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4 ASPECTOS POLÍTICOS, ECONÔMICOS, SOCIAIS E EDUCACIONAIS DO

4.3 A mobilização e a organização social

A situação social do Brasil nos anos 1980 foi marcada diretamente pelos reflexos da crise econômica pela qual passava o país naquele momento, mas por outro lado foi também um período de intensa mobilização política e organização social.

Os efeitos da crise econômica se estenderam ao longo de toda a década, e atingiram diversos setores da sociedade, que sofriam com o declínio dos investimentos públicos e com o agravamento das disparidades sociais refletidas no aumento da desigualdade de renda, na segregação quanto à moradia e na deterioração de serviços públicos essenciais como a educação e a saúde.

A recessão do início da década de 1980 levou a um agravamento da desigualdade de renda entre os brasileiros, assinalada pela elevada concentração de renda pessoal, tal como destaca o estudo de Antônio Corrêa de Lacerda (1994). Utilizando-se dos dados da Pesquisa Nacional de Amostras de Domicílios (PNAD), o autor demonstra que entre 1981 a 1989, a renda dos 10% mais ricos da população brasileira, que representava 46,6% da renda total em 1981, elevou-se para 53,2% em 1989, um aumento de 14,2%. Um maior incremento teve o 1% dos mais ricos, que em 1981 detinham 13% da renda total aumentaram sua participação em 1989 para 17,3%, representando um aumento de 33,1%. Enquanto isso diminuiu a renda dos mais pobres, onde 20% detinham 2,7% da renda total em 1981 e passaram a deter 2% em 1989, representando uma queda de 25,9%. Igual queda ocorre com os 50% mais pobres que teve reduzida a sua participação de 13,4% da renda em 1981 para 10,4% em 1989.

Lacerda (1994) aponta três fatores que considera fundamentais nesse processo de agravamento da concentração de renda no país e consequente aumento da desigualdade, trata-se do aumento da inflação no período, dos sucessivos planos de ajuste na economia e as políticas salariais. Isso tudo contribuiu, segundo o autor, para um processo de transferência de renda que acabou privilegiando os mais ricos em detrimento dos mais pobres.

A fim de exemplificar essa grande concentração de renda, Rodrigues (2010, p. 45) menciona pesquisa realizada em 1980 que focalizou o consumo nas áreas urbanas de diversos estados brasileiros e apontou que somente 8% da população consumiam 62% dos bens disponíveis no mercado, isso indica, segundo a autora, que “[...] a maioria dos brasileiros não ganhava o necessário para a manutenção de um padrão mínimo de vida”. Sua afirmação se viu ratificada com a PNAD de 1981 que demonstrou que “um terço de toda a renda nacional concentrava-se em apenas 5% da população”.

Os dados deste período indicam que houve um aumento na desigualdade e perdas de renda para as pessoas mais pobres, o que, por sua vez, veio a ocasionar um aumento da pobreza. Francisco H. G. Ferreira e Julie A. Litchfield (2000), em estudo sobre a linha de pobreza durante os anos 1980 e começo dos anos 1990, tomando como base um conjunto de dados da PNAD, observam o aumento da proporção de pobres no período de 1981 a 1983, resultado da recessão econômica pela qual passava o país, demonstrando forte aumento da proporção de pobres no ano de 1983 e reduzido número no ano de 1986.

Um dos mais importantes sintomas dessa desigualdade social apontados por Skidmore (1998) foi a criminalidade, que viu suas taxas se elevarem durante toda a década de 1980. O autor menciona como exemplos do aumento da criminalidade no período: a onda de sequestros realizados por quadrilhas que atingiam tanto milionários quanto pequenos negociantes, os pequenos furtos cometidos por crianças de rua, o narcotráfico, entre outros. O resultado disso foi o alargamento do abismo entre ricos e pobres, e o crime, neste cenário, reforçava a imagem que os ricos tinham das classes populares como ameaçadoras e perigosas, quando na verdade quem mais sofria com o crime eram os pobres. E para se protegerem, os mais ricos acabaram criando seus espaços particulares, caso dos condomínios habitacionais, com grandes muros e grades de segurança.

Aliás, o problema da moradia na década de 1980, para além dessa segregação que colocava de um lado os grandes condomínios e prédios, e do outro as favelas e morros, enfrentava ainda os problemas oriundos da demanda por moradias para as classes de menor renda por meio do Banco Nacional de Habitação (BNH), acabava-se, por pressões políticas, privilegiando grandes construções de luxo; enquanto isso aqueles que seriam os seus reais beneficiados ficavam a mercê dos investimentos do banco (RODRIGUES, 2010). A partir de 1983 o volume de financiamentos habitacionais foi reduzido, demonstrando o esgotamento de recursos para o setor, que já vinha sofrendo de desinteresse e rejeição (VASCONCELOS; CÂNDIDO JÚNIOR, 1996). Em 1986 o BNH é extinto por se desvirtuar de seu objetivo e não resistir à crise inflacionária pela qual passava o Brasil.

A educação dos anos 1980 se apresenta numa dupla realidade, que considera seus pontos positivos e negativos. A respeito de suas melhoras, Fausto (1995), utilizando-se dos dados da PNAD de 1987, menciona a queda nas taxas de analfabetismo entre homens e mulheres, o aumento na escolarização e o ritmo de crescimento da educação brasileira. Seus pontos negativos incidem sobre as elevadas taxas de repetência e abandono, e a baixa qualidade do ensino público. Além desses, Skidmore (1998) inclui o abandono físico e a

decadência educacional dos sistemas escolares, assim como a ausência de condições dignas de trabalho para os professores, traduzida na sua baixa remuneração salarial.

No texto constitucional de 1988 a educação aparece com primazia diante dos demais direitos sociais, conforme menciona seu artigo 6º “São direitos sociais a educação, [...] na forma desta Constituição” (BRASIL, 1988). Nesse mesmo trecho é também declarado o direito à educação que se vê reafirmado no artigo 205 onde consta “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família”. Romualdo Portela de Oliveira (2007) ressalta que a questão do direito à educação abrange não só a garantia do acesso e da permanência, mas também a garantia da qualidade do ensino enquanto um de seus princípios, conforme prevê o inciso VII do artigo 206. Caberia, segundo os autores, a criação de condições de efetivação da qualidade do ensino como nova dimensão do direito à educação, utilizando-se para isso de mecanismos legais como o mandado de segurança, o mandado de injunção e a ação civil pública.

A Constituição Federal de 1988, entre outros pontos, não só declarou a educação como direito de todos os cidadãos, como também procurou reformar o sistema fiscal e passou a exigir que 25% de toda a receita fiscal de estados e municípios fossem destinados à educação, ficando o governo federal responsável pela alocação de 18% da receita no setor (LUNA; KLEIN, 2007). À União cabe ainda a organização do sistema federal do ensino e dos estados, conforme indica o artigo 211 do texto constitucional, exercendo, deste modo, sua função redistributiva (destinação de volume maior de recursos para escolas e redes em situação relativamente desfavorável) e supletiva (Estado deve auxiliar, subsidiar os outros sujeitos, supri-los e estimulá-los). O artigo 211 também menciona o regime de colaboração entre os entes federados (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), mas não esclarece o seu significado (MINTO 2007).

A crise econômica dos anos 1980 acabou provocando um duplo efeito para a área da saúde, segundo Otávio Azevedo Mercadante et al. (2002), isso porque, ao agravar a distribuição de renda e a qualidade de vida da população, aumentou as necessidades de atenção à saúde, e ao diminuir as receitas fiscais e as contribuições sociais, afetou-se diretamente o volume de recursos destinados a saúde. Ainda assim, os autores ressaltam que a década foi bastante promissora no que se refere à organização de iniciativas dentro do setor, entre as quais destacam a criação da Comissão Interinstitucional de Planejamento (CIPLAN), em 1980, a instituição do Plano de Reorientação da Assistência à Saúde, em 1982, implantação das Ações Integradas de Saúde (AIS), em 1984, início do Programa de

Desenvolvimento de Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde nos Estados (SUDS), em 1987, e a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1988.

Skidmore (1998) aponta como dois os principais problemas que tornavam a situação da saúde ainda pior nos anos 1980 no Brasil: o seu financiamento inadequado e a desorganização estrutural para produção de assistência à saúde pública. Essa situação demonstra a deterioração dos serviços públicos no período, causada em grande parte pelas constantes fraudes e incompetência burocrática com o dinheiro público investido na área. Para se ter uma ideia das irregularidades do período, Rodrigues (2010) menciona que em 1981 90% das contas hospitalares apresentadas ao Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), órgão que tinha a finalidade de prestar atendimento médico aos contribuintes da previdência social, continham irregularidades.

Apesar de o momento ser desastroso sob muitos aspectos e parecer não contribuir para a qualidade de vida do povo, os autores salientam que contrariamente a isso houve substancial melhoria nos indicadores de desenvolvimento humano ao longo de toda década de 1980, se comparado com as décadas anteriores. A média de vida chegou aos 60 anos, quando em 1950 esta era de 45 anos; também caiu a taxa de mortalidade infantil, que declinou de 130 em 1950 para 86 em 1980; a alfabetização dos adultos cresceu de 66% em 1970 para 81% em 1990; houve ainda aumento no acesso a água, que subiu de 21,08% em 1960 para 70,00% em 1987; e no fornecimento de energia elétrica, que passou de 40,15% em 1960 para 84, 41% em 1987 (FAUSTO, 1995; SKIDMORE, 1998).

A participação social foi outro ponto marcante do cenário social dos anos 1980, que se viu marcado pela intensa movimentação e organização da sociedade, traduzido nas lutas pelas eleições diretas em 1984, na retomada das eleições para a Presidência do país em 1985, na luta pela redução do mandato para presidente, no processo constituinte em 1987, na criação de entidades do movimento popular (ANAMPOS53, CONAM54), no surgimento das Centrais Sindicais (CONCLAT55, CGT56, CGTB57, USI58, CUT) e de outros tantos movimentos sociais que tiveram suas vozes sufocadas pela repressão nos anos anteriores (GOHN, 1995). De acordo com Gohn (1995), os anos 1980 são fundamentais para a compreensão da construção da cidadania no Brasil.

53 Associação Nacional de Movimentos Populares e Sindicais

54 Confederação Nacional das Associações de Moradores

55 Conferência da Classe Trabalhadora

56 Central Geral dos Trabalhadores

57 Central Geral dos Trabalhadores do Brasil

A respeito do movimento sindical surgido nos anos 1980, Mendonça e Fontes (1996) destacam que sua consolidação se deu em meio a uma dupla dinâmica: por um lado, preservar os ganhos salariais de seus filiados e, por outro, incorporar a diferenciação interna dos trabalhadores. Um dos traços marcantes desse novo sindicalismo era a entrada na luta trabalhista de categorias tradicionalmente consideradas de classe média, como médicos, engenheiros, bancários, entre outros. Na primeira metade da década os trabalhadores ainda estavam diante de um governo repressivo, e por isso procuravam fortalecer suas organizações nos locais de trabalho, que eram fundamentais para a manutenção das greves (RODRIGUES, 2010). Já na segunda metade da década é expressiva a participação dos movimentos sindicais nos grandes debates políticos, como se observa no processo de elaboração da nova Constituição, em que se busca garantir os direitos dos trabalhadores (MENDONÇA; FONTES, 1996).

Paralelamente ao movimento sindical cresciam os movimentos sociais que, segundo Maria da Glória Gohn (1991), saiam de reivindicações isoladas para a unificação de demandas sociais mais amplas, caso da luta por creches, moradia, transportes, entre outras. Havia, segundo a autora, denominadores comuns que os uniam, como “[...] a construção das identidades através das semelhanças pelas carências; o desejo de se ter acesso aos direitos mínimos e básicos dos indivíduos e grupos enquanto cidadãos; e fundamentalmente, a luta contra o status quo predominante: o regime militar” (GOHN, 1991, p. 13, grifo da autora). Mas logo essa unificação se desfaz com a nova conjuntura política que se apresenta nos anos 1980, e os movimentos populares se subdividem em duas categorias de movimentos sociais: a) os movimentos populares criados a partir das ações da sociedade civil e b) os movimentos sociais criados por estímulo da sociedade política (GOHN, 1991).

De qualquer maneira as lutas por melhores condições de vida continuaram durante toda a década de 1980, os movimentos de bairro, por exemplo, reivindicavam melhores condições de urbanização – calçamento, iluminação, transporte, saneamento básico – legalização de loteamentos (RODRIGUES, 2010); nas favelas a reivindicação é também pela urbanização e legalização na defesa pela construção de casas e conjuntos populares com o serviço de mutirão e financiamento do governo (GOHN, 1991; RODRIGUES, 2010); os trabalhadores do campo lutam pelo acesso e posse da terra; a tudo isso se somava as lutas das mulheres, dos estudantes, dos ecologistas, dos negros, e outros (GOHN, 1991).

O ideal de participação estava plantado e se viu reafirmado inclusive na Constituição Federal de 1988, que criou mecanismos de participação da sociedade civil na gestão da administração pública (GOHN, 1991), tornando como locais privilegiados para o

exercício do controle das atividades públicas os conselhos, as conferências, os fóruns, as ouvidorias e as audiências públicas, entre outros meios de participação político-social que constituem a representação do cidadão. Assim sendo, por mais que os efeitos da crise econômica tenham atingido negativamente as condições de vida da população brasileira, essa mesma população foi capaz de se organizar em movimentos sociais que exprimiam seus anseios por uma maior participação no processo de redemocratização, expressos, por exemplo, na escolha direta de seus representantes políticos por meio do voto.

Desse modo, se a década de 1980 foi praticamente perdida do ponto de vista econômico, a mesma não foi do ponto de vista político e social, uma vez que o que encontramos nesse período é um enfrentamento político frente a um regime ditatorial e o ressurgimento de movimentos sociais empenhados com suas lutas sociais, tendo seus direitos assegurado com a aprovação da primeira constituição social e participativa do Brasil, a Constituição Federal de 1988, na qual a educação aparece, no artigo 6, com primazia em relação aos demais direitos sociais.

O tema da educação, particularmente seu desenvolvimento em nosso cenário nacional, é assunto da próxima subseção, que analisa sua organização enquanto campo educacional na década de 1980 no Brasil.