• Nenhum resultado encontrado

3 PERCURSO TEÓRICO-METODOLÓGICO

3.1. Pontuações teóricas

As noções que nos serviram como lente no modo de leitura e análise do material selecionado partiram, principalmente, das propostas de Chantal Mouffe, que elabora sua teoria a partir da noção de hegemonia suas teorizações a respeito da política. Para nós, são centrais suas contribuições e o modo como compreende a identidade política e o sujeito político, que discutiremos neste tópico.

A ideia de hegemonia, na concepção da autora, parte da compreensão de que as relações sociais se constituem a partir de um modo de exclusão, o que significa que há sempre “outras possibilidades, que foram reprimidas e que podem ser reativadas.” (MOUFFE, 2015, p. 17). Essas possibilidades, no caso das identidades, por exemplo, se dão em meio a uma determinada ordem de constituição que se acontece em função de outra. Uma vez que elas são processos de identificação e não se determinam completamente, há um ‘outro’, um ‘eles’ posto a um ‘nós’. A diferenciação é o elemento chave da constituição de uma determinada ordem, assim como a multiplicidade e o constante estado de construção se referem aos processos de identificação, que são a possibilidade de se constituir a partir de diferentes aspectos e contextos.

Nesse sentido, como aponta Andrea Mattos (2010), Mouffe compreende que “não se pode falar em categorias homogêneas que contrapõem a identidade da “mulher” e do “homem”.” (p. 595). A identidade enquanto essência não dá conta de representar as possibilidades de experiências, de modo que ela se configura de múltiplas formas, não chegando a um ponto final de sua constituição, uma vez que está em um constate processo de construção (MATTOS, 2010).

Pensar esses pontos em articulação com o movimento feminista está relacionada ao questionamento a respeito das identidades que constituem ou são constituídas pelo feminismo, uma vez que as compreende como diversas, se entende do mesmo modo as que compõe o

movimento. Assim, não se compreende uma identidade homogênea, como a ‘mulher’, pois toma-las a partir deste sentido põe em risco o próprio caráter democrático do feminismo, a partir do estabelecimento de tensionamentos e disputas no interior dele.

Para Mouffe (1996), o processo de desconstrução da ideia de identidades essencializadas é tida “como a condição necessária para uma compreensão adequada da variedade de relações sociais (p. 317-318). Como afirma Claudia Costa (2002), na visão da autora as identidades devem ser lidas “como aquilo do qual se parte (para chegar a outro lugar), isto é, como uma estratégia política pessoal e/ou coletiva de sobrevivência, independentemente de quão múltipla, fluída e contraditória a estratégia possa ser.” (p. 78).

Assim, de acordo com Mouffe (2015) noção de identidade política, é constituída a partir de um exterior constitutivo, ou seja, que o estabelecimento de um ‘nós’ se dá a partir da demarcação de um ‘eles’, portanto, se constitui uma relação de oposição. Dessa forma, pretende-se ressaltar que “a criação de uma identidade implica o estabelecimento de uma diferença, diferença essa que muitas vezes se constrói com base numa hierarquia: por exemplo, entre forma e conteúdo, preto e branco, homem e mulher etc.” (MOUFFE, 2015, p. 14). Esse caráter implica na condição precária e contingente da identidade (MOUFFE, 1996), não sendo fixada ou estabelecida anteriormente ao conflito que constitui a relação nós/eles.

No que se refere à ação política, como a construída pelo movimento feminista, Mattos (2010) compreende que esta visão sobre as identidades está relacionada com a análise de que a ação política está “em busca de objetivos mais amplos, e em coalizão, ainda que temporariamente, com grupos de interesses diversos” (p. 11). Assim, o movimento se constitui pela multiplicidade de identidades, onde ao mesmo tempo que visam o estabelecimento de suas pautas como luta política, se articulam para suas reivindicações comuns.

Já os sujeitos políticos são compreendidos como aqueles que se constituem no momento do conflito, a partir do processo de identificação com uma outra lógica, lógica essa que busca a modificação do discurso legitimador das relações de dominação, que estão estabelecidas (por ‘eles’). Assim, os sujeitos políticos se constroem a partir de identificações e pautas nos aspectos históricos e na contingência (COSTA, 2012), que, a partir da elaboração de Mouffe “não significa completa ausência da necessidade, pois do contrário teríamos uma totalidade vazia e encontraríamos apenas pura indeterminação e impossibilidade de um discurso coerente.” (COSTA, 2012, p. 557).

Aqui, o político é compreendido como o espaço do antagonismo, que constitui as sociedades, uma vez que o antagonismo se refere a essa (o)posição ao exterior constitutivo que marca a própria formação das identidades políticas e dos sujeitos. Como afirma Ketle Paes

(2015), as relações antagônicas partem da negação de uma plena constituição, sem que haja disputas ou relações de desigualdade. Já a política, se refere ao “conjunto de práticas e instituições por meio das quais uma ordem é criada, organizando a coexistência humana no contexto conflituoso produzido pelo político.” (MOUFFE, 2015, p. 8).

Tais relações de oposição, não significa que as partes (‘nós’ e ‘eles’) precisam ser inimigas. Para a autora “é preciso existir algum tipo de vínculo comum entre as parte em conflito, para que elas não tratem seus oponentes como inimigos que devem ser erradicados nem considerem que suas pretensões são ilegítimas” (MOUFFE, 2015, p. 19). Dessa forma, se pressupõe a existência de um conflito para que se constitua os sujeitos políticos, que disputarão o estabelecimento de uma outra lógica hegemônica. Para Mouffe (2015) a saída está no agonismo, que se refere ao estabelecimento de

uma relação nós/eles em que as partes conflitantes, embora reconhecendo que não existe nenhuma solução racional para o conflito, ainda assim reconhecem a legitimidade de seus oponentes. Eles são “adversários”, não inimigos. Isso quer dizer que, embora em conflito, eles se consideram pertencentes ao mesmo ente político, partilhando um mesmo espaço simbólico dentro do qual tem lugar o conflito. (p. 19).

Assim, compreendemos que o campo feminista pode ser analisado a partir desse modo de compreensão, uma vez que se estabeleceram ao longo de suas trajetórias momentos de conflitos, que se constituíram a partir de diferentes pautas políticas. Ele não deve ser pensado livre do estabelecimento de sujeitos ou pontos de unidade, mas sim livre da construção de identidades essencializadas, pois entende-se que a construção de articulações podem construir “fixações parciais e podem ser estabelecidas formas precárias de identificação em torno da categoria “mulheres”, que facultarão a base de uma identidade e de uma luta feminista.” (MOUFFE, 1996, p, 118).