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Uma das indagações fundamentais dessa pesquisa é buscar compreender, afinal, como e por que um punhado de jovens idealistas decidiram abandonar suas rotinas estabelecidas nas cidades para arriscarem suas vidas na selva? O fato é que as realidades são muito mais complexas do que nossa teoria e nosso pensamento consegue perceber. Retornemos então, a título de exemplo, ao protagonista acima retratado e as encruzilhadas de sua trajetória pessoal, indivíduos que se cruzam aqui e acolá, formando uma teia de relações que desaguaria no Araguaia.

João Carlos retornaria ao Brasil em outubro de 1967. Encontrou um país em ebulição política. Mas João Carlos desistira do futebol. Desistira de ser

Paquetá ou Carlô. Queria reconstruir sua identidade, agora como médico, Dr.

João Carlos, como é chamado por seus pacientes no tempo do agora. No final de 1968 passou no vestibular para a Escola de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro444.

                                                                                                                         

444 Fundada em 1912, é uma das mais antigas e tradicionais faculdades de Medicina do país. Na presente

data, faz parte da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a UniRio, e possui o Hospital Universitário Graffeé e Guinle, dos mais conceituados do Rio de Janeiro.

Ainda como calouro, tomou os primeiros contatos com a militância estudantil. Primeiro, nos grupos de estudos. Logo seria recrutado para o PC do B. Sua missão: criar um núcleo do partido na Medicina. Acabou conhecendo um novo amigo, Afonsinho, estudante da faculdade e craque do Botafogo, célebre na luta pela Lei do Passe Livre445. Tornaram-se grandes amigos; ainda são no tempo presente. João Carlos conseguiu recrutar oito pessoas – e seis deles mais tarde acabariam no Araguaia.

O primeiro seria o estudante de Medicina, Elmo Corrêa, um carioca da Zona Sul (foto). Ele tinha uma namoradinha de adolescência, Telma Regina Cordeiro, estudante de Geografia da

Universidade Federal Fluminense, em Niterói. Telma acabou recrutada por Elmo. Faziam as reuniões políticas na casa dos pais dele. Sua irmã, Maria Célia Corrêa, acabou também desejando entrar no partido. Ela e João Carlos logo começariam a namorar. Já eram quatro naquele núcleo, dois casais. Naquele pequeno núcleo, unido pelo imaginário revolucionário daquele tempo, os primeiros indícios de uma

anima collectiva.

* * *

À sequência, João Carlos recrutou outra colega da Medicina, Lúcia Maria de Sousa, colega de turma de Afonsinho no colegial – de acordo com sua narrativa a esta pesquisa. Morena de lábios grossos e corpo de passista, nascida e criada em São Gonçalo, município da Grande Niterói, ela era filha de um funcionário das balsas que fazem a travessia Rio-Niterói, cuja função era jogar as cordas para que alguém no cais amarrasse a barca.

                                                                                                                         

445 Afonso Celso Garcia Reis conseguiria comprar seu próprio passe em 1972, depois de mais de um ano

de luta na Justiça. Saiu do Botafogo e foi jogar no Olaria do Rio de Janeiro. Jogou até 1982 pelo Olaria na condição de primeiro jogador “liberto” do Brasil.

Maria Lúcia (foto) começou a frequentar os Concertos da Juventude do maestro Eliezer de Carvalho. A melhor parte era quando ele parava os acordes para ensinar aos ouvintes como escutar música clássica. Lúcia foi fisgada pela música do maestro. Apaixonou-se também por literatura.

Sua grande fantasia era a história de Louise Michel, poetisa e militante anarquista, feminista e sindicalista, célebre por sua liderança na Comuna de Paris. Maria Lúcia emocionava-se às lágrimas sempre que relatava um episódio no qual militantes da Comuna foram condenados ao fuzilamento, mas a líder Louise fora poupada com a prisão. Louise, então, pede a palavra no tribunal e desafia os juízes a também condená-la à morte: “Neste momento em que cada generoso coração tem como paga um pedaço de chumbo, exijo a minha parte”.

Os juízes vacilam e preferem manter a sentença de prisão, decerto pela imensa popularidade da ré, cuja morte poderia provocar novas revoltas em Paris446. Louise acabaria se tornando musa-inspiradora de poetas como Jean-

Baptist Clément, Antoine Renard e Vitor Hugo, de quem foi amante447.

Sua admiradora, Maria Lúcia, era também libertária. E extremamente romântica. Guardava sua virgindade para alguém especial. Não que fosse pudica, mas sonhava ter “um companheiro que respeite a pessoa humana”448. Ao ser recrutada para o PC do B pelo colega da Medicina, na virada de 1969 para 1970, Lúcia questionou muito o stalinismo do partido:

“E o homem, e o ser humano, onde está nisso tudo?”

                                                                                                                         

446 Esse episódio ocorreu em 1871.

447 Teriam tido uma filha, versão contestada por alguns de seus biógrafos. O fato é que Vitor Hugo dedica

a Louise seu poema Viro Major.

448 Fonte: João Carlos Wisnesky. Depoimento oral para esta pesquisa. Os dois, João Carlos e Maria Lúcia,

tornaram-se grandes amigos e confidentes, independente das relações políticas. No Araguaia, quando os combates com os militares tiveram início, a partir de 1972, Lúcia apaixona-se pelo guerrilheiro italiano Líbero Giancarlo Castiglia, codinome Joca. Os olhos dela brilharam quando ela contou ao amigo João Carlos que dormira na rede com o Joca. Detalhes adiante.

“Nós vamos fazer a revolução para resgatar isso” – respondeu João Carlos.

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Em Origens do Totalitarismo449, Hannah Arendt faz uma distinção bastante cristalina entre os dirigentes das organizações de vanguarda (incluindo aí seus militantes orgânicos), dos militantes não-orgânicos, os simpatizantes e idealistas em geral.

Os idealistas, segundo, Arendt, podem ser meros “simpatizantes”, muitas vezes usados como massa de manobra política. Têm profissão e endereços conhecidos. Vivem na normalidade do mundo e emprestam uma aparência de “normal” ao movimento. Era o caso da quase totalidade dos estudantes ou profissionais liberais que foram para o Araguaia – sendo 31 estudantes e 19 profissionais liberais, ou 81% dos 69 futuros guerrilheiros.

Os vanguardistas, por sua vez, são “iniciados”, vivem em tempo integral com causa, para a causa e na causa. Somente estes fazem parte do “partido de dentro”450 e, portanto, poderiam ser ungidos com a honra de fazer parte da direção das organizações da vanguarda. Os núcleos dirigentes das organizações de vanguarda, de acordo com Arendt, têm natureza paramilitar, ainda que em diferentes graus de militarização.

No caso do objeto em questão, essa distinção estava bastante clara. De um lado, os dirigentes que fundaram uma organização de vanguarda, o PC do B, e conceberam a luta revolucionária optando pela estratégia da guerrilha rural. Apenas quatro deles estiveram em algum momento na região do Araguaia e dois deles participaram, de fato, dos combates – Maurício Grabois e

                                                                                                                         

449 Arendt. Op. cit.

450 Faço uso de uma expressão de George Orwell, pseudônimo Eric Blair, dissidente do Partido

Comunista inglês. Em seu clássico 1984, alegoria construída para denunciar os crimes de Stalin das décadas de 1930-40, Orwell apresentaria um pensamento extremamente similar ao de Arendt. Ele chama os militantes de membros do “Partido de Fora”, e os iniciados em membros do “Partido de Dentro”. Curiosamente, Orwell e Arendt estavam tecendo suas respectivas obras ao mesmo tempo. Ele, pelo viés da alegoria literária; ela, pelo viés acadêmico. Orwell apresentou seus originais ao editor em 1948 sob o título de O Último Homem Livre da Europa. O editor não gostou e Orwell alternou os números 48 por 84. A obra foi publicada em 1949, no mesmo ano em que Arendt terminaria os originais de Origens do

Ângelo Arroyo. A maior parte, contudo, manteve-se na clandestinidade, nas cidades451.

Quando lá chegaram, raros eram os que poderiam ser considerados “vanguardistas”. Eram nove os militantes orgânicos que entraram para o grupo guerrilheiro. Como caso de André Grabois, na clandestinidade desde os 17 anos, filho do dirigente Grabois, que no Araguaia foi ungido com o cargo de comandante do Destacamento A das Forças Guerrilheiras; e de Gilberto Olímpio Maria, genro de Grabois, que no Araguaia foi primeiro designado para a honrosa Comissão Militar e, depois, foi deslocado para o posto de Comandante do Destacamento C. No cotidiano da luta no Araguaia, alguns militantes outrora de base, acabaram sendo promovidos a dirigentes da organização, como foi o caso de Osvaldão e Dina.

De outro lado, um punhado de jovens idealistas, tomados de esperança na construção de um país justo e igualitário, que se apresentaram como voluntários da luta, seguindo os preceitos da disciplina revolucionária do chamado “centralismo democrático” stalinista, ainda que nem sempre concordasse com essas práticas. É o que transparece no diálogo entre João Carlos e Lúcia Maria452.

Os dois jovens estudantes resistiam ao stalinismo preconizado pela organização de vanguarda. Ainda assim, preferiam acreditar que entrar para o partido seria o caminho mais rápido para efetivar o sonho revolucionário. Assim, por opção epistemológica – e de acordo com o pensamento de Arendt – doravante buscarei analisá-los como grupos formados por entes distintos, dirigentes e militantes, ainda que as ligações fossem profundas e as distinções diáfanas.

* * *

                                                                                                                         

451 João Amazonas e Elza Monerat, ambos da Executiva Nacional do partido, estiveram envolvidos nos

preparativos da luta. Contudo, quando souberam que os militares haviam descoberto o movimento, mantiveram-se clandestinos em São Paulo, conforme será narrado adiante. Outro dirigente da Executiva, Pedro Pomar, também participou dos preparativos, contudo, no norte de Goiás, hoje Tocantins.

452

Conforme o acima exposto, antes de aceitar o recrutamento para o PC do B, Maria Lúcia questiona seu amigo João Carlos: “E o homem, e o ser humano, onde está nisso tudo?” E o amigo responde: “Nós vamos fazer a revolução para resgatar isso”

Por dois anos, Lúcia Maria foi a responsável pela distribuição entre os estudantes do jornal clandestino A Classe Operária, apontam os rastros documentais. Sua parceira na distribuição era Jana Moroni Barroso (foto), estudante de Biologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Egressa de uma tradicional família de Fortaleza, Jana fora uma entusiasta dos escoteiros. Havia sido fadinha quando criança e bandeirante quando adolescente.

Logo João Carlos seria convocado para frequentar o Comitê Universitário do PC do B, instância superior à dos núcleos. Foi lá que conheceu Hélio Luís Navarro de Magalhães, estudante de Farmácia e Bioquímica da UFRJ – e colega de curso de Antônio Theodoro, que naquela ocasião já era amigo e parceiro político da turma da Medicina. Foi João Carlos quem deu um terno de presente a Theodoro para que pudesse ministrar aulas no Pedro II. Naquele tempo, professor de colégio tradicional só

trabalhava de terno e gravata. Mais fragmentos de histórias entrecruzadas.

* * *

O primeiro da turma do Rio de Janeiro a ser convocado à revolução foi Luiz Renê Silveira e Silva, outro estudante da Escola de Medicina e Cirurgia. Mas não frequentava o núcleo do PC do B na Medicina. Acabara de ser recrutado por intermédio de sua irmã mais velha, Elizabeth Silveira, que namorava um membro da Direção Central do partido Lincoln Bicalho Roque453.

                                                                                                                         

Luiz Renê (foto) era franzino, tinha um problema no maxilar, uma arcada dentária maior do que poderia suportar, o que lhe dava uma aparência frágil, conforme apontam rastros da pesquisa. Havia cursado o primário e o secundário no Instituto Lafayette, uma das escolas mais tradicionais (com ensino de excelência) do Rio de Janeiro. Foi à revolução em 1970, ainda no primeiro ano da faculdade de Medicina. Tinha apenas 19 anos, o caçula do grupo. Ganhou o codinome Duda.  

Elmo Corrêa foi na sequência. Transmutou-se em Lourival. Um pouco antes, ele havia casado com Telma Regina. Mas ela ficou, por determinação do partido. Outro da turma do Rio que também seguiu em fins de 1970 foi Hélio Luís Navarro de Magalhães, estudante de Bioquímica da Universidade Federal do Rio. Virou o Edinho.

Hélio (foto) era filho de um comandante da Marinha, o capitão-de-mar-e- guerra Hélio Gerson de Magalhães, e de uma

professora de francês e piano clássico, Carmen Navarro Rivas. Era sobrinho de um dos próceres da linha-dura militar, o almirante-de-esquadra (quatro estrelas) Gualber de Magalhães, que no governo de Ernesto Geisel chegou a ser o chefe do Estado Maior da Armada, ou seja, vice- ministro da Marinha.

Um pouco antes de partir rumo ao

desconhecido, procurou sua mãe no

apartamento em Copacabana. Foi se despedir.

Seus pais estavam então separados. Helinho não revelou detalhes do que iria fazer, nem seu destino. Aprendera a tocar piano com a mãe. Era um bom compositor. Então, sentou-se à banqueta compôs uma sonata para dona

Carmen. Foi a última vez que ela teve notícias do filho. Os acordes daquela sonata jamais a abandonariam. Permanecem uma constante presença a ecoar em sua memória454.

* * *

Quando viu seus primeiros companheiros partirem, João Carlos Wisnesky colocou-se “à disposição da luta”. Aliás, quase todos os demais militantes do PC do B também se colocaram à disposição, conforme o jargão da época. Não sabiam para onde estavam indo, não tinham a menor noção da existência de um grupo que se formava no sul do Pará. Mas também queriam ir. Queriam estar dentro grupo, aprofundar as experiências coletivas do movimento estudantil, os trabalhos sociais já vivenciados que iam muito além do pensamento, segundo as palavras de João Carlos. Enfim, já havia um “espírito” revolucionário a uni-los e ele e os demais militantes desejavam permanecer dentro. Por essa razão, ele apresentou-se como voluntário à nova experiência de luta. Usava o codinome Cláudio. Quase um ano depois, em setembro de 1971, seu contato no partido, o dirigente Manoel Jover Telles, comunista histórico, apareceu com a boa nova:

“Cláudio, você vai para o interior, mas vai ter que abrir com a Rosa”.

Rosa era o codinome usado pela namorada Maria Célia Corrêa. “Abrir”, no

dialeto revolucionário, significava terminar, abandonar, chutar. João Carlos queria levá-la junto. Ainda argumentou. Jover disse que o Comitê Central decidira que estava proibido levar mulher. Mais explicações, ele não forneceu. Não era verdade, pois algumas mulheres, como Dinalva Conceição Teixeira, a Dina, naquela época já estavam na floresta.

Jover confidenciou ainda que estava “doido” para também ir à revolução. Mas fora “barrado” pelos camaradas da Executiva do partido, porque sofrera um deslocamento de retina durante uma sessão de tortura numa prisão de

                                                                                                                         

454 Encontrei-me com dona Carmen Navarro em abril de 2011, em Copacabana, Rio de Janeiro, ao lado de

sua filha Aglaé. Foi quando a mesma relatou essa história que, confesso, sempre me emociona muito. Mais tarde, às vésperas do Natal daquele ano, publiquei o relato sobre suas buscas pelo filho em artigo de jornal. Hugo Studart. “Sonata para Carmen – Carmen acalenta a esperança de ouvir a canção que Hélio lhe compôs antes de desaparecer, quando partiu para a guerrilha do Araguaia; será a sua sonata”. Folha de

Getúlio Vargas. João Carlos foi a São Paulo receber instruções no Comitê Central do partido. Era setembro de 1971. Recebeu-o Carlos Danielli, secretário de Organização do PC do B. O estudante quis saber detalhes da futura luta: “E as armas, são de boa qualidade?” – perguntou, fantasiando estar na iminência de empunhar uma das armas que o capitão Carlos Lamarca pouco tempo antes havia levado do quartel de Quitaúna, São Paulo.455

“Não se preocupe, o Exército vai levar as armas para nós” – respondeu Danielli.

“E as provisões?” – insistiu João Carlos. “A selva proverá”.

Foi Elza Monerat, membro do Comitê Central do partido, quem o levou ao Araguaia, de acordo com sua narrativa. Também foi ela quem escolheu o codinome que ele usaria a partir de então, Paulo. Já fora Paquetá e Carlô. Não queria se transmutar outra vez, agora em Paulo, preferia continuar sendo

Cláudio. Mas eram tempos nos quais os stalinistas cultuavam o chamado

“centralismo democrático”. Elza decidira por Paulo e estava decidido. Paulo não sabia direito o que iria fazer, muito menos para onde estava sendo enviado. Só tinha uma certeza: queria estar com os amigos que já haviam partido, desejava fazer parte do grupo que iria desencadear a revolução.

Na mesma época, Telma Regina, esposa de Elmo, acabou tendo a permissão para seguir rumo ao Araguaia; virou Lia – a mesma Lia que, três anos depois, durante os derradeiros combates do Araguaia, escreveria em seu diário que, quando estava na iminência de se entregar à morte, então cantava, a plenos pulmões, a canção dos guerrilheiros, repetindo sem cessar a estrofe que mais a animava, que rege que guerrilheiro “Nada teme, jamais se abate,

                                                                                                                         

455 Recrutado por uma célula de sargentos no Exército, em fins de 1968, o capitão Lamarca aderiu a uma

das novas organizações que proliferavam na esquerda, a Vanguarda Popular Revolucionaria, VPR. Em 24 de janeiro de 1969, Lamarca deixou o quartel de Quitaúna, São Paulo, em companhia de um sargento, um cabo e um soldado, levando consigo um carregamento de 63 fuzis, três metralhadoras e farta munição. In: Hugo Studart. A Lei da Selva, op. cit., pág. 209. Foi desse mesmo quartel de Quitaúna que, em 1922, saiu boa parte dos militares que pegaram em armas contra o governo de Artur Bernardes, numa fracassada insurreição que terminaria na Coluna Prestes, “uma das mais extraordinárias marchas revolucionárias da história da humanidade”, nas palavras de Domingos Meirelles, protagonizada por “dignos e honrados jovens oficiais com o talhe de caráter dos homens de bem do seu tempo, empurrados pelo sonho de transformar o Brasil numa grande nação”. In: Domingos Meirelles. As Noites das Grandes Fogueiras –

afronta a bala a servir. Ama a vida, despreza a morte e vai ao encontro do porvir”456.

Sua cunhada, Maria Célia, a Rosa, também recebeu permissão para seguir atrás do namorado João Carlos. Passou a ser Rosinha. Ela viajou em companhia da militante Luzia Reis Ribeiro, a Lúcia, que acabara de chegar da Bahia457. No Rio, Maria Célia e Luzia haviam formavam um pequeno núcleo paralelo com Tobias Pereira Jr., estudante de Medicina da Universidade Federal Fluminense, em Niterói. Ele também foi, carregando seu violão; virou

Josias458.

Seguiram ainda Theodoro, que já usava no Rio o codinome Raul, e o estudante de Filosofia, Adriano, o Chicão, ou Queixada – outro que terminaria decapitado. A ex-“escoteira”459 Jana Barroso igualmente embarcou; transmutou-se em Cristina.

Por fim, chegou a hora de a romântica Lúcia Maria juntar-se ao novo grupo460. Virou Sônia. Ainda era virgem quando chegou ao Araguaia. Três anos depois, protagonizaria um final épico, ao estilo da morte tão desejada pela personagem de suas fantasias, a poetisa e militante anarquista Louise Michel.

* * *

Deixaram todos eles suas famílias, carreiras e amigos para trás. Deixaram também trás muitos outros fragmentos de visibilidades, como retratos a serem

                                                                                                                         

456 Conforme o narrado no Capítulo 2. 457 Presa em maio de 1972, Luzia sobreviveu.

458 Segundo Luzia Reis (ex-Lúcia). Narrativa oral para a pesquisa.

459 Como já dito, denominação correta é bandeirante para as meninas, escoteiro para os homens. Optei,

contudo, pela licença poética.

460 João Carlos Wisnesky acabaria sendo responsável pelo recrutamento direto ou indireto de um décimo

dos militantes que mais tarde entraria para a guerrilha: Elmo Corrêa (Lourival); Maria Lúcia Sousa (Sônia), Jana Barroso (Cristina) e Luiz Silveira (Duda). Elmo, por sua vez, recrutou sua namorada de adolescência Telma Regina Cordeiro (Lia) e a irmã Maria Célia Corrêa (Rosinha). Com João Carlos, aquele núcleo somava sete dos 79 guerrilheiros. Desses, João Carlos seria o único a conseguir sobreviver aos combates. Conseguiu escapar da área na investida final dos militares, em 30 Set 1973. Três outros dirigentes do partido também conseguiriam escapar, João Amazonas, Elza Monerat e Ângelo Arroyo, além do militante Micheas Almeida, conforme o já narrado. Paradoxalmente, por conta de sua fuga, João Carlos Wisnesky é considerado pela direção do PC do B, até a presente data, como suspeito de traição, um possível informante do Exército. A tal ponto que Elza Monerat chegou a orientar a família de Maria Célia a mover um processo judicial contra ele, no início dos anos 1990, acusando-o da responsabilidade pelo desaparecimento da ex-namorada, processo esse no qual foi inocentado. Uma das principais razões de Wisnesky ser tratado sob suspeição é o fato de que Maurício Grabois registra em seu diário as brigas