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1. Contextualizando a epidemia: caminhos percorridos até a feminização

1.4. O conceito de vulnerabilidade

Como vimos até aqui, o conceito de risco, seja associado a fator, grupo ou comportamento teve recorrente contribuição na caracterização do HIV/aids, incluindo a soropositividade feminina, e apresentou implicações individuais, sociais e políticas que superavam consideravelmente seus benefícios.

Ayres (1996) destaca que o preconceito contra os então denominados “grupos de risco” e a banalização decorrente da despreocupação de quem não tinha “comportamento de risco” são os principais exemplos de “efeitos colaterais” do uso do conceito de risco.

Podemos compreender, também, como as descobertas sobre a infecção pelo HIV/aids culminavam na formulação de novos discursos e abordagens epidemiológicas e, ainda, como a evidência de novos contextos sociais, políticos e econômicos esteve entrelaçada ao surgimento de formas de lidar e conceituar corpos e saúde masculinos e femininos.

É então, nesse mesmo sentido, a partir de um novo contexto, no final da década de 80, que o movimento pelos direitos das mulheres, numa representação do movimento social organizado, traz uma perspectiva crítica para os modelos comportamentalistas, enfatizando a mudança de comportamento como algo relacionado a aspectos culturais, econômicos, políticos, jurídicos, etc., desigualmente distribuídos entre os gêneros, países, segmentos sociais, grupos étnicos e faixas etárias (Ayres et al., 1999).

Além das constantes críticas e do insucesso demonstrado pelos programas de prevenção de base comportamental, a nova dinâmica da epidemia que, além do processo de heterossexualização já discutido, envolveu a expansão do HIV/aids em segmentos populacionais mais socialmente desempoderados e/ou vulneráveis como os mais pobres, mulheres,

marginalizados, negros e jovens, também apontou para a necessidade de novas respostas à epidemia no final dos anos 80 (Ayres et al., 1999).

Alguns trabalhos negligenciados na segunda metade da década de 80 já apontavam para a relação entre redes sociais e difusão da aids, destacando que a epidemia progredia ao longo dessas redes sociais de maior “vulnerabilidade” e que esta vulnerabilidade teria uma dimensão não comportamental, mas sim social (Bastos, 2001).

Diante de todo esse processo, abriu-se espaço, tanto teórico quanto prático, para explorar a noção de vulnerabilidade nas respostas à epidemia, principalmente nas respostas preventivas. É no início da década de 90 que o conceito de vulnerabilidade surge para responder aos limites do uso dos conceitos de fator, grupo e comportamento de risco, fazendo-o complexo. Como uma alternativa concreta, buscaremos esclarecer o conceito.

De acordo com Ayres (1996) a noção de “vulnerabilidade”: “busca estabelecer uma síntese conceitual e prática das dimensões sociais, político-institucionais e comportamentais associadas às diferentes susceptibilidades de indivíduos, grupos e até mesmo nações à infecção pelo HIV e as suas conseqüências indesejáveis (doença e morte)” (p.5). Ela não visa a distinguir individualmente aqueles que têm alguma probabilidade de se expor à aids, mas fornece elementos para avaliar objetivamente as diferentes chances que todo e qualquer indivíduo tem de se contaminar, dado o conjunto formado por certas características individuais e sociais de seu cotidiano, a partir da maior exposição ou menor chance de proteção (Ayres, 1996).

O conceito de vulnerabilidade nos reafirma os limites do uso do conceito de risco para o conhecimento objetivo da epidemia de HIV/aids. Entende-se o conceito como um convite potencial em considerar a particularidade de cada situação que envolve aspectos sociais, culturais e individuais na suscetibilidade de indivíduos e coletividades à infecção, adoecimento ou morte pelo HIV (Ayres et al., 1999).

O discurso da vulnerabilidade, desde as suas realizações primeiras, tem convidado a novas potencialidades (Ayres, 1999). Entende-se que dentre as principais diferenças deste conceito para as concepções anteriores, a nova direção de privilegiar o nível coletivo como categoria analítica, como fonte de propostas de ações teóricas e práticas, em detrimento do individual, é a diferença fundamental que exemplifica essa ampliação que o conceito traz às investigações e intervenções no campo do HIV/aids.

Segundo este mesmo autor, a noção de vulnerabilidade procura particularizar as diferentes situações dos sujeitos (individuais e/ou coletivos) diante da epidemia de aids em três planos analíticos básicos: o individual, o programático ou institucional e o social. Desenvolvimentos mais recentes têm procurado estender o uso da noção de vulnerabilidade para outros aspectos ligados à saúde de populações e estratégias preventivas, como a questão de relações de gênero.

O plano individual está relacionado a comportamentos que criam a oportunidade de infectar-se e/ou adoecer nas diversas situações e não devem ser entendidos como uma decorrência imediata da ação voluntária dos indivíduos, mas sim relacionados ao meio social em que se dão. O plano programático refere-se ao desenvolvimento de ações institucionais voltadas para o problema da aids como ações propostas pelo Estado, planejamento de ações, capacidade de resposta das instituições de saúde especializadas envolvidas, tipo de financiamento previsto para os programas propostos, continuidade dos programas, etc. A vulnerabilidade social deve ser avaliada através de aspectos como o acesso à informação do grupo social, acesso a serviços de saúde, aspectos sócio-políticos e culturais (como a situação da mulher), grau de liberdade de pensamento e expressão dos diversos sujeitos, condições de bem-estar social, etc (Ayres, 1996).

No item anterior, ao tentarmos uma aproximação inicial ao processo de feminização do HIV/aids, exploramos algumas questões envolvidas na caracterização do HIV/aids em mulheres. Agora, aceitando o convite do conceito de vulnerabilidade em considerar os aspectos sociais,

culturais e individuais na suscetibilidade de indivíduos e coletividades à infecção pelo HIV/aids, buscaremos entender essas questões e outras envolvidas como determinantes estruturais da vulnerabilidade das mulheres (Bastos, 2001).