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Parte III A Herança Digital e a Transmissão de Conteúdos Digitais em Vida

6. A Herança Digital

6.2 Conceito de Herança Digital

Já tendo sido analisado o conceito de herança no Direito Sucessório Português, importa então conceptualizar o instituto da herança digital, como parte integrante da herança de uma pessoa falecida.

Deste modo, essa necessidade de conceptualização desta problemática tem crescido gradualmente. Afinal, como já aqui referido, os bens digitais são individualizáveis do hardware, e até mesmo do software onde se encontram contidos. De modo que, torna-se necessário individualizá-los também para efeitos legais, como verdadeiros bens que integram o património (em sentido lato) da pessoa.

De facto, é cada vez mais comum o surgimento de notícias, por exemplo, sobre redes sociais cujo perfil de alguém se mantém ativo após a sua morte, e que, por vezes, inquietam as famílias, e afetam o seu luto. Uma situação deste género sucedeu nos Estados Unidos da América, em 2011, quando Eric Rash um adolescente de quinze anos cometeu suicídio, e os seus pais, incapazes de aceder à sua página de Facebook, pediram à empresa em apreço para lhe garantir esse acesso, de modo a conseguirem apagar a conta do seu filho. Algo que a empresa recusou por violar a sua política de privacidade, iniciando uma disputa legal, em que foi evidente a necessidade premente de legislação no âmbito da Herança Digital172. Porém, esta problemática

ultrapassa largamente as redes sociais, visto que o objeto da herança digital pode abarcar vários conteúdos, incluindo contas de email, e-books, músicas, fotografias, vídeos, etc… Logo, torna-se essencial determinar um conceito de herança digital que sirva de base para a análise desta questão.

Com efeito, será necessário assentar esse conceito nas premissas expostas na primeira parte desta dissertação, estipulando esta análise nos termos dos conceitos ai explanados173. Sendo

que será essencial o recurso a uma interpretação extensiva dos mesmos para permitir que estes abarquem o conceito de herança digital. Ora, como anteriormente referido, a herança pode ser entendida, em termos latos, como o património deixado pelo de cujus aos seus herdeiros. Por

172 Informação obtida na página oficial da BBC : http://www.bbc.com/news/technology-24380211 [28-04-2016] 173 V. p. 24 e seguintes

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outras palavras, a universalidade de bens de que o autor é titular tem de ser transmitida aos seus herdeiros, dando origem ao fenómeno sucessório per si. Ora, neste património inclui-se o património ativo, bem como o património passivo do autor da sucessão. Logo, podemos enquadrar a noção de património considerando o património global, isto é, o conjunto de relações jurídicas ativas e passivas avaliáveis em dinheiro de que uma pessoa é titular174. Sendo esse

património pode incluir diversos direitos, tais como direito de propriedade, direito de usufruto, etc…

Portanto, é logo possível entender que nada obsta ao enquadramento de alguns tipos de objetos digitais como património. Assim, filmes, blogs, páginas web, e-books, músicas, bem como objetos similares, serão sempre considerados como parte do património de uma pessoa. Pois, não obstante se encontrarem armazenados em formato digital, é possível valorá-los economicamente, ou seja, pode ser-lhes atribuídos um valor económico visto que advêm de relações avaliáveis em dinheiro. De modo que, o conceito de herança digital pode, à partida, ser estatuído com base nestes objetos digitais. Sendo que, estes objetos podem ser guardados tanto no próprio computador do seu titular, como podem ser armazenados na cloud.

Em oposição, surge esta questão relativamente aos conteúdos que não podem ser avaliáveis pecuniariamente, mas que podem conter informações valiosas de várias áreas de conhecimento podendo ser significativas para a sociedade, ou então que possuem valor afetivo, por serem indissociáveis da identidade do seu titular, funcionando como recordações. Sendo portanto enquadráveis nos direitos pessoais. Obviamente, este tipo de conteúdos não gera, prima facie, direito sucessório fruto da impossibilidade de valorização económica. Não obstante, nada impede que os sucessores se apropriem de fotos pessoais, documentos de texto com carácter pessoal, e objetos digitais similares. Principalmente, caso tenha sido essa a vontade do de cujus. Do mesmo modo, à semelhança do que sucedeu no caso de Eric Rash, na legislação portuguesa nada impede que algum sucessor pleiteie judicialmente pelo cancelamento das contas do de cujus nas redes sociais.

Portanto, o conceito de Herança Digital pode englobar duas modalidades, em face da intervenção que os sucessores possam ter no acervo digital do falecido175. A primeira relativas aos

conteúdos digitais suscetíveis de avaliação económica, que integrarão naturalmente a herança como relações jurídicas avaliáveis pecuniariamente, e portanto, integrando o património do de cujus. Por outro lado, quanto aos conteúdos que não podem ser objeto de transmissão, face à

174 Cf. Carlos Alberto da Mota PINTO, ob. cit., p. 344

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lacuna legal existente, não podem ser considerados como património. Pelo que, parece que a sua transmissão dependerá da vontade do de cujus, que terá que ser prevalente. De modo que, não havendo disposição de vontade os sucessores apenas poderão apropriar-se dos bens digitais que se encontrem acessíveis, à semelhança, por exemplo, dos álbuns de fotografias nos bens físicos. Podendo, ainda, agir judicialmente para a retirada de objetos publicados online e acessíveis publicamente. Mormente, contas contas online. Por outro lado, havendo disposições de vontade, efetuadas através de testamento, ou em casos esporádicos no âmbito da sucessão contratual, será necessário respeitar a vontade do de cujus.

Em suma, a Herança Digital pode ser entendida como o conjunto de bens digitais que se encontravam na titularidade do de cujus, sendo que apenas os bens capazes de serem avaliáveis economicamente podem, prima facie, ser alvo se sucessão. E, por forma, apenas estes podem aos olhos da lei constituir uma efetiva herança digital, como objeto de direitos que podem ser indubitavelmente transmitidos, conforme o já explanado na primeira parte desta dissertação. Sendo que todos os bens que não possam, pela sua natureza, ser transmitidos por via do direito sucessório, apenas poderão ser considerados neste conceito num sentido mais lato, como objeto de outros direitos que merecem igualmente tutela jurídica por morte do seu titular, como por exemplo os direitos de personalidade.