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2 TENSIONAMENTOS EM TORNO DA NOÇÃO DE GÊNERO

2.2. O conceito de gênero foi despolitizado?

O questionamento tema dessa sessão se dá em razão da possibilidade de o gênero ser usado de forma neutra, destituído de seu viés político. O problema disso se localiza, principalmente, por sua constituição estar no diálogo entre teoria e práxis feminista, tendo em vista que ele é o elemento constituidor das pautas do movimento feminista, ao mesmo tempo em essa ação política também o funda.

A potência do uso do conceito de gênero pode ser notada, inclusive, no fato de algumas autoras considera-lo como a possibilidade de “desestabilizar as tradições de pensamento” (PISCITELLI, 2002, p. 7). Assim, a preocupação frente a possibilidade da perda do caráter político do gênero é compressível, porque

se por um lado gênero tornava mais inclusiva a discussão, por outro, já e desde o momento inicial, parte importante do feminismo, inclusive aqui no Brasil,veio a criticar o potencial politicamente desmobilizador do conceito, alertando-nos para a possibilidade da fragmentação e desempoderamento feminino que poderia provocar. O risco antevisto seria o de se perder de vista a situação política de opressão vivida pelas mulheres, em prol de uma multiplicação das diferenças de gênero, o que poderia comprometer uma agenda tida como propriamente feminista (MATOS, 2008, p. 337).

Assim, realizaremos a discussão sobre isto a partir de três pontos: da busca por uma legitimidade científica, do reforço da lógica binária e da articulação com os movimentos sociais.

O uso do gênero, como termo e conceito, dá uma qualidade mais cientifica às análises que, até então, enquanto estudo de mulheres, não encontravam espaço no meio acadêmico. A conquista deste espaço é compreensível quando Matos (2008) nos explica que o campo científico é um espaço de disputa, a medida que é entendido como

o espaço de jogo de uma luta concorrencial pela busca do monopólio da autoridade

científica, sendo esta o resultado da soma da capacidade técnica e do poder social. Pode também ser definido como o espaço onde se busca o monopólio da competência científica, entendida como a capacidade de falar e agir legitimamente, de maneira autorizada e com autoridade, socialmente outorgada a um agente determinado. (MATOS, 2008, p. 341).

Assim, as contribuições feministas para este campo têm sido sistemáticas, pois atuam na “defesa, afirmação, legitimação e aprimoramento dos muitos outros universos sociais onde são exercidos os princípios de outra racionalidade com pretensões a tipos históricos de universal e de onde se gera a verdade sob as condições de tensão e de crítica” (MATOS, 2008, p. 345).

O reforço desta lógica pode tender à perda do caráter político, que faz parte do próprio do conceito de gênero. Por isso, o uso de conceitos como ‘patriarcado’ e ‘feminismos’ são

importantes para demarcar um posicionamento político, que não deixa de, também, ser científico (PISCITELLI, 1998; MAYORGA et. al, 2013). O conceito de patriarcado é utilizado a partir da compreensão de “um sistema estrutural que não se remete apenas à esfera privada e conjugal. Diz respeito à dominação masculina como forma de relação social de todo homem com toda mulher” (VAZQUEZ, 2018, p. 141). E ainda, considerando que seu uso afirma uma posição política, Ana Carolina Vazquez (2018) aponta que “mais do que um uso histórico, utilizamos o termo patriarcado como marcador de uma posição política, que nomeia os sujeitos da violência: os homens assumem a posição de opressores e as mulheres de oprimidas” (VAZQUEZ, 2018, p.142, grifo da autora).

Um segundo elemento que podemos tomar na tentativa de construir pontos para esse questionamento tema, é o uso do termo ‘gênero’ no lugar de ‘mulher’, como apontam algumas autoras (SCOTT, 1995; PISCITELLI, 1998; BITENCOURT, 2013; MAYORGA, 2013). Empregar o gênero como substituto de ‘homem’ ou ‘mulher’ coloca seu sentido a duas possibilidades, o que a própria Butler (2013b) problematiza. Como discutimos no capítulo anterior, houve um o incentivo de agências de financiamento à grupos e ações feministas, esse fomento produziu uma tendência que foi bastante criticada, sendo a crítica à perda do caráter político do ‘gênero’ é uma das principais.

O risco desse movimento está na possibilidade de essecialização do termo, que acaba se aproximado do que se compreende por sexo biológico. Em contrapartida, a afirmação das diferenças sexuais tem eficácia à nível de reivindicação de direitos. Nesse sentido, cabe nos questionarmos sobre em que medida afirmamos ou não a diferença sexual como estratégia.

Enquanto proposta de um sistema de classificação, a “categoria” gênero, em sua forma mais difusa e difundida, tem sido acionada quase sempre de forma binária (raramente em formato também tripartite) para se referir à lógica das diferenças entre: feminino e masculino, homens e mulheres e, também, entre a homo e a heterossexualidade, penetrando já aí neste segundo eixo fundamental deste novo campo que é a fronteira da sexualidade. Adiante tematizo criticamente e de forma específica as dicotomias e binarismos na colocação em perspectiva de um “campo de gênero”. (MATOS, 2008, p. 336).

O terceiro e último aspecto está relacionada à articulação – ou a perda dela – entre a academia e os movimentos sociais, neste caso, os feministas. Para Costa e Sardenberg (2014), este campo de estudos se despolitizou em função do afastamento entre a academia e os movimentos feministas, já que, historicamente há uma constante troca de conhecimentos entre estes âmbitos. Nesse sentido, se faz importante que os estudos de gênero estejam cada vez mais comprometidos politicamente com a minimização das relações de desigualdade, que marcam as relações de gênero como uma saída e uma afirmação da articulação entre ciência e política, e do compromisso da ciência com a mudança social.

Será possível ver a frente, que essa articulação se mantém de alguma forma, uma vez que em nossa pesquisa e análise, pudemos compreender que as autoras e autores apontam para a construção de uma ciência engajada politicamente. Isso pode ser compreendido a partir da noção que de que os feminismos são modos de transformação social, em especial da desigualdade entre os gêneros, fala da manutenção do caráter político dos estudos feministas. Um outro aspecto que colabora para essa compreensão está na compreensão, de algumas das pesquisas analisadas, da importância em produzir cientificamente em articulação com as militantes, ou com as mulheres que fazem parte do cenário político feminista. Nesse sentido, há uma preocupação ético-política em construir e fazer uso de ferramentas metodológicas que produzam essa participação de forma mais efetiva. Desse modo, ainda que haja uma falha na produção da articulação entre a academia e os movimentos feministas, ainda há aquelas que estão atentas a isto e têm se empenhado na construção e manutenção dessa linha de articulação. Então, o questionamento em torno da eficácia e/ou produção política em torno das teorias e análises do gênero produz a compreensão de formas de opressão complexas e distintas entre si. Pois, como afirma Matos (2008), existem efeitos desde o uso do conceito de gênero, com a desconstrução dos papéis sociais, mas também

Através de significados e re-significações produzidos e compartilhados na nova perspectiva analítica e que transversalizam dimensões de classe, etárias, raciais e sexuais, gênero tem tido o papel fundamental nas ciências humanas de denunciar e desmascarar ainda as estruturas modernas de muita opressão colonial, econômica, geracional, racista e sexista, que operam há séculos em espacialidades (espaço) e temporalidades (tempo) distintas de realidade e condição humanas. (p. 336).