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Ao longo dos últimos cinquenta anos, importantes discussões têm se apresentado no estudo arqueológico, tornando a arqueologia uma disciplina profundamente identificada com a interdisciplinaridade, tanto em seus métodos de trabalho, quanto na sua conceituação e nas intervenções teóricas de outras áreas, na construção da identidade cien- tífica da Arqueologia ou mesmo a partir dela. Nesse sentido, o estudo da Arqueologia tem primado por definir, para efeito de entendimento e aplicação, conceitos e noções fundamentais para que as diversas esferas de conhecimento sejam favorecidas pelos conhecimentos advindos da pesquisa arqueológica ou até mesmo das revisões e mudanças concei- tuais acontecidas nessa área do conhecimento.

Uma das conceituações fundamentais para o entendimento da relação entre a Arqueologia e outras disciplinas das ciências humanas e sociais é o conceito de cultura material. A noção de cultura material tem suas matrizes na Antropologia Cultural, no início do século XX, e é dessa forma identificada por ser um campo de pesquisa e estudo da Antropologia interessado diretamente no entendimento das relações simbólicas e das relações estruturais nas diversas culturas humanas (BINFORD, 1986).

A cultura enquanto conceito pode ser definida, genericamente, como sendo a manifestação não tangível dos comportamentos sociais dos diversos grupos humanos, os quais envolvem as crenças, ritos, sím- bolos e outras manifestações da capacidade humana de diversificação de comportamento em relação ao mundo tangível ou material e intan- gível ou imaterial.

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A cultura material constituir-se-ia, nesse sentido, na dimensão material desses comportamentos, sendo, por sua vez, também carrega- da de variados sentidos e necessidades, mas sem dúvida um elemento constitutivo do comportamento humano. Assim, um vasilhame cerâ- mico decorado na sua parte externa e interna, com linhas paralelas pintadas nas cores preta, vermelha e branca, representaria muito mais do que um simples vasilhame com a função de processar um alimento, mas um objeto material que detém uma imensa carga simbólica aplica- da na sua materialidade, em que a confecção, a função e a(s) forma(s) (decoração, tamanho, tipo de pasta etc.) fazem parte de seu conteúdo e sentido cultural dentro de um determinado grupo ou sociedade especí- fica que o produziu e que o utilizou (FUNARI, 2003).

A noção de cultura material tem, segundo Tânia Andrade Lima, fortes identificações com a Arqueologia, mesmo que a Arqueologia não seja a única disciplina entre as várias ciências humanas e sociais a se utilizar dessa noção e dos dados provenientes da cultura material. Além disso, na sua construção de conhecimento, a Arqueologia trata de sociedades nas quais os atores sociais não estão mais presentes, por- tanto, tal reconstrução dos processos sociais dependerá essencialmente dos dados materiais, como é o caso específico do campo da Arqueologia Pré-Histórica (LIMA, 2011).

Nesse campo da pesquisa arqueológica, a cultura material é a única fonte na qual a reconstrução é possível, considerando que os restos materiais são os únicos dados diretos dos quais dispomos para entender tais sociedades do passado.

Por esse motivo, segundo Lima, é que ao longo da segunda meta- de do século XX a Arqueologia se constitui como destaque quanto ao estudo da cultura material de sociedades não mais existentes, e mais

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ainda quanto a sociedades nas quais não há registro escrito de nenhuma forma, como as sociedades pré-históricas (LIMA, 2011).

O primeiro momento dessa importante relação entre a cultura material e a Arqueologia está no momento de expansão das práticas arqueológicas de escavações, quando uma quantidade significativa de artefatos e restos de cultura material das mais diferentes sociedades do passado, pré-históricas e históricas, foram coletados, organizados e classificados em tipologias, segundo características situadas em etapas no tempo e dentro de um espaço.

Nesse sentido, a abordagem evolucionista terá profunda influência nesse tipo de análise, pois, na tentativa de classificar as sociedades a partir de sua cultura material, tornar-se-ia essencial pensar nos graus de evolução tecnológica e social para que se pudesse entender o funcionamento de tais sociedades do passado. A cultura material seria, então, um reflexo direto, porém passivo da cultura, pois os artefatos portavam características diretamente relacionadas a todas as normas, valores e ideias da sociedade que os criou.

Um segundo momento dessa relação entre cultura material e Arqueologia diz respeito à cultura material como um reflexo da adaptação humana às forças naturais que muitas vezes agiam contra as possibilidades de sobrevivência humana. Assim, a cultura material significaria a extensão do corpo humano, nas suas fragilidades diante do meio natural, portanto, os artefatos ou a cultura material eram resul- tado da adaptação não biológica ao meio ambiente. A cultura em geral, em diversas sociedades e em diversas épocas, refletiria, assim, situa- ções contextuais diferentes, de respostas adaptativas ao meio natural e suas pressões, tendo a cultura material um valor de estudo para a Arqueologia à medida que refletia as mudanças culturais acontecidas

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no seio dessas sociedades do passado como respostas diferentes a con- textos ambientais e naturais diferentes.

Um terceiro momento diz respeito à releitura feita dos pressu- postos da seleção natural de Charles Darwin em que, segundo Lima, estimular-se-á a perspectiva de encontrar no registro arqueológico, ou seja, na parte material remanescente de sociedades do passado, o fenó- tipo humano refletido nos materiais que foram preservados ao longo do tempo e que chegaram até nós guardados nos estratos (camadas) arqueológicos. Nesse sentido, a cultura material refletiria caracterís- ticas notadamente humanas, pois o que foi preservado, assim como o material fossilizado nas ciências naturais, era comprovação de sucesso adaptativo não biológico, mas iniciado e ampliado a partir dele.

O último momento dessa relação entre a noção de cultura material e a Arqueologia refere-se aos novos rumos interpretativos da cultura a partir da poderosa influência do estruturalismo. Tal corrente teórica na Antropologia intensificava e impulsionava os trabalhos no estudo das dimensões cognitivas e ideacionais das culturas humanas, do passado e do presente, sem negar o caráter adaptativo da cultura material. Porém, dando ênfase aos conflitos, contradições e tensões existentes dentro das culturas, mostrando, assim, seu caráter não uniforme, ou seja, os atores sociais eram e foram decididamente ativos no processo social no seio de sua cultura e de sua existência (LIMA, 2011).

A cultura material constituir-se-ia e comportar-se-ia tal como um texto a ser decodificado e lido, considerando todas as nuances de sentido, variáveis de ideias e símbolos. Dessa forma, a cultura material não poderia falar por si mesma, pois precisava ser lida de acordo com certas regras a serem conhecidas ou desvendadas.

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