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Para Walter Benjamin, o lutar da história é na política, no campo da revolução. Está sempre a pensar na revolução e vê o historiador como alguém que intervém para salvar os esquecidos, promover a redenção. A tarefa do historiador benjaminiano é cultural, mas também uma ação política. E, portanto, uma ação messiânica, o resgate dos esquecidos, através da reconstrução de memórias, por exemplo241.

É neste momento que Benjamin apresenta a proposta da História Integral. Trata-se, em suma, da ideia da redenção, a ideia do historiador buscar despertar e reconstruir aqueles que foram esquecidos pelas “fissuras da História”, sempre dentro do materialismo histórico. Mas a História Integral é do campo da linguagem, a da prosa liberta – a do cronista como narrador da História – que busca a redenção dos esquecidos.

Enfim, trata-se da principal proposta desta pesquisa: tecer uma narrativa histórica que busque reconstruir as memórias dos guerrilheiros do Araguaia, com enfoque nos esquecidos, nos militantes de base, naqueles que por não terem sido comandantes, acabam relegados às “fissuras” da História.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     

Pedro Alexandrino de Oliveira Filho (Peri); Suely Yumiko Komaiana (Chica); Telma Regina Cordeiro Corrêa (Lia); Uirassu Assis Batista (Valdir); e Walquíria Afonso Costa (Val). In: Presidência da República. Direito à Memória e à Verdade. Brasília: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos do Ministério da Justiça e Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007.

240 O Exército mobilizou 750 homens para a Terceira Campanha, todos eles provenientes de tropas

especiais e profissionais, ou da Brigada Paraquedista do Rio de Janeiro, ou dos batalhões de Guerra na Selva de Manaus e de Belém. Foram divididos em três grupos de 250 homens, que se revezavam a cada 40 dias. E esses grupos, por sua vez, foram divididos em 20 equipes de 12 homens, em média, sendo cinco deles paraquedistas, cinco de guerra na selva e dois do CIE. Além dos militares, cada equipe costumava levar dois guias. Esse detalhamento da formação das equipes durante a Terceira Campanha encontra-se em Studart. A Lei da Selva. Op. cit., pág. 215 a 227.

241 Embora Benjamin utilize o conceito de memória como reconstrução, ele também faz uso da expressão

“resgate” dentro do conceito do tikkun. Resgate denota salvar na íntegra, uma aparente contradição com a ideia de reconstruir o outrora a partir do agora, que é a opção conceitual desta pesquisa.

Benjamin defendia um modelo de História “integral” tanto para representar o pequeno, o perdedor, o anônimo, quanto para reconstituir os acontecimentos em seus detalhes, mesmo que pareçam insignificantes. Detalhes como o das três trilhas que se entrecruzam na Grota do Cristal, ou o facão cego que serrou a cabeça de um guerrilheiro enquanto suas pernas estrebuchavam no chão.

Assim, Benjamin escolheu o cronista porque ele representa a história “integral” 242. No ensaio “O Narrador – considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”243, Benjamin apresenta o escritor russo Leskov, assim como Franz Kafka e Anna Seghers, como as figuras modernas do cronista-narrador. O outro legado benjaminiano foi o de buscar reconstruir a relevância do tradicional narrador oral como fonte de pesquisa histórica. Em um de seus trechos mais conhecidos, Benjamin lembra:

(...) O narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos, como o sábio. Pois pode recorrer ao acerto de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia). (Grifo meu)

A experiência que passa de pessoa em pessoa é a fonte a que recorrem todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos244.

Sinésio (foto) era um típico narrador benjaminiano. Uso o verbo no pretérito, pois ele faleceu em maio de 2012, aos 78 anos. Conheci-o em 2009. Morava na cidade de Palestina, às margens do rio Araguaia, em uma casa simples, parede de tijolos à vista, chão de cimento, teto sem forro e banheiro-

                                                                                                                         

242 Ver: Löwy. Walter Benjamin: Aviso de Incêndio, op. cit., pág. 54.

243 O ensaio é de 1936. In: Walter Benjamin. Obras Escolhidas – Vol. 1. Op. cit., pág. 197 a 221. 244 Id., ib., pág. 198.

fossa no quintal, ao lado da primeira de suas cinco mulheres245. Com 1m52 de altura, raciocínio rápido, memória prodigiosa e, sobretudo, eloquente no falar, Sinésio Bringel – como fazia questão de ser chamado – gostava de narrar aos visitantes histórias sobre a Guerrilha do Araguaia.

Ricoeur lembra que as memórias são reconstruções do passado no presente. Seguindo o mesmo caminho, Arendt observa que todo relato feito pelos próprios atores, ainda que, em raros casos, constitua versão fidedigna de suas intenções, finalidades e motivos, não passa de fonte útil nas mãos do historiador, e nunca tem a mesma significação e veracidade da sua história. Pois, segundo a pensadora, “para o ator, o sentido do ato não está na história

que dele decorre. Muito embora as histórias sejam resultado inevitável da ação, não é o ator, e sim o narrador que percebe e faz a história”246.

Assim devem ser interpretadas as narrativas orais dos camponeses de episódios da Guerrilha do Araguaia – como o narrador Sinésio. Aquelas histórias nas quais foi protagonista, como a decapitação de Ari, ou histórias das quais foi testemunha ocular, como a morte de Jaime, Sinésio guarda as mais inacreditáveis reminiscências. Como data e hora exata de cada episódio, nomes, roupas, cores, cheiros, frases e até longos diálogos.

Certa vez o levei de volta à Grota do Cristal, em companhia do camponês e ex-guerrilheiro Jonas Gonçalves, para que tentassem reconstituir o episódio da morte de Ari. Sinésio lembrava-se até mesmo dos espécimes das três árvores nas quais ele, Iomar e Raimundo se esconderam para armar tocaia aos guerrilheiros. E como as árvores já não mais estão de pé, derrubadas pelas queimadas, pegou um facão e cavou nos resquícios de tocos para desvendá-las pelo olfato e, ato contínuo, paladar.

                                                                                                                         

245 Naquele momento, a primeira esposa estava doente. Sinésio, separado da quarta, passou a cuidar da

“velha”, segundo suas palavras.

O camponês Josias Gonçalves, revisitando os locais dos conflitos armados para narrar a esta pesquisa suas lembranças sobre os tempos em que era o guerrilheiro Jonas.

Sinésio, como muitos camponeses, também costumava narrar episódios os quais não avistou com seus próprios olhos ou ouviu com suas próprias “ouças”, como gostava de se referir aos ouvidos. Escutou-os de outras testemunhas oculares ainda nos tempos da guerrilha e os resguardou como reminiscências. Em detalhes – obviamente as ressignificando com sua própria memória, mas buscando sempre manter o sentido dos acontecimentos. Preferia narrá-los de pé, gesticulando muito. Tal qual faziam os narradores medievais, ficava mais eloquente se diante de plateia atenta.

Não aparenta ter qualquer culpa ou remorso do que fez. Ao contrário. A mesma história sobre a morte e decapitação de Arildo Valadão acima narrada, Sinésio relatou para uma juíza federal, em depoimento oficial247. Para ele, cada acontecimento da guerrilha é narrado com conotação épica. Mais uma vez, Benjamin:

Cada vez que se pretende estudar uma certa forma épica é necessário investigar a relação entre essa forma e a historiografia. Podemos ir mais longe e perguntar se a historiografia não representa uma zona de indiferenciação criadora com relação a todas as formas épicas248.

                                                                                                                         

247 A juíza Solange Salgado, da 1ª Vara da Justiça Federal de Brasília, responsável pela sentença que

condenou o Estado a procurar os restos mortais dos guerrilheiros desaparecidos no Araguaia. Ela esteve em Xambioá em 2011, quando quis conhecer e colher depoimentos de alguns ex-guias do Exército que têm informações sobre os locais onde os corpos dos guerrilheiros foram enterrados. Sinésio foi um deles. Naquele dia, eu estava com Sinésio e acabei testemunhando a oitiva.

O grande narrador tem sempre suas raízes no povo, principalmente nas camadas artesanais (...) Comum a todos os grandes narradores é a facilidade com que se movem para cima e para baixo nos degraus de sua experiência, como numa escada. Uma escada que chega até o centro da Terra e que se perde nas nuvens – é a imagem de uma experiência coletiva, para a qual mesmo o mais profundo choque da experiência individual, a morte, não representa nem num escândalo nem um impedimento249.

Ao longo de toda sua obra, Benjamim valoriza muito a história dos vencidos, dos pequenos e dos esquecidos. O que a História tradicional costuma celebrar são os heróis. Contudo, segundo a perspectiva benjaminiana, quem verdadeiramente construiria a História seriam os perdedores250.

* * *

Tomemos o caso desta pesquisa. Meu primeiro ímpeto era iniciar a narrativa por algum dos episódios considerados pela maior parte dos especialistas no tema como os mais relevantes da Guerrilha do Araguaia, ou por algum protagonista conhecido. Um possível início seria Velho Mário, o comandante-em-chefe das Forças Guerrilheiras, em pessoa, registrando a chegada dos militares nas primeiras linhas de seu diário. Ou ainda o Chafurdo de Natal, episódio no qual três comandantes tombariam de uma só vez – Mário, Gil e Paulo – deixando a guerrilha oficialmente acéfala.

A historiografia até agora publicada sobre o tema tende a valorizar esses dois episódios, o início da luta armada, em abril de 1972, e o Chafurdo de Natal, em dezembro de 1973. Tende a valorizar, igualmente, o comandante guerrilheiro, Velho Mário – muitas vezes tratado como herói épico, o Ulisses do Araguaia251. Ora, ao aprofundar a pesquisa, tanto a documental, quando a oral,

                                                                                                                         

249 Id. Ib., pág. 214 e 215.

250 Benjamin. Passagens, op. cit., pág. 522 e 524.

251 A título de exemplo, cito quatro obras que tendem a superlativar a relevância da chegada do militares

na região e do comandante Grabois – menosprezando a importância de outros episódios ou leituras, como o cotidiano na floresta, ou ainda subestimando os guerrilheiros de base e a participação dos camponeses no episódio. São elas, em ordem cronológica: João Amazonas e Outros. Uma epopeia pela liberdade:

Guerrilha do Araguaia 30 anos. Op. cit.; 2) Jacob Gorender. Combate nas Trevas. Op. cit.; 3) Osvaldo

Bertolino. Maurício Grabois: uma vida de combates. São Paulo: Anita Garibaldi: Instituto Maurício Grabois, 2004; 4) Tais Morais e Eumano Silva. Operação Araguaia. Op. cit.

descobre-se que os principais líderes guerrilheiros, em verdade, teriam sido, pela ordem, Osvaldão, Dina, Dr. Juca e Dr. Paulo252.

Primeiro porque, como já dito, o comandante Mário e seu vice Joaquim tinham como dever político se manter nas sombras. Mas independente desse fato, esses quatro guerrilheiros, Osvaldo, Dina, Juca e Paulo, por conta da combinação das circunstâncias, personalidades e atos concretos – como a reunião do grupo diante do corpo decapitado de um camarada – acabaram por assumir a liderança de fato nos momentos decisivos da luta.

Caso eu tivesse tomado o caminho de iniciar a narrativa pela chegada dos militares (o início da luta armada), ou ainda de superlativar o comandante Mário na narrativa (ainda que ele tenha sido o grande estrategista, mesmo que o documento por ele legado, o “Diário do Velho Mário”, seja nevrálgico nesta pesquisa), estaria derrapando para a História linear e totalizante, produto das Filosofias da História – tanto a de Hegel, quanto a marxista – na qual não há espaço para os pequenos, conforme alerta Benjamin. E a História totalizante tende a anular o outro lado da história, joga os outros protagonistas no esquecimento. Cria o que Benjamin define por fissuras da História – os esquecidos que não se encaixam na História totalizante.

Por essas razões, Benjamin queria desmontar a ideia da História do Progresso, onde só há espaço para vencedores e heróis. Em seu tempo, sobretudo dentro de sua escola de pensamento, a de Frankfurt, a História se apresentava essencialmente como o progresso da razão. Ele queria mostrar a falência da razão e quebrar o paradigma da história como continuidade. Benjamin jamais renegou Marx. Ao contrário, cultuava uma profunda admiração

                                                                                                                         

252 Dr. Juca era o codinome usado pelo médico João Carlos Haas Sobrinho. Chegou ao Araguaia se

apresentando como Juca e tentou passar por agricultor, depois por enfermeiro. Na primeira emergência que atendeu, o parto de uma camponesa, com alto risco de vida, passou a ser chamado pela população local de Dr. Juca. Fez treinamento militar na China, em guerra de guerrilhas. Fazia parte da Comissão Militar, o que lhe conferia o status de comandante guerrilheiro. Paulo Mendes Rodrigues, por sua vez, único guerrilheiro além de Juca que era chamado pela população local de “doutor”, era economista. Chegou ao Araguaia com o posto de comandante do Destacamento C. Como Osvaldo, apresentou-se com seu verdadeiro nome, Paulo. Comprou uma fazenda para abrigar os militantes que iam chegando à região. Fala culta, altivo, circunspecto, logo passaria a ser chamado de “Dr. Paulo”. Em determinado momento da luta, foi deslocado para a Comissão Militar. Os dois eram chamados pelos próprios companheiros de Juca e Paulo. Contudo, optei por tratá-los nesta pesquisa pelos nomes que restaram nas lembranças dos camponeses que com eles conviveram, como também no imaginário da região – Dr. Juca e Dr. Paulo.

pelo formulador do materialismo histórico, sobretudo pelas ideias do jovem Marx253.

Essa perspectiva evolucionista não trabalha com recuperação histórica dos vencidos, mas permanece tão somente contando a história dos vencedores. Benjamin já identificava em Lenin esse traço. Passou a ser acintoso em Stalin quando assassinou Trotsky – por quem Benjamin nutria grande admiração – e toda uma geração de intelectuais, apagando-os, a seguir, das fotografias254. A partir de Stalin, sobretudo depois que o ditador soviético mandou decodificar o materialismo dialético em um capítulo da

História do PC bolchevique da URSS, em 1938, Benjamin passa a apontar para

uma adulteração do marxismo, que ele chama, sem meias palavras, de “marxismo evolucionista vulgar”255.

Enfim, o conceito de narrativa, em Benjamin, só pode ser compreendido dentro do contexto de sua crítica às Filosofias da História – evolucionistas, lineares e totalizantes – incluindo o marxismo dialético “vulgar”, que buscavam tão somente contar os acontecimentos a partir do ponto-de-vista dos heróis e dos vencedores, relegando ao esquecimento os vencidos, os pequenos, os anônimos, aqueles que para Benjamin seriam os verdadeiros construtores da História. Assim, ele propõe uma narrativa histórica inspirada na crônica do cotidiano.

* * *

                                                                                                                         

253 Mas foi a partir da Revolução Russa, segundo a visão de Benjamin, que alguns líderes revolucionários

teriam se apropriado do ideal marxista para reconstruir o ideal do progresso. Substituíram a História do Progresso de Hegel pela História da Utopia, colocando a sociedade sem classes como utopia, um ideal a ser um dia alcançado, sabe-se lá quando. Em vez de ser uma exigência no sentido da concretização, esse ideal da sociedade sem classes passa a se configurar numa nova utopia do progresso.

254

Benjamin deixa exposto seu rompimento com o stalinismo nas teses 13 e 17-A de “Sobre o conceito de História”, quando escreve, de seu jeito repleto de alegorias, que o marxismo substituiu a História do Progresso de Hegel pela História da Utopia, colocando a sociedade sem classes como utopia, um ideal do porvir. Assim, não trabalha com recuperação histórica dos vencidos, mas continua com história dos vencedores. In: Walter Benjamin. Obras Escolhidas. Op. cit., págs. 229 a 231.

255 Em carta a Adorno, de 22 Fev 1940, na qual relata que acabara de terminar “um certo número de teses

sobre o conceito de história”, ele tece crítica ao “marxismo vulgar”. Benjamin também não hesita em comparar as práticas da polícia stalinista com a dos nazistas – “ditadura pessoal com todo seu terror”, descreveu – antecipando em uma década o ponto central da obra Origens do Totalitarismo, de Arendt, temos que Apud: Löwy, op. cit., pág 32 e 33.

No caso desta pesquisa, os “vencidos” e “esquecidos” seriam os guerrilheiros mortos e desaparecidos no Araguaia, principalmente aquela esmagadora maioria de jovens quase anônimos – que por não serem dirigentes partidários – desapareceram em algum lutar das selvas amazônicas, silenciados pela História. Mas perdedores e, principalmente, esquecidos, também são os moradores da região, tanto os camponeses que aderiram à guerrilha, quanto aqueles que foram obrigados a servir de guias para o Exército.

Como não restou quase nenhum guerrilheiro vivo para narrar a Terceira Campanha256, onde está concentrada a maior parte dos momentos decisivos da luta armada, tampouco restaram muitos documentos sobre esses acontecimentos257, tornou-se essencial para esta pesquisa recorrer a narrativas orais. Em especial, de camponeses que, por razões diversas, foram protagonistas daquela trama.

Iomar Galego é um deles. Guarda ainda mais informações e detalhes sobre a guerrilha do que Sinésio. De todos os mais de 60 camponeses que serviram de guias do Exército, talvez seja o que conheça as circunstâncias das mortes do maior número de guerrilheiros. Também resguarda detalhes como nomes, datas e diálogos. Trata-se do que Le Goff define por “homens- memória”, os “depositários da história ‘objetiva’ e da história ‘ideológica’”258.

Iomar era o guia de maior confiança do Dr. Faixa Branca, comandante da Base Militar de São Raimundo259. Como ele, tantas informações detalhadas sobre tantos episódios, só haveria mais um na região, Zé Catingueiro260.

                                                                                                                         

256 Exceto João Carlos Wisnesky, codinome Paulo, como já dito, que deixou a região em setembro de

1973, antes dos militares retornarem para a derradeira campanha; e Micheas Almeida, o Zezinho, que também deixou a área na virada de 1973 para 1974, mas como se mantinha preservado numa corrutela, clandestino, resguardado pelo comando da guerrilha para a missão de retirar militantes da área, não testemunhou nenhum combate. Suas respectivas participações na guerrilha serão narradas adiante.

257 Sobre a Primeira e a Segunda Campanha, quando 12 guerrilheiros morreram, a documentação

remanescente é farta. Quanto à Terceira campanha, da qual restam 47 desaparecidos, quando as práticas de exceção e as violações aos Direitos Humanos tornaram-se práticas de Estado, os documentos militares foram quase todos cremados a partir de 1975, na chamada Operação Limpeza. Ocorreram posteriores conjurações nos arquivos secretos militares, especialmente no final do governo de José Sarney. Contudo, restam documentos produzidos pelos próprios guerrilheiros, cartas e diários, como já apresentado, que serão utilizados ao longo da narrativa.

258 Jacques Le Goff. História e Memória. Campinas: Unicamp, 1990, pág. 429.

259 Trata-se do codinome usado pelo então major Nilton Cerqueira, enviado pelo ministro do Exército,

Orlando Geisel, para comandar as tropas de paraquedistas enviadas para o Araguaia durante Operação Marajoara, entre outubro de 1973 e outubro de 1974. Dois anos antes, Cerqueira havia matado o capitão

Mas Iomar não é um narrador tradicional e eloquente, como Sinésio. Ao contrário. Esconde-se há 40 anos do mundo à sua volta, como um ermitão, como se a guerra não tivesse acabado. Encontrá-lo e convencê-lo a narrar suas lembranças foi uma das tarefas mais difíceis desta pesquisa. A maior parte dos camponeses localizados prestou-se a narrar relatos extremamente ricos em informações sobre a guerrilha, alguns deles gravados em vídeo – como foi o caso de Sinésio.

Nessas narrativas orais, detalharam as prisões de guerrilheiros, por exemplo, e ainda muitas informações que emergiram dos depoimentos dos prisioneiros aos militares. Relatavam também as conversas informais que os guerrilheiros aprisionados mantiveram com eles próprios, esses guias- caçadores. São as memórias do cárcere – algumas delas bastantes ricas em significados. Por fim, relataram as execuções dos prisioneiros. Quase todos tinham as últimas palavras a dizer. Dos 63 moradores da região cujas narrativas orais foram aproveitadas nesta pesquisa, segundo pude observar, nove deles são “homens-memória”, na concepção de Le Goff261.

Outros camponeses entrevistados não eram ex-guias ou ex-jagunços a serviço Exército. Eram, simplesmente, moradores da região quando lá se instalaram a guerrilha e, depois, os militares. Não poderiam esclarecer sobre combates ou mortes. Mas, por conta dos anos de convivência com os guerrilheiros, suas memórias guardam narrativas extremamente ricas sobre o imaginário e o cotidiano daquele punhado de jovens que deixou a vida nas cidades em busca do sonho de construir um país justo e igualitário.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     

Carlos Lamarca. No Araguaia, instalou seu comando no meio da selva, na Base Militar de São Raimundo, e de lá comandou a caçada final aos guerrilheiros entre dezembro de 1973 e abril de 1974. Seu posto