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Conteúdos Digitais não suscetíveis de avaliação económica

Parte III A Herança Digital e a Transmissão de Conteúdos Digitais em Vida

6. A Herança Digital

6.3 Admissibilidade Legal

6.3.2 Conteúdos Digitais não suscetíveis de avaliação económica

Na análise da admissibilidade de transmissão por sucessão dos conteúdos digitais aos quais não é possível atribuir valor monetário é necessário tomar em consideração que a sua admissibilidade será sempre muito restrita em face das disposições legais, particularmente face ao artigo 2025º do Código Civil.

De facto, muitos destes conteúdos podem contender com direitos de carácter iminentemente pessoal, isto é, direitos que são indissociáveis da pessoa do seu titular e que são, como já foi visto, direitos intransmissíveis. Todavia, o artigo 2032º do Código Civil estipula que “aberta a sucessão, serão os sucessores chamados à titularidade das relações jurídicas do falecido”178 . De modo que, interpretando extensivamente esta norma é possível presumir-se que

a sucessão abrange mais que apenas as relações patrimoniais, ou seja, abrange todas as

177 Informação obtida na página oficial da Superinteressante :

http://www.superinteressante.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=2712:a-heranca-digital&catid=18:artigos&Itemid=98 [02-05- 2016].

178 Cf. Artigo 2032º, número 1, do Código Civil - Aberta a sucessão, serão chamados à titularidade das relações jurídicas do falecido aqueles que

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relações jurídicas das quais o falecido fosse titular. Assim, é igualmente necessário atender à posição de Capelo de Sousa179, que defende que a vocação sucessória consiste em os

sucessores assumirem as posições ativas ou passivas nas relações jurídicas do de cujus, e que, por sua vez, a devolução dos bens (consignada no artigo 2024º do Código Civil), opera-se através da transferência da titularidade de coisas jurídicas180. Portanto, é plausível assumir que

no âmbito da sucessão não se incluem somente os bens patrimoniais, mas também todos os outros bens que não sejam prima facie intransmissíveis à luz do artigo 2025º do Código Civil. De modo que, importa recordar a análise aqui já realizada sobre os direitos transmissíveis por sucessão181, em que foi concluído que existe um restrito grupo de direitos pessoais que podem

ser transmissíveis por morte do de cujus, no lado ativo das relações jurídicas. Isto é, podem ser transmitidos direitos em que, não obstante o seu carácter pessoal, é viável o seu exercício por terceiros nos termos definidos por lei. O que respeita a limitação imposta no normativo do mencionado artigo 2025º, uma vez que este impõe que não sejam objeto de sucessão os direitos que se devam extinguir-se por morte do seu titular, ou seja, os que não possam produzir efeitos sem serem exercidos pelo seu titular. Ora, sendo plausível o exercício desses direitos por terceiros, não existe razão justificativa para que estes se extingam com a morte deste. Pois, não é estritamente necessário que seja este a exercê-los para que os seus efeitos se produzam. Logo, podem existir direitos que apesar de o seu valor económico ser irrelevante não deixam de integrar o leque de coisas jurídicas transmissíveis por sucessão. Não obstante, existem outros direitos que embora não concernindo com a sucessão de uma pessoa falecida, só podem ser exercidos após a sua morte.

Neste sentido, cumpre entender que o direito português protege individualmente as pessoas falecidas contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à respetiva personalidade física ou moral que existia em vida e que permaneça em morte, ou seja, possibilita a existência de uma tutela geral de personalidade do de cujus182, a ser exercida pelos seus sucessores. De

forma que, estes direitos podem ser protegidos por terceiros, podendo estes, inclusive, reivindicar a produção dos seus efeitos. No entanto, não se pode considerar que os direitos de personalidade sejam transmissíveis no âmbito do direito das sucessões. Não sendo, portanto, plausível a hipótese da sua transmissão. Por outro lado, Capelo de Sousa refere que “os direitos

179 Cf. Rabindranath Capelo de SOUSA, ob. cit., p. 279 e 280.

180 Neste sentido sobre o conceito de coisas jurídicas, Cf. Carlos Alberto da Mota PINTO, ob. cit., p. 331 e ss. e 341 e ss. 181 V. p. 27 e seguintes

182 Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 29-04-2014, acessível em:

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em causa estão ligados e mantêm-se relacionados com a personalidade física e moral do falecido, entendida tal personalidade em si mesma como um bem jurídico, e não diretamente com os interesses das pessoas do nº2, do artigo 71º, do Código Civil183, havendo com a morte do

seu ex-titular uma especial sucessão de direitos pessoais a favor destes últimos”184. Portanto, é

possível considerar que conteúdos digitais que contendam com direitos de personalidade do de cujus, são capazes de consubstanciar um bem jurídico tutelado por este âmbito, mesmo não se inserindo no restrito leque de direitos pessoais transmissíveis por sucessão. Logo, objetos digitais como os perfis em redes sociais, fotografias e vídeos pessoais, poderão enquadrar-se no objeto desta “especial sucessão de direitos”, face à necessidade de serem tutelados pelos seus sucessores, como aliás comanda o artigo 71º do Código Civil.

Não obstante, este entendimento sai ainda mais reforçado pela posição sufragada pelo Acórdão Tribunal da Relação de Lisboa de 29 de Abril de 2014, que afirma que “é indiscutível a tutela do retrato de pessoa falecida, da honra, do bom nome e da intimidade da vida privada, enquadráveis num direito geral de personalidade, com foro constitucional (…). Entende-se, que existe tutela da pessoa falecida, embora tenha cessado a sua personalidade, para a preservação da sua memória”185.

Por conseguinte, existem conteúdos digitais, como perfis nas redes sociais, fotografias digitais, blogs pessoais, etc, que contendem com direitos de personalidade do seu titular, nomeadamente o direito à imagem ou à reserva sobre a intimidade da vida privada. Ora, esses objetos, após a morte do seu titular, vão ser também eles incluídos no objeto da tutela da pessoa falecida. Pois, mesmo tendo a vida do seu titular cessado, estes conteúdos digitais serão um importante contributo para a preservação da sua memória. Principalmente, face à relevância que os meios digitais, e em especial as redes sociais, assumem atualmente na vida de cada pessoa.

Porquanto, embora estes conteúdos digitais configurem bens não patrimoniais, eles serão, na esteira das palavras de Capelo de Sousa, alvo de uma especial sucessão de direitos pessoais e serão exercidos pelos sucessores de uma pessoa falecida. Não sendo transmitidos

183 V. “Artigo 71.º - (Ofensa a pessoas já falecidas)

1. Os direitos de personalidade gozam igualmente de protecção depois da morte do respectivo titular.

2. Tem legitimidade, neste caso, para requerer as providências previstas no n.º 2 do artigo anterior o cônjuge sobrevivo ou qualquer descendente, ascendente, irmão, sobrinho ou herdeiro do falecido.

3. Se a ilicitude da ofensa resultar de falta de consentimento, só as pessoas que o deveriam prestar têm legitimidade, conjunta ou separadamente, para requerer as providências a que o número anterior se refere.”

184 Cf. Rabindranath Capelo de SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, Reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, p. 193, 366 e 367. 185 Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 29-04-2014, acessível em:

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como bens patrimoniais que integram a herança, mas antes sendo alvo de uma tutela de direitos da pessoa falecida, cujo exercício a lei concede aos sucessores, de modo a que estes direitos sejam tutelados e preservados. Isto é, estes conteúdos não serão alvo de uma transmissão stricto sensu, nem consubstanciarão uma verdadeira sucessão, em sentido jurídico, do de cujus. Mas serão acessíveis, fruto da tutela de um direito de personalidade que caberá aos sucessores do de cujus salvaguardarem, por forma a preservar a tutela da personalidade da pessoa falecida através da gestão destes conteúdos digitais. Ora, é possível entender que estes conteúdos não serão transmitidos diretamente, mas antes integrarão o conteúdo e o âmbito de um direito pessoal que possibilita uma “transmissão indireta” dos mesmos. Isto é, através da possibilidade da tutela dos direitos de personalidade do de cujus será possível aos sucessores o acesso aos conteúdos digitais com os quais estes contendam. No entanto, para um entendimento mais prático, vejamos o caso já mencionado de Eric Rash186. Neste caso, caberia aos pais a tutela dos

direitos de personalidade do filho falecido, sendo que nos trâmites em questão ocorreria a mencionada “especial sucessão de direitos pessoais” a favor dos progenitores, cabendo-lhes a faculdade de decidir o que sucederia com a página de Facebook do filho, ou seja, a estes caberia o direito de optarem pelo cancelamento da conta do de cujus. Não obstante, para que esta tutela possa ser exercida pelos sucessores será necessário que estes demandem juridicamente pela mesma.

Pelo contrário, quanto estejam em causa objetos digitais como a conta de correio eletrónico, por exemplo, está em causa em primeiro plano, a reserva da intimidade da vida privada, ou seja, a privacidade do seu titular. Uma vez que não se tratam de contas públicas, mas antes de contas privadas, inacessíveis ao público, e que não podem contender com uma intrusão na vida privada do falecido. De modo que, em oposição a decisões em outros países que já o autorizaram187, é questionável se no direito português pode ser permitido aos sucessores

o direito a acederem a estas contas, pois tal acesso iria afetar uma esfera da intimidade da vida privada do de cujus que deve, em todo o caso, manter-se inviolável. Além disso, está em causa a privacidade como um direito pessoal, de natureza intuitu personae, indissociável da pessoa do seu titular, visto que o correio eletrónico é, na maioria dos casos, pessoal e as informações ali contidas são acessíveis apenas ao seu utilizador188. Portanto, para os sucessores poderem ter

acesso a este tipo de conteúdos, e para que estes sejam efetivamente transmitidos, será sempre

186 Informação obtida na página oficial da BBC : http://www.bbc.com/news/technology-24380211 [28-04-2016]

187Informação obtida na página oficial AristótelesAtheniense Advogados: http://www.atheniense.com.br/noticias/heranca-digital-ja-chegou-ao- brasil/ [03-05-2016]

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solução primordial uma disposição de vontade do seu titular que o permita. Até mesmo, porque este poderia não desejar que os seus emails fossem do conhecimento dos seus sucessores189.

Em suma, apesar de poder ocorrer uma sucessão de alguns destes conteúdos digitais insuscetíveis de avaliação pecuniária, a maioria destes bens não serão transmissíveis por excelência. Pelo que, face à exposição da vida pessoal e da intimidade que ocorre, geralmente, para cada utilizador no mundo digital online, parece relevante que cada pessoa pondere as consequências para a sua imagem e reputação após a morte, pois a internet eterniza todos esses conteúdos. Assim, a melhor solução para garantir a transmissão de conteúdos digitais não patrimoniais será através da realização de disposições de vontade do seu titular, particularmente através de testamento, problemática essa que caberá analisar numa fase ulterior deste estudo.