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Testamento sobre Conteúdos Digitais

Parte III A Herança Digital e a Transmissão de Conteúdos Digitais em Vida

6. A Herança Digital

6.7 Testamento sobre Conteúdos Digitais

A atual legislação portuguesa em matéria sucessória ainda não se encontra apta à nova realidade que surgiu como consequência dos diversos meios tecnológicos, de modo que a transmissão por morte dos conteúdos digitais é ainda alvo de muitas dúvidas. Por consequência, o testamento surge como o meio legal mais apto a garantir a transmissão de conteúdos digitais após a morte do seu titular. Logo, este ponto visa entender se os conteúdos digitais se enquadram no analisado conceito de testamento229, e se podem ou não ser transmitidos por esta

via, estando verificados os analisados requisitos de capacidade e de forma.

De facto, o testamento é, em termos latos, o negócio jurídico unilateral através do qual uma pessoa emite disposições de vontade que apenas produzirão efeitos após a sua morte. Ora, se alguém pretende ver o seu acervo digital salvaguardado, deve então expressar essa vontade, surgindo o testamento como meio legalmente mais apto para esse efeito. Devendo, então, os conteúdos digitais serem transmitidos primordialmente como legado visto tratarem-se de bens

227 Cf. Isabel Rocha LIMA, ob. cit., p. 38. 228 Cf. Isabel Rocha LIMA, ob. cit., p. 38. 229 V. p. 38 e 39

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certos e definidos que à luz da legislação atual não são, na maioria das vezes, considerados para o património hereditário.

Assim sendo, a noção legal define testamento como “ o ato unilateral e revogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou de parte deles”230. Ora,

este conceito revela que uma pessoa pode dispor de todos os bens de que é titular, embora com as inerentes restrições derivadas da sucessão legitimária. Pelo que, tendo em consideração o exposto, os conteúdos digitais de carácter patrimonial configuram-se como verdadeiros bens, sendo considerados para o acervo do seu titular após a sua morte, e podendo portanto ser alvo de sucessão. Logo, entendendo estes conteúdos digitais como bens de que uma pessoa pode ser titular, à luz da noção legal, estes podem ser objeto de testamento. Até mesmo pela extrema variedade e flexibilidade de conteúdo deste ato unilateral de vontade231. Assim, e visto que o

testamento só produz efeitos após a morte do testador, esta surge como a solução ideal para garantir a sucessão destes conteúdos, tendo como elemento essencial que essa seja a vontade do seu titular. De tal forma, os legatários instituídos pelo testamento podem adquirir, com a morte do testador, um efetivo direito subjetivo sobre os seus conteúdos digitais.

Para além disso, nada impede que se incluam no testamento disposições de carácter não patrimonial, conforme dispõe o nº 2, do artigo 2179º do Código Civil, o que alarga ainda mais o conceito do testamento, permitindo expressamente a realização de determinações de última vontade do testador232. Assim sendo, as disposições que visem conteúdos digitais devem

ser consideradas como válidas, independentemente do valor económico do conteúdo digital em questão. Uma vez que esta norma implica que uma determinação de vontade de carácter não patrimonial seja considerada válida mesmo que não tenha correspondência em nenhuma cláusula tipificada na lei, podendo produzir os efeitos que corresponderiam à real vontade do autor da declaração. Principalmente, para que no momento em que estas disposições vão ser executadas não possa existir qualquer óbice a que a vontade deste seja respeitada tal como o seria a vontade de qualquer outro interveniente em qualquer outro negócio jurídico233.

Fundamentalmente, tendo em consideração que o testamento é uma declaração de vontade unilateral, que constitui uma declaração de vontade privada, seguindo o primado da liberdade

230 Cf. Artigo 2179º do Código Civil.

231 Cf. Pires de LIMA, e Antunes VARELA, ob. cit., p.286. 232 Cf. Pires de LIMA, e Antunes VARELA, ob. cit., p.287. 233 Cf. Pires de LIMA, e Antunes VARELA, ob. cit., p. 288.

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contratual234, e que visa produzir certos efeitos jurídicos legalmente previstos, que correspondem

à reprodução da vontade própria do seu autor

De tal modo, é claramente passível que os conteúdos digitais possam ser transmitidos por testamento desde que essa seja a vontade do seu titular. Não importando se estes conteúdos se revestem ou não de carácter patrimonial, visto que nada obsta à sua transmissão, e sendo essa a vontade do de cujus, cabe a quem executa o testamento que estas determinações de vontade venham a ser respeitadas. Assim, os conteúdos digitais avaliáveis economicamente poderiam ser enquadrados nas disposições de carácter patrimonial, ao abrigo do nº 1, do artigo 2179 º do Código Civil, enquanto os conteúdos insuscetíveis dessa valoração podem ser objeto de testamento sob a forma de determinações de carácter não patrimonial, ao abrigo do número 2 do artigo em apreço, sendo-o como reflexo da vontade do testador. Porém, as disposições de carácter patrimonial só podem ser executadas caso respeitem as regras, já enumeradas, para a sucessão legitimária, mormente se não afetarem a legítima de cada um dos sucessores legitimários.

Por último, surge uma outra questão quanto ao testamento sobre conteúdos digitais, uma vez que será nulo o testamento que não tenha exprimido e cumprido claramente a vontade do testador235. Ora, embora a ratio legis deste artigo seja fornecer “as garantias mínimas de

certeza e autenticidade psicológica da vontade do testador”236, e a intenção de reforçar o carácter

intrinsecamente pessoal destas declarações, pode, no entanto, aqui entender-se também um reforço de uma exigência de que as disposições de vontade sejam claras e inequívocas. Pelo que, no âmbito dos conteúdos digitais importa aqui abordar a questão do acesso a estes conteúdos. De forma que, ao testador que pretenda dispor sobre conteúdos digitais caberá, igualmente, dispor sobre o modo de acesso aos mesmos. Isto é, as disposições de vontade cujo objeto sejam conteúdos digitais, necessitam de especificar não apenas o conteúdo que se pretende transmitir, mas também onde este se encontra acessível, e como se pode efetivar esse acesso. Portanto, ao dispor sobre um conteúdo deste género será necessário especificar claramente o local onde este se encontra armazenado, e como este pode ser acedido, nomeadamente quais as credencias que permitem esse acesso (Nome de utilizador, password…). Além disso, de um ponto de vista informático, será necessário garantir a preservação digital destes conteúdos. Todavia, este não parece ser um obstáculo normativo.

234 Neste sentido, Cf. Carlos Alberto da Mota PINTO, ob. cit., p. 102 e ss. 235 Cf. Artigo 2180º do Código Civil.

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Com efeito, para garantir a clareza e o carácter inequívoco de uma disposição testamentária sobre conteúdos digitais, será crucial que essa disposição preenche estes pressupostos.

Em suma, o testamento pode efetivamente incidir sobre conteúdos digitais, independentemente do carácter patrimonial dos mesmos. Porém, é essencial que, para que este possa ser validamente executado, contenha o local e a forma de acesso a estes conteúdos, caso contrário seria impossível cumprir a vontade do testador.