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A palavra “autonomia” está associada à ideia da capacidade de governar-se pelos próprios meios. Envolve o direito de um indivíduo de tomar decisões livremente, regendo-se por leis próprias262. Ou seja, traduz a ideia de uma faculdade ou direito de se governar por si mesmo; o direito de se administrar por leis ou princípios próprios; ter independência ou liberdade de pensamento ou ação. Por este prisma, o autônomo é dono de si, é livre e independente, logo, é aquele que possui administração particular e independente263.

O emprego da palavra “autonomia” adquiriu, ao longo dos anos, diversos sentidos, demonstrando possuir a característica de não ser unívoco, permitindo entendimentos diversos, conforme se aplicado aos indivíduos ou a entidades nas diversas teorias que buscaram o seu conceito.

falta de infraestrutura e de moradia, à baixa renda familiar e a altos índices de violência”. (UNICEF, op. cit., p.9).

262

HOUAISS; VILLAR, op. cit., p.225. 263

BORBA, Francisco S. (Org.) e colaboradores. Dicionário Unesp do Português Contemporâneo. São Paulo: UNESP, 2004, p.142.

Beuchamp e Childress264 esclarecem que, etimologicamente, a palavra “autonomia” possui origem no grego, derivando das palavras autos e nomos. A primeira significa “próprio”; a segunda, “regra”, “governo” ou “lei”. Acrescentam ainda estes autores que a palavra foi primeiramente empregada fazendo-se referência à autogestão ou ao autogoverno das cidades-Estados independentes gregas e que , só a partir de então, esse termo se estendeu aos indivíduos, adquirindo sentidos diversos, como os direitos de liberdade, de privacidade, de escolha individual, de liberdade da vontade, de autogoverno, de ser o motor do próprio comportamento e pertencer a si mesmo.

Ruth Faden e Beauchamp265 assinalam que a análise da autonomia em termos de autenticidade – ou seja, próprias ações, características, crenças e motivação – é desenvolvida, de diversas maneiras, por vários escritores, mas que, muitas vezes, traz a autonomia dependente de analogias com a autonomia política dos Estados, onde autonomia se refere à soberania popular, participação cidadã, noção de independência, de não controle por forças alienígenas.

A análise sobre a autonomia realizada por estes autores baseia-se na ideia de que uma ação é autônoma quando aquele que atua de forma autônoma age intencionalmente, com compreensão e sem influências controladoras. Ruth Faden e Beauchamp acreditam que essas três condições são básicas da ação autônoma266.

264

BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F.. Princípios de ética biomédica. Tradução Luciana Pudenzi. São Paulo: Loyola, 2002, p.137.

265

NOTA: Texto original: “The analysis of autonomy in terms of authenticity – "one's own" actions, character, beliefs, and motivation – is developed in no less diverse ways by such writers as Benn, Gerald Dworkin, and various writers in the existentialist tradition. In both models, theories are often dependent on analogies to the autonomy of political states, where "autonomy" has variously referred to popular sovereignty, citizen participation, independent nationhood, nongovernance by alien forces, control by citizens, and the like. However, other theories try to develop an account divorced from a background in political theory.” (FADEN Ruth R.; BEAUCHAMP, Tom L. A history and theory of informed consent. New York: Oxford, 1986, p. 238).

Tradução livre: “A análise da autonomia em termos de autenticidade - “das suas próprias” ações, características, crenças e motivação - é desenvolvida não menos diversa por escritores como Benn, Gerald Dworkin e diversos escritores da tradição existencialista. Em ambos os modelos, as teorias são muitas vezes dependentes das analogias com a autonomia política dos Estados, onde a "autonomia" tem vindo referir à soberania popular, participação do cidadão, nacionalidade independente, não governado por forças alienígenas, o controle pelos cidadãos, e assim por diante. No entanto, outras teorias tentam desenvolver uma explicação divorciada da formada na teoria política”.

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NOTA: Texto original: “We analyze autonomous action as follows: X acts autonomously only if X acts: 1. intentionally, 2. with understanding, and 3. without controlling influences.We believe, but do not here argue, that these three conditions are the basic conditions of autonomous action.” (FADEN

Marco Segre267 pontua que a ideia de autonomia é conquista recente e que o respeito à individualidade, o reconhecimento de o outro poder pensar e sentir à sua maneira, e de ser respeitado sob este aspecto, delinearam-se durante o iluminismo europeu, tomando corpo a partir de Descartes, Montesquieu, Rousseau, Kant e, posteriormente, Sigmund Freud, com contribuições eficazes para a sua compreensão, através da interiorização e do autoconhecimento que a psicanálise propicia, em que é possível buscar a autonomia.

Schneewind2 6 8 faz referência, em sua obra, que Kant objetava fortemente o pensamento da dependência de um ser racional às ordens e aos desejos de outro, pois considerava , de certa maneira, oposto à ação livre essencial.

Associada aos indivíduos, portanto, a autonomia, em essência, significaria “a capacidade de pensar, decidir e agir, com base em tal pensamento e decisão, de modo livre e independente269”. Nas palavras de Hubert Lepargneur270, a autonomia é ainda a expressão da dignidade da pessoa por franquear sua liberdade autocontrolada e responsável. Lepargneur271 também afirma que a autonomia individual do ser pensante é livre, e, portanto, responsável. Assim sendo, seria a raiz da dignidade pessoal.

Fernando Lolas Stepke272, por seu turno, aponta que uma pessoa atua com autonomia quando tem independência em relação a controles externos e possui a capacidade para atuar de acordo com a sua própria escolha. Para esse autor, o op.cit., p.238.)

Tradução livre: “Analisamos a ação autônoma da seguinte forma: X atua de forma autônoma apenas se age X: 1. intencionalmente; 2. com compreensão, e 3. sem influências controladoras.

“Nós acreditamos, mas não se argumenta aqui que estas três condições são as condições básicas da ação autônoma.”

267

SEGRE, Marco. Considerações críticas sobre princípios da bioética. In: SEGRE, Marco; COHEN, Cláudio (Orgs.). Bioética. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: EDUSP, 2002, p.37.

268

SCHNEEWIND, Jerome B. A invenção da autonomia: uma história da filosofia moral moderna. Tradução Magda França Lopes. São Leopoldo: Unisinos, 2005, p.556.

269

ALMEIDA, Marcos de. Comentários sobre os princípios fundamentais da bioética. In: PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul (Orgs.). Fundamentos da Bioética. São Paulo: Paulus, 1996. p. 57.

270

LEPARGNEUR, Hubert (a). Bioética, novo conceito: a caminho do consenso. São Paulo: Loyola, 1996, p.62.

271

LEPARGNEUR, Hubert (b). A dignidade humana, fundamentos da bioética e seu impacto para a eutanásia. In: PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul (Orgs.). Fundamentos da Bioética. São Paulo: Paulus, 1996, p.180.

272

que se julga ao considerar a autonomia é o grau de intencionalidade dos atos e a compreensão que o agente tem deles, somados à ausência de coerção ou mesmo limitações. Segundo esta visão, “a autonomia é provada nas opções escolhidas; por isso, a potencialidade de tê-la, embora importante, é limitada ou restrita em inúmeros casos”. De fato, se verá que “a autonomia não contradiz o respeito à autoridade nem mesmo a obediência à norma social”.

Outro conceito de autonomia é revelado por Nicola Abbagnano273, para quem se trata de “um termo introduzido por Kant para designar a vontade em relação a qualquer desejo ou objeto de desejo e a sua capacidade de determinar-se em conformidade com uma lei própria, que é a da razão”. Segue, dessa forma, a máxima de Kant: “A lei moral exprime tão somente a autonomia da razão pura prática, isto é, da liberdade274”.

O contraponto à autonomia seria a heteronomia275. Nesta, a vontade é determinada pelos objetos da faculdade de desejar. Assim, os ideais morais de felicidade ou perfeição supõem a heteronomia da vontade por supor que ela seja determinada por estes objetos da faculdade de desejar. “A independência da vontade em relação a qualquer objeto desejado é a liberdade no sentido negativo, ao passo que sua legislação própria (como 'razão prática') é a liberdade no sentido positivo” 276.

Schneewind2 7 7 acrescenta que Kant declarava que Deus e os seres humanos só podem compartilhar a condição de membros de uma única comunidade moral se todos igualmente legislarem a lei a que deverão obedecer. Aduz ainda que Kant acreditava que é a habilidade do ser humano de criar e viver segundo a lei moral que possibilita estar no mesmo plano que Deus na referida comunidade moral. Para Kant2 7 8, existe o imperativo moral que ordena que as pessoas sejam respeitosamente tratadas como fim, em vez de meramente como meios.

273

ABBAGNANO, op. cit., p.111. 274

KANT, Immanuel (b). Crítica da Razão Prática. 2. ed. Tradução Rodolfo Schaefer. São Paulo: Martin Claret, 2003, p.43.

275

KANT (a), op. cit., p.63. 276

ABBAGNANO, op. cit., p.111. 277

SCHNEEWIND, op. cit., p.557. 278

Para Schneewind , a autonomia kantiana pressupõe que o indivíduo é agente racional, cuja liberdade transcendental o tira do domínio da causação natural. Com isso, ela pertence a todo indivíduo, tanto no estado de natureza quanto na sociedade. “Por meio dela, cada pessoa tem uma bússola que permite ‘à razão humana comum’ dizer o que é consistente e o que é inconsistente com o dever2 7 9”.

Stepke e Drumond, ao abordarem a autonomia e suas limitações, afirmam que existem distintas formas de concebê -la. Uma delas é a versão norte-americana que faz alusão às ações livres e não -coercitiva s, e a versão kantiana, que vincula ao foro de cada indivíduo dar a sua própria norma. Para esses autores, é conveniente se distinguir ambas as versões, uma vez que a valoração dos atos individuais difere, dependendo de qual seja adotada2 8 0.

De outra forma, Segre esclarece que é possível verificar que a autonomia é uma abstração, pois se parte de um pressuposto de que ela exista, sendo esse pressuposto uma crença que transita pelo terreno da afetividade, e não apenas pelo pensamento racional, onde os autonomistas optam pela “aceitação de um livre-arbitrismo, de um exercício de vontade, de um self transcendente a todos os condicionamentos virtualmente recebidos” 281.

Assim, esse autor, procurando centrar o conceito de autonomia na subjetividade de cada pessoa – o que entende que , por si só, o levaria a dificuldades em estabelecer um conceito próprio e específico, pois sendo a autonomia uma percepção de liberdade e, portanto, subjetiva , o autônomo seria aquele que se sente livre – propõe não a busca de uma definição ou limite da ideia de autonomia, mas sim a busca dessa autonomia, que tão somente resultaria de uma percepção, pela pessoa, de mais de um caminho a seguir, pois sem esta percepção não existirá busca282.

Convém observar que a ideia de autonomia conduz a um ato de liberdade no agir e no pensar, ao mesmo tempo em que remete à ideia de capacidade para a sua prática. A autonomia não prescinde de opções e

279

SCHNEEWIND, op.cit., p.560. 280

STEPKE; DRUMOND (b). op. cit., p.77. 281

SEGRE, op. cit., p.37. 282

normalmente é associada a ações racionais motivadas por uma consciência própria, que permeie a observação de normas sociais. Entretanto, tem contra si limites sociais, e aí a autonomia se rende a eles.