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Em seus estudos sobre o imaginário instituinte, Castoriadis312 defende a ideia de que o mundo histórico é o mundo do fazer humano, no qual se desenvolve um modo específico de fazer, que é o fazer político por ele designado como práxis. A imaginação social, ainda segundo o autor, é o motor da criação humana inserida no social e no histórico, é criação e fazer ser no tempo. O imaginário não emerge do irracional, nem do pensamento, mas sim da realidade social. Para Castoriadis, a sociedade constitui sempre sua ordem simbólica num sentido diferente do que o indivíduo pode fazer. Mas essa constituição não é livre, ressalta. Ela também deve tomar sua matéria no que já existe.

Assim, para compreender aquele punhado de jovens que foram para o coração da floresta deflagrar a revolução socialista – sujeitos que “nada temem, desprezam a morte e vão ao encontro do porvir”313 – será preciso recorrer justamente ao sistema de representações e de valores daquele tempo.

                                                                                                                         

312 Cornelius Castoriadis. A Instituição Imaginária na Sociedade. Op. Cit.

E que representações eram essas? Ora, eles eram marxistas-leninistas, segundo se definiam. E o partido que os convocou à luta, por sua vez, era uma organização que se autodenominava como de “vanguarda”.

Invoquemos, assim, os estudos e conceitos de Hannah Arendt a respeito das chamadas “organizações de vanguarda” do Século XX, como também o pensamento do filósofo marxista alemão Ernest Bloch a respeito das organizações políticas messiânicas – tema que já havia sido abortado antes por Benjamin. A dialética benjaminiana, como já visto, é indissociável do messianismo político. Benjamin havia lido Bloch, elogiado muitos pontos e criticado outros, como a abordagem sobre os conceitos de “sonho” e de “esperança” do filósofo, considerado por ele muito conformista314.

Arendt, por sua vez, já havia lido, estudado e compreendido Benjamin – de quem era admiradora e grande amiga – quando lançou Origens do

Totalitarismo315, sua obra mais reconhecida, seguindo por alguns caminhos abertos pelo amigo. A obra derradeira de Bloch, O Espírito da Utopia, apareceu uma década depois316. Ressalte-se que Arendt e Bloch seguem caminhos autônomos. O fato é que essa questão, o messianismo como política, assim como o conceito do vanguardismo nos movimentos revolucionários, guardam muitas interseções entre os pensamentos de Benjamin, Bloch e Arendt, principalmente dos dois últimos.

Em Origens do Totalitarismo317, Arendt faz uma distinção muito clara do

fenômeno do totalitarismo com relação às ditaduras anteriores ou posteriores – da tirania clássica, passando pelo absolutismo moderno e por “toda sorte de novas tiranias, fascistas e semifascistas, ou unipartidárias”, até chegar às ditaduras militares que proliferaram em especial na América Latina, África e Ásia durante a Guerra Fria. Há inúmeros pontos convergentes entre

                                                                                                                         

314 Os três, alemães e judeus, foram mais ou menos contemporâneos: Bloch (1880-1956), Benjamin

(1892-1940) e Arendt (1906-1975).

315 Ela terminou de escrever em 1948 e lançou a primeira edição, nos Estados Unidos, em 1949. Hannah

Arendt. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

316 A primeira edição é de 1959, portanto após sua morte, lançado em Frankfurt, sob o título de Das Prinzip Hoffnung. Apud: Ernest Bloch. O Princípio Esperança. Op. cit., pág. 4.

317 Arendt terminou os manuscritos em 1949, quatro anos após a morte de Hitler e o final da Segunda

Grande Guerra, e quatro anos antes da morte de Stalin, em 1953 – segundo ela própria obserservaria em um Prefácio que escreveu a uma nova edição da obra, em 1966. A primeira edição do livro é de 1951. Arendt, op. cit, pág. 339.

totalitarismo e ditaduras, tantos que, muitas vezes, a própria Academia costuma confundi-los, observa Arendt318.

Contudo, duas características únicas distinguiriam os regimes totalitários de tudo mais o que viera antes ou depois. Primeiro, o apoio fenomenal das massas, conquistado tanto pelo Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães quanto pelo Partido Comunista da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. A segunda característica observada por Arendt é que esses regimes estavam alicerçados em “organizações de vanguarda”.

Ao longo de sua obra, Arendt cometeria muitas ousadias. Uma delas foi tecer a comparação entre as organizações políticas de vanguarda e a mística religiosa, ou seja, o fenômeno do messianismo na política, temas que já haviam sido dissecados por seus patrícios e contemporâneos Benjamin e Bloch, como já dito.

Segundo Arendt, em quase tudo essas organizações se assemelhavam às “sociedades secretas (esotéricas)”, compara ela, com a criação de um mundo “artificial” e “de aparências” através de complicados rituais iniciáticos, com suas regras difusas319. Ainda segundo Arendt, nessas organizações “esotéricas”, as pessoas unem-se mais firmemente através da experiência partilhada de um ritual secreto do que pela simples admissão ao conhecimento do segredo320.

* * *

Em obra tão original quanto à de Arendt, Bloch cometeu, ao longo dos três volumes de O Princípio Esperança321, a ousadia de tecer o cruzamento

entre os movimentos religiosos messiânicos e as organizações de vanguarda que lideraram as modernas revoluções. Assim como Arendt encontrou no

                                                                                                                         

318 Arendt observa: “O que é importante em nosso contexto é que o governo totalitário é diferente das

tiranias e das ditaduras; a distinção entre eles não é de modo algum uma questão acadêmica que possa ser deixada, sem riscos, aos cuidados dos ‘teóricos’, porque o domínio total é a única forma de governo com a qual não é possível coexistir. Assim, temos todos os motivos para usar a palavra ‘totalitarismo’ com cautela”. Idem, pág. 343.

319 Idem, ibidem. 320 Idem, ibidem.

321 Ernest Bloch. O Princípio Esperança.Vol I (Tradução de Nélio Schneider), Vol. II (Tradução e notas

de Werner Fuschs) e Vol. III (Tradução e notas de Nélio Schneider). Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. UERJ, 2005 – 2006.

totalitarismo traços comuns do nazismo e do comunismo – em especial o fato de fazerem uso de vanguardas organizadas como alicerces – Bloch tece sua própria comparação em pelo menos uma singularidade relevante comum às religiões messiânicas e aos movimentos revolucionários: o culto ao profetismo.

Considerado um dos críticos mais corrosivos do imaginário cristão, Bloch parte do pressuposto de que a utopia faz parte da estrutura histórica do homem. Em O Princípio Esperança, Bloch busca demonstrar que o espírito utópico322, embora pareça estar divorciado da realidade presente,

vislumbra que o “aqui e agora” é preocupante. Isto é, a utopia deixa margem a uma real crítica do presente.

Transportando para o objeto desta pesquisa, a Vida como Bem Supremo – conforme o conceito de Arendt -- é relativizada, e toma seu lugar como valor fundamental àquela esperança que leva um sonhador a desprezar a morte a ir ao encontro do porvir – como rege a Canção do Guerrilheiro – criando um “lutador audaz do Araguaia, rebelado no Sul do Pará” que “junto ao povo, unido e armado, na certa um dia vencerá”323.

“O que importa é esperar”, explica Bloch. “O ato de esperar não resigna:

ele é apaixonado pelo êxito em lugar do fracasso. A espera, colocada acima do ato de temer, não é passada como este, tampouco está trancafiada em um nada” 324.

Em prosseguimento à fundamentação de Benjamin sobre o messianismo como conceito político, Bloch observa que o messianismo está sempre ligado ao profetismo. E o que é o profeta? Ora, é o “mediador”, “o que diz”, o que “anuncia”. Enuncia dentro de uma voz de sacralidade que ultrapassa o tempo e o espaço. É, ao mesmo tempo, acrônico (de cronos, fora de um tempo determinado) e utópico (de topos, para além de um lugar específico).

                                                                                                                         

322 Em obra anterior, Espírito da Utopia, op. cit., Bloch toma emprestado o conceito de Hegel de Espírito

do Mundo (Weltgeist) e de Espírito do Tempo (Zeitgeist).

323 Trata-se da transcrição da oitava e penúltima estrofe da “Canção do Guerrilheiro”. 324 Ernest Bloch. O Princípio Esperança – Volume 1. Op. cit., pág. 13.

O profeta é simultaneamente chefe religioso, chefe militar, chefe politico, chefe legislador e julgador – tudo em uma só pessoa. No profetismo, é muito difícil separar a religião do Estado. A ideia é de missão divina, uma função que transcende os interesses pessoais, ou mesmo de um povo. Enfim, um profeta messiânico a conduzir um grupo predestinado, coletivo este que tinha sua própria identidade. Até este ponto, Bloch se refere ao profetismo religioso.

O Iluminismo trouxe novas cartas semânticas, como os conceitos de “Civilização” e de “Humanidade”. Então, a Sagrada Aliança messiânica transcendeu o teológico e passou a ser com toda a Humanidade – levar luzes para todos os povos e nações. Assim, os povos “civilizados” tinham a obrigação de “civilizar” os primitivos. A principal ideia das modernas revoluções iluministas é a de acelerar o metabolismo social. Daí, a antológica frase de Robespierre quando radicaliza com sua guilhotina: “É preciso acelerar o curso da História”.

As revoluções modernas têm qualquer coisa próxima da experiência mística, observa Bloch, uma experiência interior no qual individuo visa se libertar do espaço e do tempo (utopia e acronia) para se reencontrar com o Divino. Místico é aquele que Teos vem a mirar mesmo antes do fim dos tempos. Revolucionário é aquele que quer o fim da História antes do fim dos tempos. É o profeta da sociedade científico-industrial325.

O revolucionário busca, em essência, fazer com que o futuro chegue mais cedo – “sua tarefa gloriosa, realizada com ardor”, rege ainda a “Canção do Guerrilheiro”. E seus líderes, por sua vez, costumavam ter o futuro como previsão científica. Vitória da razão prognóstica, outro nome do profetismo. Assim, o revolucionário iluminista é um missionário, portador da Luz.

Tal qual Hegel, Marx criou um pensamento fundamentado no princípio de que a História tem um sentido. E para Marx, o sentido da História seria a Igualdade, a sociedade sem classes. Idealista utópico, em total consonância com o imaginário de seu tempo, Marx demonstra ao longo de toda sua obra

                                                                                                                         

325 Apud: Fernando Catroga. Os passos do homem como restolho do tempo – Memória e o Fim da História. Op. cit. 221.

uma profunda convicção de como deve ser o futuro. De acordo com os fundamentos marxistas, chegará o tempo no qual os homens viverão em uma sociedade sem classes. Até lá, teremos que atravessar a sociedade das cruzadas, da luta revolucionária dentro da História.

A partir de Lenin, e sobretudo com Stalin, o pensamento marxista começa a pregar a necessidade de uma vanguarda revolucionária que traga a redenção social. A expressão “vanguarda” é posterior a Marx, emergiu do leninismo do início do Século XX. Nos tempos de Marx, a metáfora utilizada, herança do iluminismo francês, era a ideia de quem vai à frente levando um “facho de luz”.Com a palavra, Bloch:

Corruptio optimi pessima: a esperança fraudulenta é uma das maiores malfeitoras, até mesmo um dos maiores tormentos do gênero humano, e a esperança concretamente autêntica, a sua mais séria benfeitora. A esperança sabedora e concreta, portanto, é a que irrompe subjetivamente com mais força contra o medo, a que objetivamente leva com mais habilidade à interrupção causal dos conteúdos do medo, junto com a insatisfação manifesta que faz parte da esperança, porque ambas rogam do não à carência. Pensar significa transpor. (...) Marx representa a reviravolta na tomada de consciência do transpor concreto326.

Assim, segundo o caminho aberto, ainda na década de 1930, por Benjamin, aprofundado por Arendt e dissecado por Bloch, o marxismo- leninismo seria, em sua mais profunda essência, uma espécie de movimento messiânico dentro do contexto culto das ciências dos séculos XIX e XX. Lenin mobilizava em nome da ciência a fé revolucionária de seus militantes, criando, assim, um “momento de suspensão do tempo e espaço banal para viver um tempo e um espaço místico religioso”327.

Ainda de acordo com essa linha de pensamento, os movimentos revolucionários marxistas-leninistas do Século XX – incluindo-se o objeto desta

                                                                                                                         

326 Bloch. O Princípio Esperança. Op. cit. págs. 15 e 16. 327 Idem, ibidem.

pesquisa, a Guerrilha do Araguaia – teriam sido, mutatis mutandis, vanguardas que empunhavam o facho de luz a fim de levar a redenção socialista a todos os povos e nações. Bloch:

Desde Marx, não existe mais investigação da verdade nem juízo realista que possam esquivar-se dos conteúdos subjetivos da esperança no mundo – a não ser sob pena de trivialidade ou de beco sem saída. A filosofia terá consciência do amanhã, tomará o partido do futuro, terá ciência da esperança do mundo. Do contrário, não terá mais saber328 (Grifo de

Bloch).

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Aceitando essa linha de pensamento, o Partido Comunista do Brasil, o PC do B, idealizador do movimento de luta armada no Araguaia, deve ser analisado como uma organização de vanguarda, de acordo com as acepções de Arendt e Bloch, tendo seus fundadores e principais lideranças um viés essencialmente messiânico.

Relevante ressaltar, contudo, que o PC do B não tinha nenhum líder messiânico em sua direção. No Araguaia, Velho Mário, o comandante-em- chefe das Forças Guerrilheiras, também estava muito longe de querer sê-lo – ainda que, em seu diário, sejam muitas as passagens no qual ele se mostre um evolucionista e tente vislumbrar o futuro embalado muito mais na fé do que na razão. Porém, trabalho com a hipótese secundária de que a Guerrilha do Araguaia, em muitos momentos, sobretudo em seu final, tenha tangenciado as características de um movimento messiânico.

E quanto a aqueles jovens idealistas que se apresentaram à luta, tomados de esperança de construir um espaço de vanguarda revolucionária nas selvas amazônicas? Ora, eram 69 militantes políticos quando a luta armada começou. Não eram monolíticos antes, nem durante – e muito menos no final da luta, quando o Exército apertou o cerco e eles, de repente, se viram sendo exterminados.

                                                                                                                         

Desde sua chegada à região, quando iniciou suas pregações aos moradores da região, Dina acenava com um mundo melhor, justo e igualitário, quando um dia a revolução triunfasse. E Osvaldo, por sua vez, a partir do momento em que assumiu a liderança da luta, incorporou a capa do profetismo. Na terceira e derradeira campanha, Dina e Osvaldão, a borboleta e o lobisomem juntos, empunharam o facho de luz e passaram a apontar o caminho do porvir. E tal qual profetas, os dois passaram a representar a esperança de um dia efetivarem a tão sonhada revolução. Ainda que, nos últimos meses de luta, fosse apenas um fio de esperança.