino da humanidade:

A História, como a natureza, tem inúmeras e infinitas formas. (...) Certas vezes brilha como as águas torrenciais

                                                                                                                         

203 De acordo com a reconstrução desta pesquisa a partir de narrativas orais dos camponeses. Fontes: ver

nota anterior.

204 Idem.

205 Stefan Zweig. Momentos Decisivos da Humanidade. Trad. Medeiros e Albuquerque. Rio de Janeiro:

Ed. Guanabara, 1934. Historiador, biógrafo, romancista e dramaturgo, Zweig (1881-1942) foi um dos mais influentes intelectuais europeus (e dos mais vendidos) a partir da década de 1920. Sua trajetória pessoal, em muito, lembra a de Benjamin. Ambos judeus, contemporâneos, suicidaram-se deprimidos com a expansão da barbárie nazista. No caso de Zweig, matou-se enquanto no exilio em Petrópolis, Brasil.

206 O trágico grego costuma ter como protagonista um homem que tenta controlar o próprio Destino, aqui

grafado em maiúscula, mas acaba tragado por algo maior. Sobre o Destino e o Acaso no épico grego, destaco dois ensaios do helenista Eudoro de Sousa: “Mito e dialéctica em Platão”, in: Eudoro de Sousa.

Dionísio em Creta e outros ensaios. Introd. António Telmo. Lisboa: Imprensa Nacional e Casa da Moeda,

2004, págs. 221 a 232; e “Origem da poesia e da mitologia no drama ritual”, in: Origem da Poesia e da Mitologia e outros ensaios dispersos. Org. Joaquim Domingues. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 2000, págs. 67 a 96.

que seguem o seu fatal curso, e num redemoinho, arrebata os acontecimentos ao capricho desordenado do vento. Outras vezes, vai estatificando as épocas com a imensa paciência dos largos processos de cristalização e, logo, num único relâmpago, comprime dramaticamente as camadas contíguas e, sempre criadora, nesses momentos de síntese genial, revela-se artista, pois, apesar de milhões de energias moverem-se nosso mundo, esses fugazes instantes explosivos dão uma forma dramática207. Ao longo de oito anos, desde que o primeiro militante do PC do B chegou à região do Araguaia, em 1966, até o instante da morte da última guerrilheira, em 1974208, ocorreram inúmeros episódios dignos de registro para a História. E houve também um processo histórico, que obviamente teve início antes do primeiro militante chegar, e prosseguiu depois da última guerrilheira falecer. Contudo, tomo emprestado de Zweig o conceito de “miniatura da História” para ressaltar que este episódio acima narrado, determinante, tomado de significados, sintetiza todo o épico e o trágico contido no objeto. Um instante tão fugaz quanto explosivo, diria Zweig. Dramático.

Com aquele discurso, tal qual o de um profeta que aponta o caminho da esperança, Osvaldão puxava a si a responsabilidade sobre o movimento. Dentro do PC do B, ele era apenas um jovem militante de base quando chegou ao Araguaia. Na hierarquia das Forças Guerrilheiras, ele era o comandante do Destacamento B, chefe guerrilheiro de outros 20 camaradas. Acima dele na hierarquia havia a Comissão Militar, formada por seis pessoas, tendo à testa o camarada Mário, comandante-em-chefe das Forças Guerrilheiras do Araguaia, e o vice-comandante Joaquim209.

Mas raros eram os moradores locais daquele tempo que ouviram falar de Mário ou de Joaquim – e continuam sem saber quem são, segundo pude constatar na pesquisa de campo. Mesmo porque, por questão de segurança para todo o grupo, os dois comandantes tinham por dever levar um cotidiano discreto, reclusos na floresta, com o menor contato possível com o mundo

                                                                                                                         

207 Idem, pág. 7 e 8.

208 O primeiro a chegar foi Osvaldo Orlando Costa, em meados de 1966; a última a morrer foi Walkíria

Afonso Costa, em outubro de 1974, protagonistas que serão apresentados em episódios específicos que serão abordados adiante, ao longo da narrativa.

externo. Afinal, eram militantes comunistas históricos, por demais conhecidos pela repressão militar. Antes das forças da repressão chegarem à região, era preciso que os dois dirigentes se mantivessem ocultos para não chamar a atenção sobre os preparativos para a futura guerra revolucionária, que um dia seria desencadeada. Depois que os militares entraram no Araguaia, o cuidado passou a ser redobrado.

Osvaldo e Dina, por seu turno, tinham por missão justamente a máxima integração possível com os moradores da região, como mostram tanto os documentos militares, quanto aqueles produzidos pelos guerrilheiros. Por isso, quando a luta armada eclodiu, passaram a ser os guerrilheiros mais conhecidos.

O comandante Velho Mário (Maurício Grabois) e o vice-comandante Joaquim (Ângelo Arroyo) tinham por dever político levar um cotidiano discreto, reclusos na floresta. Por essa razão, raros são os camponeses que guardam seus respectivos nomes em suas lembranças sobre os tempos da guerrilha.

Consequência dessas missões políticas é que, para os moradores da região, Osvaldão e Dina eram os principais líderes guerrilheiros – e continuam sendo, de acordo com o imaginário local no agora. Mais do que personagens da História, transformaram-se em dois grandes mitos populares.

Reza a lenda, de acordo com os narradores entrevistados, que Dina virava borboleta e Osvaldão lobisomem210. Tratam-se de representações coletivas que emergem de narrativas populares a respeito da liderança reconhecida desses dois guerrilheiros.

Dina era conhecida por suas pregações políticas diante dos camponeses, acenando com a “terra prometida”, e também por sua enorme capacidade de esconder-se entre as folhagens e pular de árvore em árvore, escapando das balas do Exército. Osvaldo, por sua vez, era um gigante corajoso, inexpugnável, temperamental e implacável.

Diante dos companheiros em armas, Velho Mário era o grande estrategista da luta, um dirigente histórico da política a ser respeitado – e obedecido. Idem quanto a Joaquim. Mas o comandante Osvaldo e a vice- comandante Dina, eram de fato (mas não de direito) os guerrilheiros mais influentes. Durante as intempéries na selva, quando diante das armas do inimigo, eram Osvaldo e Dina que os camaradas seguiam. Esse fato transparece tanto no “Diário do Velho Mário”, quanto nas cartas que os guerrilheiros enviaram às famílias211.

Enfim, quando Osvaldão proferiu aquele discurso após sepultar o camarada decapitado, comunicando que lutaria até a

morte – em verdade uma decisão monocrática, sem abertura ao debate – a partir desse momento, assumiria de fato e de direto a liderança absoluta da guerrilha. Resistiriam até o fim ele, sua vice- comandante Dina e mais seis eleitos.

E a partir daquele instante – que Zweig classificaria por “decisivo” – ninguém mais teria defendido o plano de fuga. Pelo menos, não

                                                                                                                         

210 Esse assunto será tratado adiante, no Capítulo 7, “Aliança com os camponeses”, a partir do conceito de

feixes de representações, de Cornelius Castoriadis.

211 Em carta que o guerrilheiro Flávio enviou a seus pais depois quando chegou ao Araguaia, em 1970,

correspondência esta apreendida pelas forças de repressão, ele descreve: “Encontramos o comandante, um negro de mais de dois metros de altura, já lendário na região e extremamente querido pela população local, parecia maior ainda com seu chapéu de couro”. In: Ciro Flávio Salazar de Oliveira. [carta]. 6f.

publicamente. Afinal, se Osvaldo havia escolhido os mais “preparados e corajosos” para prosseguir na luta pelo sonho, por silogismo, desistir da guerrilha soaria como despreparo e covardia – ainda que a História registre várias retiradas estratégicas como feitos heroicos212. Contudo, o que se veria nos dias subsequentes foi um verdadeiro “salve-se quem puder”. E o épico daria lugar ao trágico.