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2 A NOÇÃO DE CAMPO SUAS IMPLICAÇÕES PARA PENSAR UMA HISTÓRIA

2.1 O conceito bourdieusiano de campo

Na teoria bourdieusiana o campo é definido como:

[...] uma rede de relações objetivas (de dominação ou de subordinação, de complementaridade ou de antagonismo etc.) entre posições [...]. Cada posição é objetivamente definida por sua relação objetiva com outras posições ou, em outros termos, pelo sistema das propriedades pertinentes, isto é, eficientes, que permitem situá-la com relação a todas as outras na estrutura da distribuição global das propriedades (BOURDIEU, 1996, p. 261, grifo nosso).

A partir disso, compreende-se que o campo se configura enquanto um espaço de relações entre os que dele participam (agentes ou instituições), são, inclusive, essas relações que desencadeiam as tomadas de posições dos diferentes agentes, seja pela

concorrência que os opõe, seja pelas alianças que estabelecem, o que, por sua vez, acaba demarcando a própria existência do campo.

Os diferentes espaços (científico, religioso, artístico, etc.) de que trata Bourdieu, são entendidos enquanto um mundo físico que comporta tanto as relações de força, quanto relações de dominação. Para o autor “é a estrutura das relações objetivas entre os agentes que determina o que eles podem e não podem fazer” (BOURDIEU, 2004a, p. 23, grifo do autor).

O campo é também apresentado por Bourdieu (2003) como um espaço estruturado que possui suas próprias leis, conforme ressalta ao mencionar o campo enquanto um:

[...] espaços estruturados de posições (ou de postos) cujas propriedades dependem da sua posição nesses espaços e que podem ser analisadas independentemente das características dos seus ocupantes (em partes determinadas por elas). Há leis gerais

dos campos: campos tão diferentes como o campo da política, o campo da filosofia,

o campo da religião têm leis de funcionamento invariantes [...] (BOURDIEU, 2003, p. 119, grifo do autor).

Outra característica desse microcosmo dotado de suas leis próprias é sua autonomia em relação ao macrocosmo. Para Bourdieu (2004a, p. 21) o campo dispõe com relação ao mundo social, “de uma autonomia parcial mais ou menos acentuada”. Ainda de acordo com o autor, são as resistências às pressões externas ao campo que caracterizam a sua autonomia: “uma das manifestações mais visíveis da autonomia do campo é sua capacidade de refratar, retraduzindo sob uma forma específica as pressões ou demandas externas” (BOURDIEU, 2004a, p. 22, grifo do autor).

Segundo Bourdieu (2004b, p. 70) a maioria dos analistas ignora a autonomia relativa do campo, por considerarem predominantes as pressões externas e as regras impostas pela força. Contudo, para o autor, dizer que o campo é relativamente autônomo implica aceitar que “o campo está sujeito a pressões (exteriores) e é habitado por tensões”. Com isso entende que “o sistema de forças constitutivas da estrutura do campo (tensão) é relativamente independente das forças que se exercem sobre o campo (pressão)”.

Além de leis próprias e relativa autonomia, o campo também se caracteriza como um espaço de lutas entre os recém-chegados, isto é, os novatos, e os que já se encontram nele. Em qualquer campo encontra-se uma luta “[...] entre o novo que entra e tenta arrombar os ferrolhos do direito de entrada e o dominante que tenta defender o monopólio e excluir a concorrência” (BOURDIEU, 2003, p. 120).

Dizer que o campo é um lugar de lutas não é simplesmente romper com a imagem irenista da ‘comunidade científica’ tal como a hagiografia científica descreve – e, muitas vezes, depois dela, a própria sociologia da ciência. [...]. É também recordar que o próprio funcionamento do campo científico produz e supõe uma forma

específica de interesse (as práticas científicas não aparecendo como

‘desinteressadas’ senão quando referidas a interesses diferentes, produzidos e exigidos por outros campos) (BOURDIEU, 1983, p. 123, grifo do autor).

Assim, o campo se organiza definindo aquilo que estará em jogo e os interesses específicos que lhes são próprios, por isso para que um campo funcione é necessário que algo esteja em jogo e gente disposta a jogar. Disso depreende-se que todos aqueles comprometidos com um campo possuem interesses comuns que fazem esquecer todos os antagonismos. Mas para que um campo funcione é preciso que se destinem investimentos:

Os campos sociais mais diferentes – a sociedade cortesã, o campo dos partidos

políticos, o campo das empresas ou o campo universitário – só podem funcionar na medida em que haja agentes que invistam neles, no mais diferentes sentidos do termo investimento, e que lhes destinem seus recursos e persigam seus objetivos, contribuindo, assim, por seu próprio antagonismo, para conservar-lhes as estruturas, ou, sob certas condições, para transformá-los (BOURDIEU, 2001a, p. 51).

Com isso o autor que dizer que um campo só pode funcionar se encontra indivíduos socialmente predispostos a participarem do jogo, arriscando “seu dinheiro, seu tempo, às vezes sua honra ou sua vida, para perseguir os objetivos e obter os proveitos decorrentes [...]” (BOURDIEU, 2001a, p. 52). “A crença coletiva no jogo (illusio) e no valor sagrado de suas apostas é a um só tempo a condição e o produto do funcionamento mesmo do jogo” (BOURDIEU, 1996, p. 260).

O campo se configura, então, como um espaço social dotado de leis próprias e de autonomia relativa, cujo interior é marcado por lutas entre os dominantes e os que chegaram mais recentemente.

Na luta em que cada um dos agentes deve engajar-se para impor o valor de seus produtos e de sua própria autoridade de produtor legitimo, está sempre em jogo o poder de impor uma definição da ciência (isto é, a de limitação do campo dos problemas, dos métodos e das teorias que podem ser considerados científicos) que mais esteja de acordo com seus interesses específicos (BOURDIEU, 1983, p. 127- 128).

Nesta luta concorrencial o que se encontra em jogo é o monopólio pela autoridade científica ou legitimidade científica, assim todas as práticas se dirigem à aquisição desta autoridade. A autoridade científica se caracteriza como “uma espécie particular de capital que pode ser acumulado, transmitido e até mesmo, em certas condições, reconvertido em outras espécies” (BOURDIEU, 1983, p. 130). Disso resulta o que o autor denomina como

capital científico, entendido, assim, como “uma espécie particular de capital simbólico, capital fundado no conhecimento e no reconhecimento [...]” (BOURDIEU, 2004b, p. 53).

O capital específico é o fundamento de poder e de autoridade específica dentro de um campo, e aqueles que o monopolizam utilizam-se de estratégias para a sua conservação. Os que dispõem de menos capital, por sua vez, tendem a utilizar estratégias de subversão. O autor registra que um capital específico só é valido para um campo determinado, ou seja, dentro dos limites deste campo (BOURDIEU, 2003).

Bourdieu (2004b) salienta ainda que é preciso considerar nesta análise as relações de forças que permeiam o funcionamento de um campo, nisso se destaca o campo do poder, entendido como:

[...] o espaço das relações de força entre agentes ou instituições que têm em comum possuir o capital necessário para ocupar posições dominantes nos diferentes campos [...]. Ele é o lugar de lutas entre detentores de poderes (ou de espécies de capital) diferentes que, [...] têm por aposta a transformação ou conservação do valor relativo das diferentes espécies de capital que determina, ele próprio, a cada momento, as forcas suscetíveis de ser lançadas nessas lutas (BOURDIEU, 1996, p. 244).

Nessa relação de poder, os que monopolizam o capital específico – os dominantes – se utilizam de estratégias de “conservação”, que buscam assegurar a perpetuação da ordem científica com a qual compactuam. Do outro lado, os novatos só poderão vencer os dominantes em seu próprio jogo, quer seja pela utilização das “estratégias de sucessão”, ou pela utilização de “estratégias de subversão” (BOURDIEU, 1983). Isso leva ao entendimento de que:

Em todo campo se põem, com forças mais ou menos desiguais segundo a estrutura da distribuição do capital no campo (grau de homogeneidade), os dominantes, ocupando as posições mais altas na estrutura de distribuição de capital científico, e os dominados, isto é, os novatos, que possuem um capital científico tanto mais importante quanto maior a importância dos recursos científicos acumulados no campo (BOURDIEU, 1983, p. 136-137, grifo do autor).

No campo científico há, portanto, uma hierarquia, marcada pela posse de poder (autoridade científica) dentro do campo. De um lado os dominantes, que impõem uma definição de ciência e procuram mantê-la, e de outro os dominados (que são os recém- chegados, em geral os mais jovens), que, ou se ajustam a estrutura criada ou se recusam as carreiras já traçadas, irrompendo-as. Segundo Bourdieu (1996, p. 255) “definir as fronteiras, defendê-las, controlar as entradas, é defender a ordem estabelecida no campo”. Neste cenário, os grupos dominantes e dominados são assim caracterizados:

A classe dominante é o lugar de uma luta pela hierarquia dos princípios de hierarquização: as fracções dominantes, cujo poder assenta no capital económico, têm em vista impor a legitimidade da sua dominação que por meio da própria produção simbólica, quer por intermédio dos ideólogos conservadores os quais só verdadeiramente servem os interesses dos dominantes por acréscimo, ameaçando sempre desviar em seu proveito o poder de definição do mundo social que detêm por delegação; a fracção dominada [...] tende sempre a colocar o capital específico a que ela deve a sua posição, no topo da hierarquia dos princípios de hierarquização (BOURDIEU, 1989, p. 12).

Essa relação de forças simbólicas, entre dominantes e dominados, no domínio da pesquisa científica, chega “a produzir o efeito de halo quase carismático”. Isso porque os pesquisadores mais jovens são “frequentemente levados [...] a emprestar as qualidades científicas daqueles dos quais dependem para sua carreira [...]” (BOURDIEU, 2004a, p. 39), para assim conquistarem o seu espaço dentro do campo.

Garcia (1996) observa que Bourdieu ao tratar da questão da autoridade científica não a reduz a um conjunto de capacidade técnicas ou teóricas determinadas, pois para Bourdieu, as práticas no campo científico, que estão por sua vez orientadas para a aquisição de autoridade científica, possuem duas funções no campo: uma função puramente científica e uma função social. E tentar dissociar a representação social da capacidade técnica “é cair na armadilha constitutiva de toda competência, razão social que se legitima apresentando-se como razão puramente técnica [...]” (BOURDIEU, 1983, p. 123).

Para Bourdieu (1983) o funcionamento do campo científico produz e supõe uma forma específica de interesse. Com isso o autor quer dizer que “não há escolha científica – [...] – que não seja também uma estratégia social de posicionamento orientada para a maximização do lucro específico, indissociavelmente social e científico [...]” (BOURDIEU, 2004b, p. 85). Por isso, segundo o autor, “não há ‘escolha’ científica [...] que não seja uma estratégia política de investimento objetivamente orientada para a maximização do lucro propriamente científico [...]” (BOURDIEU, 1983, p. 127).

A “escolha” científica visa também à obtenção do chamado reconhecimento dos pares-concorrentes:

O reconhecimento, marcado e garantido socialmente por todo um conjunto de sinais específicos de consagração que os pares-concorrentes concedem a cada um de seus membros, é função do valor distintivo de seus produtos e da originalidade (no sentido da teoria da informação) que se reconhece coletivamente à contribuição que ele traz aos recursos científicos já acumulados (BOURDIEU, 1983, p. 131, grifo do autor).

As descobertas ou contribuições atreladas àquelas escolhas consideradas mais importantes trazem um lucro simbólico igualmente importante para os pesquisadores que se

concentram sobre determinados problemas. E isso, “percebido como importante e interessante”, tende a ser “conhecido como importante e interessante pelos outros” (BOURDIEU, 1983, p. 125).

O fazer um “nome”, um nome conhecido e reconhecido, isto é, a reputação do pesquisador junto aos colegas, é também importante para a obtenção de fundos para sua pesquisa, “para atrair estudantes de qualidade, para conseguir subvenções e bolsas, convites, consultas, distinções [...]” (BOURDIEU, 1983, p. 131). O peso simbólico atribuído a um cientista “tende a variar segundo o valor distintivo dos seus contributos e a originalidade que os pares concorrentes reconhecem ao seu contributo distintivo” (BOURDIEU, 200b, p. 80, grifo do autor).

Esse peso vai também demarcar a posição ocupada pelo intelectual dentro do campo científico, posição dominante no campo do poder, revelada nas suas “tomadas de posição epistemológicas”, nas quais busca “justificar sua própria posição e as estratégias que eles colocam em ação para mantê-la ou melhorá-la e para desacreditar, [...], os detentores da posição oposta a suas estratégias” (BOURDIEU, 1983, p. 154). Mas para chegar a esse entendimento e avançar em sua análise, é preciso tomar o campo intelectual “[...] como sistema de posições predeterminadas abrangendo, assim com os postos de um mercado de trabalho, classes de agentes providos de propriedades (socialmente constituídas) de um tipo determinado” (BOURDIEU, 2007, p. 190).

2.2. A noção de campo e sua relação com a construção do campo científico da avaliação