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L: Essa questão do viver é difícil, mas eu acho que tem muita mulher irresponsável sabe? Porque como eu estava te falando tem gente que até melhora a qualidade de vida quando passa

6.1.3. Mulheres que têm dificuldade de negociar o preservativo

Alguns dos profissionais entrevistados, ao falarem sobre a soropositividade nas mulheres, vão além da perspectiva causal implicada na culpabilização individual e utilizam o repertório da dificuldade de negociar o preservativo com o parceiro.

Palavras e expressões como “mulheres não têm autoridade para pedir preservativo”, “situação de dependência”, “submissas a esse parceiro” e “a negociação com esse parceiro” foram usadas nas conversas em que este repertório esteve presente.

O uso deste repertório pelos profissionais tem a função de mostrar que essa mulher não é única e exclusivamente a responsável pela infecção e que esta ocorre a partir de um complexo contexto de negociação. Constitui um posicionamento de profissionais que compreendem as questões difíceis que estão relacionadas à negociação do preservativo e, conseqüentemente, à infecção por HIV/aids.

Podemos observar o uso deste repertório nos trechos abaixo, em que se conversa sobre a infecção e o viver com HIV/aids:

1) A MULHER PORTADORA

Trecho 1

E: Tá bom. Eu gostaria que você me falasse então, o que você pensa sobre o contágio e a soropositividade feminina.

L: (...) É a questão que elas têm dificuldade de se prevenir, por que? Porque essas mulheres não

têm autoridade para pedir preservativo, elas não têm como pedir o uso dele pra seus parceiros. Então elas confiam nestes parceiros, que são parceiros fixos, então não tem a ver com promiscuidade, com nada disso, tem a ver com a dificuldade que elas tem de cobrar a camisinha desse parceiro.(...) Então, eu vejo que elas ainda estão nesta situação de dependência, de serem submissas a esses parceiros e isso ta diretamente relacionado ao fato da

maioria delas permanecerem no relacionamento mesmo depois de descobrirem que foram traídas e que o marido passou a doença para elas. Então, eu acho que é assim que vem acontecendo hoje em dia o contágio nessas mulheres. A situação é que a mulher não acredita

que o marido a traía e este fato a deixa vulnerável. (Profissional 11) Trecho 2

E: E o que você pensa sobre o contágio e a soropositividade feminina?

L: Bom, sobre o contágio....éeee, não sei como eu vou expressar ...você quer saber meu ponto de vista em relação ao contágio hoje nas mulheres?

E: isso...e a soropositividade nas mulheres hoje...

L: O contágio assim....é um fator complicado da parte feminina porque a gente que tem a experiência de lidar com elas no dia-a-dia nós temos o conhecimento que a negociação com o

parceiro, éee isso dificulta muito a prevenção e onde éee ... acaba que a cada dia mais o

contágio está aumentando. Então assim, pra mulher é muito difícil que no momento que ela começa a se relacionar com uma pessoa éeee, durante um tempo, às vezes num é uma questão nem de tempo né? Isso vai mesmo da afinidade ali do relacionamento da pessoa, mas pra ela

determinar que haja uma prevenção é muito difícil, então...o meu ponto de vista em relação ao

contágio, que às vezes a gente vê que aumenta a cada dia mais, essa questão também do relacionamento com o parceiro...eu acho muito dificultoso.( Profissional 7)

Trecho 3

E: E sobre a soropositividade feminina, a vivência da soropositividade na mulher? C: Ahh tá..

E: O que você pensa sobre isso?

C: (...) Com relação a mulheres soropositiva, por exemplo, algumas delas nos relatam que há dificuldade de firmar relacionamento certo? (...) e aí chega um certo momento do relacionamento que o parceiro começa a cobrar o sexo sem proteção, sem camisinha, por achar que o negócio é melhor. Pra uma mulher que não tem a doença já seria difícil negociar com

esse parceiro para eles continuarem usando camisinha, aí você imagina pra essa mulher que tem que contar que é soropositiva e ainda negociar pra eles usarem camisinha sempre. (...)E mesmo as que têm parceiro fixo, seja marido ou namorado, elas têm dificuldade de negociar com eles pra continuarem usando camisinha, pra prevenir que não haja re-infecção. A

maioria não concorda com isso não. Então tem todas essas questões nesta prevenção, não é só dar a camisinha e falar: “fala com seu marido que é pra usar” e achar que pronto (...)

(Profissional 13).

A utilização deste repertório aponta que a questão da prevenção envolve um outro aspecto além do “comportamento individual”: o da dificuldade de negociar essa prevenção com o parceiro. Para explicar isso, como vemos no primeiro trecho, o profissional se refere ao contexto de subordinação, física e sexual, dessa mulher.

Diferente dos repertórios anteriores, em que para se falar de soropositividade feminina, dá-se destaque exclusivamente à mulher, à sua forma de infecção e a seu comportamento sexual, neste abre-se espaço para a existência de um contexto de infecção que permite que se envolva o homem.

Além disso, como vemos no trecho 3, nas conversas sobre o viver com HIV/aids para as mulheres também há uma descrição marcada por este contexto de dificuldade em negociar, destacando-se a re-infecção. Assim, a soropositividade feminina é construída como algo que envolve outros aspectos circunstanciais, mostrando que a infecção e/ou reinfecção não é controlada pela mulher.

Tentando compreender a importância de pensar esses outros aspectos ao falar sobre a soropositividade feminina, podemos citar Vermelho, Simões-Barbosa e Nogueira (1999), cujo estudo procurou conhecer o perfil social e cultural relacionado ao risco de infecção pelo HIV em mulheres, encontraram, quando perguntaram a essas mulheres sobre a negociação sexual, que apenas 10% se referem ao uso do condom e, mesmo assim, após o conhecimento da doença.

Villela e Sanematsu (2003) colocam que esta questão também está relacionada ao fato de no Brasil as mulheres evitarem filhos através da pílula ou da esterilização, o que pode, segundo

as autoras, diminuir a capacidade da mulher negociar o preservativo, além de não prevenirem a ocorrência de outras DSTs e, eventualmente, a (re) infecção pelo HIV.

Ainda sobre isso, O´Leary e Cheney (1993) colocam que a vulnerabilidade feminina ao HIV e as possibilidades que as mulheres têm, hoje, de se protegerem, remetem, necessariamente, para a compreensão dos papéis de gênero, que determinam os papéis sociais de homens e mulheres.

O uso predominante é do preservativo masculino e depende da concordância dos homens para sua adoção. Ainda segundo as autoras, além deste não fazer parte da cultura contraceptiva brasileira, os homens, via de regra, não gostam de métodos de barreira, por acreditarem que estes atrapalham seu prazer sexual (Villela & Sanematsu, 2003).

Outra questão importante é que a sugestão do uso de preservativo, especialmente em parcerias estáveis, pode significar, implícita ou explicitamente, um questionamento da fidelidade e da confiança. As dificuldades aumentam se o casal é pobre e possui filhos, o que determina uma maior dependência econômica e social da mulher, inversamente proporcional ao seu poder de negociar suas decisões sexuais e outras (O'Leary & Cheney, 1993).

O uso desse repertório chama atenção para estas questões e, principalmente, para um conjunto de subordinações criando um contexto em que essas mulheres começam a ter dificuldades para controlar sua exposição ao HIV/aids, devido à falta de poder de negociação do preservativo nas relações sexuais e, conseqüentemente, a dificuldade de exigir um comportamento sexual seguro desse parceiro.

Podemos perceber como esta descrição é uma forma de aproximação inicial à ênfase da vulnerabilidade na infecção feminina, já que se refere ao seu aspecto cultural, em específico às relações sociais de gênero.

Ao mesmo tempo, ao usar este repertório, os profissionais criam uma posição para a mulher de responsável por negociar o preservativo. Nas falas dos profissionais, esta mulher é quem sempre aparece como responsável por “pedir o uso dele para seus parceiros”, por “determinar que haja uma prevenção”.

Nesse sentido, podemos concluir que mesmo abrindo espaço para envolver o homem na soropositividade, nesta descrição os profissionais destacam a mulher como protagonista da negociação, não questionando ou não discutindo a importância do homem também passar a ser responsável por exigir ou negociar o uso do preservativo, a partir do pressuposto de que, da mesma maneira, ele também está exposto à infecção e deve se prevenir. Assim, a posição dessas mulheres a partir do uso deste repertório é de não ser a única responsável pela infecção, mas de ser a responsável por negociar a prevenção.

Podemos concluir, ainda, que ao usar este repertório os profissionais promovem um distanciamento deste contexto de dificuldade de negociar e, conseqüentemente, destas mulheres portadoras. Há uma referência direta a essas mulheres quando se conversa sobre este contexto como observamos nas falas dos profissionais: “elas tem dificuldade de cobrar a camisinha”, “ela é vulnerável”, “pra ela determinar que haja uma prevenção é muito difícil”.

Continuando a avaliar as implicações desta descrição da soropositividade, a seguir, busco mostrar como se dá o uso deste repertório pelos profissionais para falar do atendimento oferecido às mulheres portadoras.